retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


Faz pouco mais de década e meia q’eu me desinteresso por escritos não ficcionais — fatos reais agastam e migro às estórias. Sem ponderar peculiaridades entre inconsequências, picas, através das sensações apenas percebia o meio precipitando circunstâncias incontroláveis; como mal sentia, me sinto só e desassossegado, sem referência alguma à percepção estampada me suponho variar e que precocemente beiro o precipício da senilidade.
  Um baita desconforto...
  Vim vindo desse jeito até que há mais ou menos ano e meio dou com o livro Isto não é um diário, reunião de textos curtos que abordam mazelas crônicas da mundialização, expressões do sociólogo Zygmunt Bauman. O pensador delineia o essencial da pós-modernidade e refere-se à seguinte, a nova era, ao estrupício emaranhamento mundano chama de modernidade líquida, e além disso evidencia o espectral que quer ser o que não é.
  Daquele não diário, das intervenções fui a outros de seus escritos, especialmente Identidade, reflexões sobre a singularidade feita persona múltipla e inconstante... Bem à conveniência.
  Transcrevo a anotação que fecha aquela coletânea:

Sobre o último sonho e o testamento de H.G. Wells, e os meus também, escrito em 1º março de 2011 por Zygmunt Bauman em Isto não é um diário — tradução de Carlos Alberto Medeiros para Jorge Zahar Editor Ltda.

Na Introdução extraordinariamente inteligente, erudita e pers­picaz de John Clute à recente edição do livro de H.G. Wells, The Shape of Things to Come, de tremendo impacto na época de seu lançamento, mas agora quase esquecido, lemos que, em seus últimos anos, bem depois da traumática experiência da Primei­ra Guerra Mundial, que deixou em ruínas o mundo do século XIX e minou os alicerces da visão whig da história (tanto do pas­sado quanto do futuro), Wells “ficou deslocado”. Ele e seus com­panheiros sofredores de geração se viram marcados pela cruel­dade, pela inutilidade e pelo absurdo brutais e desavergonhados, dessa guerra, e essa marca nunca iria se apagar. Mas, para Wells em particular, ficar deslocado das pressões da história era estar fora de seu projeto central, que ele pretendia endereçar a todas as pessoas dotadas de talento mental no mundo civilizado. O projeto consistia em mostrar o tipo de confusão em que o plane­ta havia se metido e apontar o caminho a seguir.
  Wells se agarrava com teimosia à sua crença de que havia e sempre haverá “um caminho a seguir”, não importa quão nume­rosos sejam os empecilhos, obstáculos, estorvos e reações que se possam acumular diante dos seres humanos que ousaram (estavam destinados a?) segui-lo. Ele nunca desistiu de seu pro­jeto, insiste o autor da Introdução (esse formidável exercício de atualizar a capacidade do livro de falar e a do leitor de entender), mas, no período final da vida, ele se dirigiu a seu público de uma distância cada vez maior. Wells não abandonaria a posição em que se havia estabelecido desde o início. Após longos anos que o encheram de desapontamentos, Wells continuou mais ou menos no mesmo lugar; seu público-alvo é que se afastou.
  Para resumir, Wells perdeu o que fora seu “senso infalível do Zeitgeist” (espírito de época), senso que por duas décadas ou mais havia sido, por comum acordo da opinião esclarecida, sua marca registrada; “Wells estava fornecendo o melhor argu­mento possível para o triunfo da civilização europeia”: embora, de novo, tal como tantos de seus contemporâneos, não tenha conseguido prever a guerra. E Wells se mostrou mais lento que muitos deles em captar o significado dessa omissão e em conta­bilizar as suas baixas.
  Já no meio da guerra, os textos de Wells mostram uma con­fiança resoluta de que “a Europa de 1910, ... depois de muita demolição e reconstrução, poderia voltar a funcionar”. Seus romances “foram tragicamente lentos em registrar um crescente consenso sobre a Primeira Guerra Mundial, não apenas entre a intelligentsia, mas também nos corações e mentes dos cidadãos ‘comuns’”; “Para os pensadores que vieram depois, essa civili­zação não era uma lousa que se pudesse apagar, uma expres­são corrigível no rosto do Homo sapiens, ... mas uma máscara a disfarçar a verdadeira e pavorosa face de todos nós.” Quanto a Wells, contudo, “para o bem e para o mal, não lhe era possível deixar a luta. Ele não podia abandonar a luta para nos escla­recer”. E isso a despeito de sua profunda percepção acerca de suas próprias falhas de temperamento: pelos lábios do dr. Philip Raven, um dos principais personagens de The Shape ol Things to Come, Wells formula o julgamento de seus próprios defeitos e incapacidades:

Você não consegue aguentar qualquer elaboração convencional, exibições secundárias, complexidades desnecessárias, métodos indiretos, diplomacias, ficções jurídicas e meias mensagens discretas. ... Como devem odiá-lo os homens de negócios se e quando chegam a ouvi-lo! Complicações constituem a vida deles. Você tenta afastar todas essa complicações do caminho. Você é um desnudo, um danado de um desnudo impaciente.

  Quando examino os registros de meu próprio itinerário de vida e os comparo aos de Wells, percebo que meus poucos méritos, de forma alguma inquestionáveis, estão muito aquém dos pontos fortes de Wells: não são páreo para a amplitude e a audácia de sua visão, os talentos literários, o senso de vocação e a determinação de ver sua missão cumprida. Mas tenho plena certeza de que compartilho de suas fraquezas, tal como apresen­tadas uma a uma na fala do dr. Raven. Essa irmandade em nos­sas falhas talvez me permita supor, mesmo de modo hesitante e decerto com très beaucoup em fait toutes proportions gardées, que haja algumas pequenas como possam ser afinidades eletivas entre mim, um humilde artesão, e ele, o grande artista.
  Mas há outra justificativa para assumir a hipótese de uma afinidade eletiva: agora não entre personagens ou realizações, mas entre os contextos históricos em que nossos respectivos trabalhos foram gestados e se inserem; em particular, os efei­tos do “deslocamento”, que Clute com tanta segurança identifi­cou em Wells mas, creio, não menos relevantes, se é que não ainda mais fortes, em minha própria história de vida (Wells, ao contrário de mim, foi afinal poupado da experiência de refúgio ou exílio tanto da variedade “externa” quanto da interna”). O senso de “estar deslocado”, quando penso sobre ele, tem me acompanhado por tanto tempo quanto me é possível recordar: um senso de estar tora do lugar e fora da época; e, com toda a certeza, esse senso da distância que me separa dos “homens de negócio” uma distância ao mesmo tempo física e espiritual, por escolha deles tanto quanto minha.
  Devo admitir que desde logo descobri na condição de “estar deslocado” algo agradável, quando não bastante satisfatório; e, considerando-se o motivo de meu deslocamento, também uma escolha honesta e eticamente louvável. Antes de ler e absorver as sugestões de Clute, eu atribuía esses sentimentos difusos, embora ubíquos e obstinados, talvez de forma errônea, à minha claustrofobia inata. Tanto do ponto de vista cerebral quanto do visceral, tenho medo de multidões, horror a clamores de justiça, e detesto os instintos e estouros de rebanho.
  Meu deslocamento teve muitas faces. A experiência da infân­cia de ser mantido à força distanciado do mundo a que perten­cia e ter recusado o ingresso, pelo dobro do tempo, em função do exílio durante a guerra, no mundo a que tentei em vão me juntar; depois da volta ao lar, uma distância gradual, mas sem­pre crescente, entre minhas esperanças e expectativas e o caráter repulsivo da realidade, exacerbado pela hipocrisia dos “homens de negócio”; uma curta permanência em outro país, desta vez com uma experiência de estar “dentro”, mas não ser “do” lugar; e, enfim, a outra metade da vida passada num país tão mara­vilhosamente hospitaleiro em relação aos estrangeiros, embora sob a condição de que não pretendam ser nativos.
  Até agora, contudo, essa foi uma lista de deslocamentos, por assim dizer, topográficos. Talvez (quem pode dizer com cer­teza, com a mão no coração) resultante de uma predisposição formada pela série de deslocamentos “topográficos”, uma varie­dade mais séria de deslocamento, e decerto mais intimamente relacionada à de Wells, marcou e marca meu perfil profissional: minha própria versão de “deslocamento em relação ao Zeitgeist”. Sendo Wells e eu separados por duas gerações, as mani­festações de um deslocamento semelhante tendem, contudo, a diferir na verdade, a ser quase opostas. O deslocamento de Wells forçou-o a lutar para preservar a autoconfiança do tipo “nós podemos fazer” que caracterizou o Iluminismo, a modernidade e a modernidade iluminista em relação ao Zeitgeist de uma catás­trofe iminente, de uma segunda queda e do Apocalipse final. (“É possível esquecer agora, setenta anos depois, como era profunda­mente deprimido o nosso mundo em 1913, como pareciam gran­des as possibilidades negativas com respeito à sobrevivência da civilização”, como diz Clute.) Minha variedade de deslocamento, por outro lado, manifestava-se na resistência ao Zeitgeist impre­vidente do admirável mundo novo; o mundo satisfeito consigo mesmo, frio e insensível; um mundo que acreditava não haver alternativa, satisfeito por viver na incerteza e, assim, tendente a ver a segunda queda como a segunda vinda, e a fingir que “pode fazê-lo”, ao mesmo tempo em que faz o possível para evitar fazer aquilo que ansiava e exigia ser feito a fim de preservar e redimir suas vítimas intencionais e suas baixas colaterais.
  Em suma, Wells lutou, apesar de todas as dificuldades, para preservar sua autoconfiança. O que tentei fazer foi preservar nos­sa autocrítica; apesar de todas as chances e pretensões em contrá­rio, foi minar ou pelo menos enfraquecer nossa presunção. Wells procurou a área iluminada sob as nuvens sombrias; eu tentei reve­lar as rochas escuras e as marés negras que espreitam por trás dos faróis brilhantes, mas improvisados, ad hoc e efêmeros.
  E no entanto... O espírito da época deve ter dado uma guinada de 180 graus, protagonistas e antagonistas podem ter mudado de lado, mas o que toda aquela turbulência não conse­guiu fazer foi cortar mais um elo que sustenta a hipótese de uma afinidade eletiva. Aqui está ele, a declaração de despedida escri­ta por Wells nas páginas finais de The Shape of Things to Come em nome do “último governo da Terra”, sua última palavra e seu pedido de desculpas por ter deposto as armas, a ser divulgado quando este chegasse à conclusão de que “não havia mais nada que o governo pudesse fazer” (uma declaração, recordemos, ela­borada por H.G. Wells nas profundezas de um desespero que se espalhava pelo mundo):

Este é o dia, esta é a hora do alvorecer para a humanidade unida. O Martírio do Homem chegou ao fim. De um polo a outro não resta agora um único ser humano no planeta sem uma boa perspectiva de autorrealização, saúde, influência e liberdade. Não há mais escravos; nem pobres; nem pessoas destinadas de nascença a uma condição inferior; nem sentenciadas a longos e inúteis períodos de encarceramento; nem doentes da mente ou do corpo que não sejam ajudados por todos os poderes da ciência e os serviços de guardiães interessados e capazes. O mundo inteiro está diante de nós para seguirmos nossa vontade, na medida de nossos poderes e de nossa imaginação. A luta pela existência material chegou ao fim. Foi vencida. A luta pela verdade e a indescritível necessidade que é a beleza começa agora, sem o estorvo de nenhum imperativo da luta inferior. Ninguém precisa viver menos ou ser menos que o seu máximo.

Defendendo a mudança no auge da celebração autocongra­tulatória de um mundo caracterizado por uma opulência e um conforto sem precedentes, eu teria de fazer muito esforço se pre­cisasse acrescentar ou retirar uma única sentença dessa descri­ção de um mundo em que vale a pena viver e pelo qual vale a pena lutar. Mas não senti essa necessidade. E ainda não sinto.
Zygmunt Bauman
Enviado por Germino da Terra em 14/02/2014
Alterado em 01/01/2015
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