retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


Cansado pra caramba de consultas médicas e de exames que não chegam à causa de minha diplopia (visão dupla) diagnosticada já faz seis meses, tento aprumar tamanho desconforto passando olhos entre leituras reservadas pra quando sarar... E aí, dou com esta crônica.

Viciados em companhia, de Martha Medeiros na Revista O Globo de 5 de julho de 2015
Não confio no amor de quem não consegue ficar sozinho.
  Nunca foi ao cinema sozinho, nunca viajou sozinho, peram­bula pela rua feito um cão que se perdeu do dono. Sentar na lanchonete de uma li­vraria para tomar um cafezinho assemelha-se a uma catástrofe. Sua solidão lhe parece vergonhosa e indiges­ta, é evitada com o mesmo afinco com que evitaria a morte.
  Para ele, qualquer parceria é melhor que nenhuma. Uma conversa enfadonha é melhor que o silêncio. Um chato é melhor que ninguém. É prati­camente um viciado em companhia. E co­mo todo viciado, crité­rio não é o seu forte.
  Não confio no amor de quem não suporta a própria presença.
  De quem telefona a fim de papo furado, de quem envia mensa­gens só para ouvir o si­nal da chegada da res­posta, de quem preci­sa se iludir de que não está só. Quem de nós não está só?
  Uma manhã de frente para o mar, uma tarde com um livro, uma noite com um filme, três dias inteiros numa cidade es­tranha, uma rua que nunca foi atravessada, um museu com tempo livre à vontade, uma cama vazia para ele, simula­cros do inferno.
  Não confio no amor de quem não se entretém.
 De quem se desespera em frente ao espelho, de quem não consegue se maravilhar num jardim, de quem não se comove ao ouvir uma música, de quem não gosta de andar de ôni­bus enquanto aprecia a paisagem, de quem não se sente in­teiro num trem.
  Sozinho é uma coisa, solitário é outra. Sozinho é com, soli­tário é sem.
 Eu sozinha sou muitas. Sozinha tem mais sabor minha comida, tem mais foco o meu olhar, tem mais profundezas o meu ser. Sozinha tem mais espaço minha liberdade, tem mais imaginação a minha fantasia, tem mais beleza a mi­nha individualidade. Sozinha tem mais for­ça o meu pensamento, mais inteireza a minha vontade.
  Não confio no amor de quem negocia sua autenticidade.
 Como amar de ver­dade outro alguém, se não sabe de onde esse amor vem? Onde foi gerado, por que ne­cessário, que atributos ele contém? Amar é doar, não vem do doer. Amar é saber que aquele que a gente ama, se faltar, vai dei­xar saudade, mas não nos transformará num cadáver vagando ao léu. Não confio em quem ama para ser um par, não confio em quem quer apenas se enquadrar, não confio em quem ama por não se tolerar.
  Amar tem que ser extraordinário. Além do que já se tem.
  Se sozinho você não se tem, amar vira tubo de oxigênio, ânsia, invenção e enredo barato, perde a dignidade, o amor vira muleta e trucagem. Confio, sim, no amor de quem não precisa amar por sobrevivência, de quem se basta e mesmo assim é impelido a se dar, porque dar-se é excelência, não é mendicância.
  Não confio no amor de quem não se ama em primeira instância.
Martha Medeiros
Enviado por Germino da Terra em 30/09/2015
Alterado em 30/09/2015
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