retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


saudoso e-mail, de Martha Medeiros — Revista O Globo de 24 de maio de 2015
Quando o e-mail surgiu, foi considerado um meio prático, porém frio de se corresponder. Mas agora que o e-mail foi reduzido a pó pelo Face, WhatsApp & cia., agora que ele so­brevive apenas para a troca de mensagens profissionais (e olhe lá), agora que ele respira por aparelhos, já podemos lembrar, nostálgicos, de como ele era refinado.
  O e-mail entrava discretamente na sua caixa de mensagens e ficava ali, quietinho, aguardando pacien­temente o momento em que o destinatário pudesse lê-lo e res­pondê-lo. Havia todo o tempo do mundo para isso. A resposta podia ser bem articu­lada, revisada e envia­da sem nenhuma afli­ção. Claro que não era agradável deixar al­guém aguardando uma semana, mas na maioria das vezes não levava tanto tempo assim, o retorno ge­ralmente era dado no mesmo dia ou no dia seguinte, e isso era suficiente para come­morar esta vibrante conexão virtual.
  Isso foi ontem. Anteontem. Um século atrás. Dá no mesmo.
  Agora você troca mensagens instantâneas, um toma-lá-dá-cá que faz todo mundo parecer meio esquizofrênico. A questão do corretor de texto é uma insanidade. “Oi, Patri­cia!” se transforma em “Ouviu, patife!” e o que era para ser um gentil cumprimento vira um insulto. Não preciso dar ou­tros exemplos, você passa por isso todos os dias: corrigir com avidez as bananices que o corretor comete à revelia.
  Mas o mais grave nem é isso.
  É ter que responder de bate-pronto. Eu às vezes não sei exatamente como reagir a algo que me escreveram, gostaria de ter ao menos cinco minutos para processar a informação e entender o que estou sentindo antes de mandar uma res­posta, cinco minutos não é tanto tempo assim, é? Ora, em cinco minutos o in­terlocutor já se atirou do oitavo andar, sen­tindo-se rejeitado pe­lo meu silêncio. Não senhora, você não pode pensar nem cin­co, nem dois, nem meio segundo, preci­sa escrever feito um raio, num flash, sem pestanejar, porque o outro está digitando ao mesmo tempo e is­so configura um due­lo, ganha quem dis­parar primeiro. Por­tanto, seja ligeira e te­nha presença de espí­rito ia esquecendo: é imperativo mostrar que é engraçadinha.
  Só que não sou en­graçadinha. Sou cau­telosa. Ponderada. Gosto de construir frases. Criar raciocí­nios. Sou escritora, dê um desconto. Não consigo me contentar com frase de telegra­ma, que é uma coisa bem antiga, se não me falha a memória.
  Bom mesmo seria se a gente continuasse a se comunicar frente a frente, transmitindo nosso estado de espírito com o próprio rosto, sem precisar do auxílio de algum emoji. Se a gente pudesse falar com calma e o outro responder com cal­ma. Mas isso parece que também é coisa muito antiga.
  Nasci atrasada, estou sempre correndo atrás do tempo: aquele tempo que o e-mail me dava pra pensar.
 
[Sou uma mulher do século XIX
disfarçada em século XX
— entre 1979-1982 Ana Cristina Cesar poetiza seu desajuste]
Martha Medeiros
Enviado por Germino da Terra em 29/05/2015
Alterado em 02/01/2016
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras