retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


Nem todo mundo, de Martha Medeiros na Revista O Globo de 30/ago./2015.
A gente acredita que existe um senso comum regendo nos­sos gostos e opiniões, porém somos sete bilhões pensando e vivendo de forma muito distinta uns dos outros.
 Nem todo mundo é regido pelo dinheiro, por exemplo. Dinheiro é bom, é ne­cessário, e quanto mais, melhor mas este “mais” não obce­ca a todos. Há quem troque o “mais di­nheiro” por “mais sos­sego” e “mais tempo ocioso”. Qual o senti­do de trabalhar insa­namente se já se tem o suficiente para viver com dignidade?
  Nem todo mundo gostaria de morar nu­ma mansão com uma dezena de quartos e espaço de sobra para se perder: tenho uma amiga que desistiu do apartamento cinema­tográfico onde mora­va, pois ela não conse­guia enxergar os filhos nem conversar com eles eram longos os corredores e muitas as portas. Parecia que a família vivia num ho­tel, e não num lar. Tro­cou por um aparta­mento menor e apro­ximaram-se todos.
  Nem todo mundo prefere mulheres com cara de boneca e corpo de modelo, ou homens com rosto de galã e corpo de fisiculturista. Imperfeições, exotismo, autenticidade, um lo­ok de verdade, natural, sem render-se a uma busca sacrifica­da pela beleza, ah, o valor que isso ainda tem.
  Nem todo mundo gosta de bicho, de doce, de praia, de ler, de criança, de festa, de esportes, e nem por isso merecem ser expulsos do planeta por inadequação crônica. Seus praze­res estão fora do catálogo da normalidade e ainda assim são criaturas especiais a seu modo, enquanto que outras pesso­as podem cumprir todas as obviedades consagradas e isso não adiantar nada na hora da convivência: são ruins no tra­to, fracas de humor e voltadas para o próprio umbigo, ape­sar de seu exemplar enquadramento social.
  Nem todo mundo veio ao mundo para brigar, para reclamar, para agredir, para di­famar, para fofocar, para magoar, para se vingar, para atrapa­lhar hábitos de muitos, até arrisco di­zer que da maioria, já que é mais fácil cha­mar a atenção através do nosso pior do que do nosso melhor. O pior faz barulho, o pi­or ganha as manche­tes, o pior gera co­mentários, o pior re­cebe os holofotes, o pior causa embaraço. Porém, há os que vie­ram em missão de paz e não se afligem pela discreta repercussão de seus atos.
  Nem todo mundo quer casar, quer filhos, quer fazer faculdade.   Nem todo mundo quer ser campeão, presidente, celebridade. Há quem queira apenas viver de um jeito que não seja julgado por ninguém, há quem queira apenas se expressar de um modo menos exuberante e mais íntimo, há quem queira apenas passar pela vida nutrindo a própria identidade, não se preocupando em colecionar se­guidores, admiradores e afetos de ocasião.
  Sem jogar para a torcida, há quem queira somente estar bem consigo mesmo.
Martha Medeiros
Enviado por Germino da Terra em 21/09/2015
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