retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


Retorno àquela consulta que fiz com você como policial, sobre o mandado da Polícia Federal que recebi me intimando àquela Delegacia. Lembra? Pois é, como você bem sugeriu q’eu fosse acompanhado dum advogado, fui com o Antônio, com o Doutor Antônio Albuquerque.
  Num calor medonho, alugo carro com ar e às sete horas zarpamos. Chegamos lá bem na hora, as nove, mas somente às dez que adentramos a sala do delegado Doutor Empatia; ali à mesa grande e atulhada, sentado frente a um computador está o escrivão Júnior.
  O delegado beira uns 50 anos; o escrivão é um jovem duns 30, se tanto.
 Nos cumprimentamos e eu e o Antônio sentamos. Em pé, calmo, o delegado preambula que não quer prejudicar ninguém, que cumpre uma demanda da promotoria... Pergunta onde eu moro, qual a minha profissão etc.; pergunta se eu sei que fui intimado pela Polícia Federal pra explicar as sementes de cannabis que importei dos Países Baixos através dos Correios, empresa do Governo, e que isso no mínimo caracteriza tráfico internacional de entorpecentes... O delegado pergunta se tenho conhecimento disso, pergunta qualquer coisa assim.
  Eu digo que sabia sim, mais ou menos, que imaginava... Disse que desenvolvi hipertireoidismo e que através duma endocrinologista bebo remédio de controle dos hormônios (trouxe aqui comigo os exames e as receitas de três anos); disse também que bebo um ansiolítico que pondera sortes adversas; e disse ainda que, pra aplacar a agitação interna, que à tardinha eu sento ao alpendre... Ali eu tenho o hábito de considerar o dia fumando unzinho. Isso assim, por minha própria conta — a doutora nem não sabe de nada. Enfim, com essas sementes eu plantaria uns pezinhos de maconha no quintal lá de casa, perto dum arroio — pra mim, pro meu uso — e capinaria fora a praga do tráfico...
 O delegado, que até então me escuta com um olhar benevolente, meneia a cabeça e sorrindo pergunta se eu já havia conversado com o meu advogado ali ao lado. Eu digo que sim, claro, que viemos juntos de carro, e que há muito sem nos vermos como amigos eu vim a precisar justo de seus serviços profissionais... Sim, viemos conversando, claro.
  Então o delegado pergunta ao Antônio: doutor, o senhor não quer conversar com seu cliente — em particular, ali no corredor? Fomos ao corredor, eu e o Antônio. E o Antônio: Germino, nós combinamos de você dizer que comprou as sementes num site, de bo-bei-ra?!... O delegado tá tentando ser legal, entende... Sim, eu sei, tô percebendo, mas, ué, eu tô só falando o que te falei, que iria semear as sementes na minha casa e a maconha daí seria pro meu uso, que não seria pra vender, q’eu jamais faria algo a alguém que este não o fizesse por si...
  Germino, diz que foi de bobeira, por ingenuidade!
 Voltamos à sala e o delegado Empatia dá outra forma à mesma pergunta; eu também, com outras palavras lhe digo que meu propósito com as sementes de maconha, além de fumar a planta feita fitoterápico, é claro, com intuito de à tardinha serenar ânimo, minha motivação também é a de me livrar da praga do tráfico, de crimes perversos paralelos a esse comércio e a tudo mais, mas também por que não conformo com esse prensado, esse que se tem aí... made in Paraguai. Falei meio desembestado.
  A autoridade olha pro Antônio que olha pra mim, sorri e resmunga “ele vai insistir”... Então passa a ditar ao escrivão que o declarante — ele se refere a mim, eu ali quieto —, QUE o declarante confirma ter realizado as importações a que se refere as apreensões;
QUE afirma ter realizado a compra em razão de curiosidade por ter como profissão matéria relacionada à natureza; QUE é profissional apicultor desde o ano de 1978; QUE as importações apreendidas nos autos em análise foram as únicas realizadas pelo depoente; QUE afirma não ter conhecimento que a importação de frutos aquênios de Cannabis Sativa é proscrito no Brasil; QUE não faz uso de nenhuma droga ilícita; QUE pela internet costuma fazer compras de livros, e pelas razões acima expostas realizou a compra do material apreendido. Nada mais disse e nem lhe foi perguntado — assim o delegado Empatia encerra o meu Termo de depoimento. O Antônio lê e assina; eu assino. Nem atinamos em pedir cópia...
  E olhando pra mim, meio em off o delegado diz que é mais seguro comprar maconha no morro, por que se flagrado é flagrado como consumidor e não como traficante internacional, como você [eu] agora se configura.
  Levanto e com um aperto de mão lhe agradeço... Nem sei bem a quê agradeci, talvez à educação. É... Ainda que acanhado, surpreendentemente ali eu me senti tranquilo, sem constrangimento algum.
 Não atinei de pronto, mas logo percebi que o delegado Empatia foi gente boa à beça, que é um cara bacana! Embora absorvido pelo meio inóspito que policia, é um homem de bem com a vida, do bem... Digno, discernido. Pouco mais novo q’eu e de mundo até então desencontrado, ele foi sensível em me perceber atarantado e criativamente entremeia abelha à minha história...
  Quando passa olhos nos autos, o Antônio se atém ao ilícito apreendido; eu vi as sementes assim, disfarçando o interesse, ali à meia distância.
  À tardinha, já em casa, sento ao alpendre dizendo pra mim mesmo que hoje eu tenho o direito a mais que um fino — aperto um charro e o acendo! Lembro o dia... Em meia hora me bate uma lombeira confortadora e relaxo.
 Então é isso, Alberto, foi assim lá com seu colega federal.
  Aí, releve essa minha confissão, hein...
  Novamente agradeço por me orientar quanto a ir à intimação acompanhado dum advogado — o panaca aqui, eu, eu ia indo bem sozinho... Além de não desfrutar da companhia agradável do Antônio, se desajudado dum defensor as circunstâncias poderiam não coincidir a favor.
 Nesse entremeio eu fantasiei enredos kafkianos bem obscuros.

mês e pouco depois...

Você sabe q’eu fui intimado outra vez pela Polícia Federal por conta doutra apreensão de sementes de maconha que fiz a outro site... Pois é, como a encomenda ao holandês demorava a chegar, encasquetei que garfaram a minha grana, fiquei puto e no ímpeto contatei um outro, espanhol, donde chegando aqui ao Brasil outra vez a PF é despertada e outra vez me intima...
 Incrível, dessabendo que a polícia já tinha apreendido meu primeiro pedido, o da Holanda, faço contato com outro site, espanhol. Mas só que dias depois, lidando com a migração de abelhas deslembro disso completamente.
 Agora dessa vez eu achava que o delegado me pegaria pela “mentira” que lhe preguei no primeiro depoimento, quando pergunta se já fiz outras compras na internet e eu digo que sim, livros saem mais em conta... Isso dito assim soa um tanto sonso, mas não... Depois, recebendo o segundo mandado — pelas datas eu vi que no depoimento o delegado já sabia da segunda apreensão — supus então que hoje ele me induziria àquela mentira e eu feito panaca enfiaria a carapuça.
 Lá no corredor da PF, eu e o Antônio estávamos esperando e vem o delegado Empatia, nos vê e vem à gente: Ué, vocês outra vez?! O Antônio diz que o motivo é outro inquérito, e mostra o mandado. O delegado pega o papel, lê e diz que não, tá errado, diz q’ele ajuntou este ao outro e tá tudo num... Nos chama à sala. Imagina que no Termo de depoimento falara que os dois estão num... E na tela do computador aponta o texto e a referência explícita às apreensões...
  O Antônio lembra q’eu lhe pedi que pedisse uma cópia do meu depoimento.
 O delegado Empatia olha pra mim, me entrega a cópia e reitera o conselho de comprar maconha em boca, é mais seguro. Lembra da grana desembolsada...
  Aí o Antônio pergunta se o inquérito vai adiante e o delegado diz que seu parecer é favorável, mas depende da promotoria... Por mim, isso fica nisso.
  Tomara! — exclamo pra mim.
  E o delegado fala de mel, pergunta se as abelhas estão produzindo... O senhor gosta de mel?, eu perguntei. Diabetes... Mas o pessoal aí gosta.
  Desde quando recebi o mandado pelos Correios, isso lá por dezembro, desde aí tinha vezes na rua que à toa eu sorria — sei lá, cismava que estava sendo filmado, num sei... Delírio Grande Irmão.
  Outro dia me dou conta que vivo há quase 37 anos onde chamam lugar ermo, o Paiol Velho, e ainda assim aqui acontece um incomum desses... Refiro esta ocorrência supondo viver em região pouco mais complexa. Se aí, aí sim, vez e outra estaria atarantado entre tantos absurdos já banalizados.
 Mesmo que a bufunfa despendida tenha se sobressaído entre meu minguado orçamento, agradeço pra caramba a sua sugestão, Alberto, a de eu ir à Polícia Federal acompanhado dum defensor profissional.
 E eu só ia plantar uns pezinhos de maconha no quintal de casa... Pra mim.
 Bem. Já é noitinha e me dou conta que tô um bagaço.
 Aí, vamos combinar um papo.
 Até...

 
Germino da Terra
Enviado por Germino da Terra em 27/03/2015
Alterado em 03/06/2016
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