retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


‘Handle with care’, crônica de Martha Medeiros à Revista O Globo de 14 de dezembro de 2014.
Certamente você já viu a frase que acompanha o aviso “Fra­gile” em embalagens que chegam do exterior. Duas mãos espalmadas circundam uma caixinha e a etiqueta diz: “Handle with care.” Manuseie com cuidado.
  Uma querida amiga que mora na Suécia me mandou um e-mail essa semana dizendo que muitas pessoas deveriam ter este adesivo grudado no próprio corpo. Eu diria que não apenas muitas: todas. Afinal, nada mais frágil que um ser humano.
  Costumamos tratar com delicadeza as crianças, por seu ta­manho e inocência, e os velhos, por sua vulnerabilidade física e também por respei­to, mas quando se trata da vastíssima parcela da população que se situa entre es­ses dois extremos, passamos por cima feito um trator desgo­vernado. A ideia geral é: adultos sabem se defender.
  Alguns sabem, ou­tros menos. Todos nós recebemos vários trancos da vida e aca­bamos desenvolven­do alguma resiliência e capacidade de se regenerar, mas isso não quer dizer que não há dentro de nós algo que possa quebrar de forma irre­versível.
  E quebra mesmo. Espatifa de forma a impedir a colagem dos cacos. “Handle with care.”
  Há por aí campanhas pregando mais gentileza e mais educação, e assino embaixo, naturalmente. Mas isso tudo tem um caráter superficial, induz apenas a gestos e atitudes corteses, como esperar alguém sair do elevador antes de a gente entrar ou dar bom dia a quem cruza por nós. Isso é tra­tar bem, não tratar com cuidado.
  Tratar com cuidado significa se colocar no lugar do outro e dimensionar o quanto uma estupidez pode machucar. Signi­fica levar em consideração as dificuldades de alguém a fim de não exigir demais de seus sentimentos e posicionamen­tos. Significa compreender que a comunicação é funda­mental para o enten­dimento e a paz, e que atitudes bruscas podem ser mal inter­pretadas. Significa honrar o laço cons­truído e não colocar na intimidade a des­culpa para agredir agressões não podem virar hábito da casa.
  O que cada pessoa leva dentro? Sonhos que podem parecer bobagem para os ou­tros, mas que são sa­grados para ela. Trau­mas que ainda não fo­ram superados e que doem cada vez que são lembrados. Ver­gonhas inconfessas. Feridas que custaram a cicatrizar e que bas­ta um cutucãozinho para reabrirem. Dese­jos que não merecem ser ridicularizados. Necessidade de ser amado e aceito. Uma parte da infância que nunca se perdeu.
  As pessoas gritam e rugem umas para as outras, quando não fazem pior: ignoram umas às outras, como se todos fos­sem feitos de pedra, como se todos estivessem protegidos por plásticos-bolha, como se a blindagem fosse geral: é só mirar e atirar que não dá nada.
  Dá sim. Pode não parecer, mas todo ser humano é um cristal.

 
 
Martha medeiros
Enviado por Germino da Terra em 06/01/2015
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