retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


Daí, pois, como já se disse,
exigir a primeira leitura                          
paciência, fundada em certeza
de que, na segunda, muita coisa,
ou tudo, se entenderá sob luz
inteiramente outra.
Já a construção, orgânica e não
emendada, do conjunto, terá feito
necessário por vezes ler-se duas
vezes a mesma passagem.
    Schopenhauer    
epígrafes ao livro Tutameia — terceiras estórias, contos de Guimarães Rosa

 
apis mellifera

Eh, Pimentel, vige, quanto tempo!                 
  Eu ainda tô por aqui, sim; andei sumido, andei entocado, mas aqui, ainda; e você, faz o quê por essas bandas? É... Mas peraí, antes d’eu saber de você, peço sua licença pra contar uma novidade-antiga, àquela pessoa que só depois de muito, já em 2003, conheci como orientadora de oficina literária, a quem me metidei dar minhas escrevinhações à avaliação, e mais, à generosidade do amigo a um então porrista inveterado. Inda que dessabendo àquela época, às avessas você dá um empurrão pra q’eu desencadeasse o resgate de minha identidade — eu a mim; agora, uma brisa sopra a favor de minhas características individuais apartadas há quase 20 anos: devagarinho, eu volto a lidar com abelha apis, a exercer o meu ofício, a Apicultura.
  É recente, mas me sinto... efetivamente eu sou apicultor, cheio de alegria!
 Ano passado, nesse mesmo período, sorumbático até à alma encuco de de mala e cuia me embrenhar num sítio que conheci em plena Mata Atlântica — de quinze em quinze dias eu ia àquele quinhão bosqueado onde cismei viver e ali perambulando ruminava, passava o dia debaixo do arvoredo relembrando quefazeres cotidianos; quando a nostalgia doía, ideava por que não criar abelhas aqui, aqui nessa mata certamente tem pasto pra elas, como não?! Pois sim — se amoitado no eito da floresta, resultaria d’eu reverenciar a benevolência da folhagem caindo sobre macia terra úmida, ali, onde minhocas se entrelaçam numa dionisíaca reciclagem orgânica a modo que se ajunte compostagem, húmus genuíno...
 E remexendo em vivências, ansioso viajo na maionese. Confuso, me resignei com a melípona uruçu, uma das abelhas-da-terra, e fiz projeções dessa nativa, que, se comparada à apis africanizada, tem produção tão insignificante!
  Em meus textos à oficina, Pimentel, neles, de alguma maneira eu falei desse universo próprio que enredava, o tamanho da desalegria...
 Enquanto isso, durante o tempo que fucei a possibilidade de barganha entre o Paiol Velho e um Novo Celeiro, pra compensar a desarmonia hormonal pelo hipertireoidismo persistente em mim há quase três anos, pareado eu ia atrás de pólen e de geleia real como excelentes complementos alimentares pra me recompor, confiáveis e a preços mais em conta; e indo à cata dei com um apicultor com quem de pronto se gerou empatia pessoal e profissional mútua.
  Semelhando a esse criador, como toca a sua apicultura, projetei como hoje eu conduziria a minha própria se tivesse acompanhado as mudanças de gestão, se à lida do apiário anexasse o registro de entreposto etc., e se assim efetivamente atuasse. Até tentei, mas o equivocado e um tanto infantil pudor ético me inibiu. Sem jogo de cintura, em pouco tempo me embaraço ao conduzir sequer a produção conscienciosamente, inda mais se pra expandir o mercado “ter de maquiar a fachada” encaminhando o produzido com o obtido baralhados feito um único, como agronegócio... Isso assim e preservando a dignidade, não consegui conciliar. Foi quando corro cotia, dei pra trás.
  Lá pelas tantas, sem mais quaisquer perspectivas rurais, tento voltar a viver no Rio, próximo aos meus filhos. Nisso, pairo no jogo de relações impessoais tateando movediça tecnologia social — em ano e meio eu surto e de rabo entre as pernas retorno ao Paiol Velho. Aqui de volta em 99, dano a mamar goró feito gente grande... Até que um dia à noite, pimba, de chofre um carro me dá um puta trambolhão.
  Tô me fazendo entender, hein, Pimentel?
 Visto que sim, bem, sem mais conjunção se, retomo a novidade-antiga: como apicultor, o Leonardo é mais ou menos da minha época e temos perfis profissionais semelhantes — inclusive, descobrimos trajetórias pessoais também parecidas, as tais coincidências... Da mesma idade, crescemos na florescente Ipanema da segunda metade da década de 1950 e, ainda jovens adultos nos fins dos anos 70, capinamos fora da metrópole — cada um foi prum seu interior criar abelhas. Nunca nos avistamos. Quando ele entra no Horto aqui da região com as suas aladas, soube de mim por ouvir os poucos remanescentes falarem, entrou depois que em 1996 eu zarpo de vez donde vivi visceralmente e — igualmente arraigado, mas desgostoso — me precipito noutro mundo.
 Entre outras coisas, o admiro porque sabe transitar na modernidade líquida, especialmente na Apicultura globalizada — e aí especialmente, em meio às funções pra mim então contraditórias, trilha o ambivalente istmo se equilibrando bem à beça, e assoma.
  Faz uns seis meses q’eu o conheço. Foi quando comprei geleia real e pólen numa loja do Rio, em Copacabana, a Herborista, dois dos produtos de seu Apiário Apis Mellifera, nome científico da abelha desse gênero, e lhe telefonei combinando visita. Surpreso, o sítio em Vista Alegre, um lugar de Paty do Alferes, é a sua base e fica a 10 km da minha casa — tão perto; tão longe... Fui conhecê-lo e lá retornei algumas vezes. Nas conversas, houve afinidade e logo-logo eu o ajudava em migratória, em colheita de mel, em revisões, capturas, enxertia (rainha)... Com camaradagem, fizemos um bocado de coisa.
 Nas atividades, algumas pesadas e à noite, mesmo que a disfunção metabólica tenha criado incômodos, me surpreendi bem com a minha disposição física. Alegro por ter parado de fumar cigarro e de beber álcool — tô limpo há dois anos e meio, e bem; pelo reganho de ânimo através de alimentação nutritiva, de caminhadas matinais e vespertinas com a companhia da Alfa; as feituras à foice e à enxada pra recompor o sítio lubrificam articulações do corpo...
 Ainda que involuntariamente, quem desencadeia em mim a resolução íntima, justo quando a autoestima pena o absurdo no expiatório, quem feito estopim promoveu tal contravolta e de verdade me inspirou, foi uma prima de Belo Horizonte, a Márcia, q’eu a encontro mulher. Desde então, espanejo hábitos lesivos e recupero substância.
 Bem, voltando, em meado de julho, trocando entendimentos percebo q’ele assunta, numa boa, apura sobre a minha disponibilidade interna, se tenho vontade em trabalhar pra ele e/ou juntos, em parceria — a parte comercial o suga; percebi que avaliava minhas atitudes, meu ritmo, sei lá... Naqueles dias, duma maneira mais evidente me propõe de criarmos rainhas em escala pra renovação anual das de seus enxames, ou pra substituí-las na necessidade — ele entra com a infraestrutura e o material que têm disponíveis; eu, com a mão-de-obra.  Entabulamos inclusive de, se fizermos um trabalho bacana, de mais à frente oferecermos rainhas e enxames prontos pra produção a outros apicultores profissionais, especialmente aos de São Paulo e aos de Minas. Como aqui a pastagem tá inconstante, existe possibilidades de levarmos as abelhas pro sudeste mineiro, talvez prum qualquer interior paulista, ou...
 Mas, por ora, prum aproveitamento pleno das floradas aqui da cercania, hoje tão minguadas, começamos por reproduzir e renovar as linhagens já à mão e potencializando os enxames com manejo apropriado... Também contatei o Centro de Apicultura Tropical, em Pindamonhangaba, onde fiz um curso de criação de rainhas em 95, contato pra compra de rainhas e assim introduzir “sangue novo” nessas paragens. Dia desses, a responsável pelo Instituto me retornou e-mail dizendo que em meado de novembro dispõe de rainhas fecundadas.
 Sei sim, sabemos que a evidência do resultado não é iminente... À hora e a vez, e sem expectativas, a atitude por si vai preenchendo os espaços e, pra compô-los, pondero solicitações ativando a clarividência — de vigor desperto, sereno minh’alma.
 Na precisão, todos os dias ao despertar com os passarinhos, sem lamento eu valorizo os quefazeres.
 Isso que te conto, num sabe, acontece nessa roça de Paty do Alferes, no hoje saqueado eucaliptal que já fora o Horto Florestal da Rede Ferroviária Federal, saudoso, cobiçados 270 mil m2 de abundante pasto melífero, onde há 18 anos e por 18 anos eu criei abelhas — vivo nessas paragens há 36.
  Agora, lembro nesse instante, lembro de quando — através da amizade entre nossas mulheres naquele momento —, lembro de quando vocês estiveram no sítio em 1981 e nós dois, Pimentel, andamos a cavalo... Naquela ocasião nos conhecendo, eu não te levei lá, não?
 Você me acompanhou até aqui, e agradeço. Eu tinha de te contar isso por que na oficina literária de algumas maneiras você cutucou a minha atenção pra q’eu me aprumasse.
  Fechando a novidade-antiga, outro dia mesmo, mais outra vez assisti Ouro de Ulisses, bom filme em que Peter Fonda encarna um criador de abelhas... legítimo apicultor.
 Claro, empresto, sim... se se comprometer a me devolver. Melhor, eu te faço uma cópia.
  Não, faz tempo que quase não leio nem escrevo e nem ouço música. Pra ser franco, literatura, ficção, eu pouco tenho lido; nos últimos tempos, leio o pensador social Zygmunt Bauman, à quem sou plenamente empático! Comecei a ler nesses dias, dele, comecei Cegueira moral — a perda da sensibilidade na modernidade líquida, onde faz, com o filósofo e cientista político Leonidas Danskis, juntos fazem considerações sobre a banalidade do mal prevalente.
  ...
  Pois é, num é, falando, continuo o mesmo gaaaguejante, como vê, titubeante embora paradoxalmente perdulário da palavra... E você, entre as suas novidades têm livro no prelo? O último que li foram as histórias curtíssimas de Cenas de cinema — conto em gotas, já faz tempo.
  Foi muito bom te encontrar, amigo! Fique bem! Um abraço.
  Inté...
 Olha, agradeço, mas digo com o rigor da determinação: tô limpo desde 18-19 de abril de 2012, quarta pra quinta-feira! No entanto, com um copo d’água, com gosto eu brindo ao nosso encontro, à nossa saúde! Aí, moço, por favor, serve uma Magnífica (rótulo preto!) pro meu amigo aqui e uma água mineral sem gás pra mim. Essa é da boa, é a q’eu bebia. Sorva, hein...
  À nossa!
 Ah, deixa eu te mostrar uma foto, imagem que ando carregando comigo e hoje a mostrei ao Leonardo, envaidecido de quanto, nos idos da década de 80, quando verdadeiramente se colhia mel... Eu migrava as abelhas pra Queima-Sangue, Paraíba do Sul, migrava prum pasto de morrão de candeia e dele colhia uma quantidade estúpida dum mel âmbar-amarelo, saboroso pra daná.
  Ó só, fumegando o alvado da colmeia arranha-céu é o amigo Marcos Baravelli e atrás tá o saudoso Eduardo Mont-Mor, companheiros na lida apícola, mais Gaúcho. Bons tempos!
  Bem... Já, eu já vou indo. É fim de tarde e por hoje a missão tá cumprida; tô cansado e contente. Vou capinar fora, vou pra casa descansar ao alpendre — todo dia à tardinha eu fazia assim junto à Alfa. É, ela, veinha, com as cadeiras doídas pela displasia coxofemoral, tadinha, na quinta-feira 2 de outubro, morreu... Por essa hora nós sempre ficávamos ali, contemplando... De lá pra cá, fico só, meio jururu... Fico melancólico também por que o meu fornecedor de relaxamento vespertino, o Sino, danou-se, tá encanado, babau. Pois sim, me dou o direito ao pecadilho, como não. Fico assim por mim e, claro, por ele, que foi levado prum antro barra-pesada do Rio de Janeiro, quiçá um qualquer Bangu — estávamos criando certa amizade, num sabe... Ele não vivia só disso, não — é pintor de parede e pra financiar o costume biscateava umas trouxinhas entre os amigos. Fico triste pelo seu filho de 12 anos, garoto bom, órfão de mãe. Pra não depender nem alimentar o ilícito, pelejo o cultivo duns dois pés pra uso...
Germino da Terra
Enviado por Germino da Terra em 28/09/2014
Alterado em 18/04/2015
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