retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


Escutar a conversa dos ou­tros não é um hábito exclu­sivo dos fofoqueiros ou dos que não têm nada para fa­zer. Pode ser também uma atividade nobre, funda­mental para o exercício de determinadas profissões, e não falo aqui de detetives e espiões, mas da­queles que lidam com o ofício de narrar fatos, fielmente ou através da ficção (jornalistas e es­critores), dos que se dedicam a estudos de cos­tumes e dos antropólogos. Às vezes, passar a madrugada num bar exige um ato de despejo mental que só a escrita pode resolver, daí eu reproduzir o diálogo que segue, recolhido ao longo de uma noitada.
  — Quando estava para fazer cinquenta anos, tive um choque: de um dia para o outro, não sei bem quando, eu me tornei transparente para as mulheres, numa faixa que vai dos 18 aos 48. Eu não existia. Eu estava ali, mas elas olhavam através de mim.
  — Na época, você já tinha essa barriga?
  — Já estava acima do peso, mas não era is­so... era a idade... algo na idade.., algo que elas percebem e que torna o sujeito um não-ser.
  — Conheço uma nutricionista que tira essa barriga em três meses.
  — Não. Eu agora tenho 59 anos e não quero mais voltar ao passado. Quero comer meu per­nil de javali com dezenas, centenas de chopes.
  — Percebo, através da sua máscara velhusca, o rosto de um homem bonito. Você tem cova no queixo e uns arremedos de George Cloo­ney. Eu sempre quis uma cova no queixo, uma cara de cowboy da Nespresso.
  — Posso ter sido bonito um dia. Não sei. Sei que o jardim estava florido e chovia aquela chuva boa. Um dia, as flores secaram e a chuva parou. Foi num só dia. Assim. Eu não era mais um ser. Eu era o homem transparente.
  — E hoje? Hoje você é um ser?
  — É diferente. O chope. O javali. Eu me viro.
  — Mas o peru levanta? De manhã, pelo menos, num impulso automático?
  — Levanta, levanta. Mas isso é irrelevante. Te­nho lá os meus momentos. O que importa?
  — Meu pai, dias atrás, teve uma ereção. Ligou para contar a novidade. Disse que mamãe ficou toda contente. Mas não passou disso. A novidade e o contentamento. Perguntei se eles iam fazer amor. Assim mesmo: “Vocês vão fazer amor”? Ele respondeu: “Vou estudar o assunto”.
  — Eu sou um homem relativamente poderoso. Tomo decisões, tenho essa barba, o barrigão, uma certa estatura intelectual, então, de vez em quando, uma jovem se sente atraída, vê um char­me, uma aura de califa. Nessas horas, não duvide: eu jamais deixo passar a oportunidade. Recebo como uma oferenda, uma concessão, e agradeço a Deus com grande sinceridade.
  — A Deus?
  — Creio que sim. Junto as mãos, dou uma olha­da oblíqua para o teto, e agradeço de um modo humilde. Não é assim que se agradece a Deus?
  — É possível que sim, mas o teto talvez não seja exatamente o que se entende por firmamento, ainda mais com um olhar oblíquo. De todo mo­do, meus parabéns. Todo velho, ainda que preco­cemente velho, merece uma colher de pudim.
  —    De pudim?
  —    Desculpe, bebi demais, mas sempre penso no pudim como um último benefício. Uma co­lher de pudim, para um velho, pode ser o derra­deiro prazer. Percebi isso quando topei com o se­nador Nelson Carneiro numa churrascaria, muito velhinho, comendo lentamente um pudim de lei­te. Fiquei com os olhos cheios de água, aquele ancião, um ancião honrado, com serviços prestados e ficha limpa, estava saboreando seu pudim. Acho que mesmo que fosse um filho da mãe ou um assassino, um velho comendo pudim sempre comoveria um homem de coração mole. Enfim, o fato é que, uma semana depois, abri o jornal e estava ali o obituário do senador. Tive um frio na espinha e pensei: ra­paz, aquele deve ter sido o último pudim do Nelson Carneiro. Mas confortei-me ao lem­brar do seu prazer ao comê-lo. E agora o seu relato, a moça que se oferece ao velho gordo, que não desperdiça, trouxe isso à memória.
  —    Você pensou em “moça”; logo, leite con­densado, logo, pudim.
  —    Que seja. Que seja.
  —    Você é gente fina.
  —    Obrigado.
  —    Qual a sua idade, caso não se importe de responder?
  —    Quarenta e nove anos.
  —    Pois é... foi por essa altura que veio o fenô­meno. Entre os 49 e os 50. Você não começa a se sentir transparente?
  —    Eu me sinto transparente desde que te­nho, sei lá, uns 3 anos, quando comecei a olhar para o mundo e percebi que o mundo não olhava para mim, por mais que eu implo­rasse. Ou, se olhava, era para reprovar, conde­nar, ludibriar, dar porrada.
  —    Sinto muito.
  —    Não sinta. Hoje, a transparência me traz alento. Não ser olhado, notado, mesmo acima do peso, é um tipo de graça divina. A transpa­rência é um abrigo paradoxal: não é invisível, traduz certo compromisso ético e, ao mesmo tempo, é um escudo protetor contra um uni­verso em marcha acelerada de aporrinhação.
  —    Você é feliz, então.
  —    Estou a caminho.
Arnaldo Bloch no Segundo Caderno d’O Globo de 9.8.2014
 
Arnaldo Bloch
Enviado por Germino da Terra em 28/01/2015
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