retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


Dezembro e o amor, por Martha Medeiros na Revista O Globo em 8 de dezembro de 2013

Ele teve seu prestígio, mas acabou sendo trocado pela pai­xão instantânea e pelo sexo ocasional. Estou falando do amor, lembra dele? Pois é, viveu melhores dias. Nessa era dos entusiasmos superficiais, ficou cafona falar de amor. Ca­sais agora se unem por desejo, oportunidade ou conveniên­cia. Todos querem se apaixonar amanhã e somar mais um nome ao seu currículo pessoal de aventuras, mas cultivar um amor para sempre? Cruzes. O amor, para os desencan­tados do século XXI, dei­xou de ser fotogênico e inspirador. Já deu os ver­sos que tinha que dar. Quem teria paciência e tempo, hoje, para se de­dicar a uma só pessoa? O amor faz sofrer e, além disso, não rende uma boa história para repartir com os amigos, não vira matéria de Segundo Ca­derno, foi barrado das redes sociais.
  O amor segue valoriza­do, apenas, no cinema e nos livros. A arte ainda investiga esse sentimen­to que teima em não ser da forma que o idealiza­mos. O amor quase sem­pre se apresenta como difícil, seja por diferen­ças raciais, sociais e de idade, ou porque um dos amantes é casado, ou por ser vivido à distância, ou ainda porque as famílias não aprovam a união, no melhor estilo Capuleto e Montecchio (só que em vez de os pais encrencarem, agora quem encren­cam são os filhos do primeiro casamento).
  Ainda assim, eu arriscaria dizer que nada é mais pode­roso do que o que a gente sente. Nada. Nem mesmo o que a gente pensa.
 O amor é bem mais exigente do que a paixão efêmera: ele pressupõe a construção de duas vidas a partir de uma simples troca de olhares, que é como tudo geralmente co­meça. Enquanto a paixão se esgota em si mesma e não es­tá interessada no amanhã, o amor é ambicioso, se preten­de eterno, e para pavimentar esta eternidade não mede esforços. É uma loucura disfarçada de sanidade.
  Não fosse uma loucura, o amor não seria o que é: lírico e profundo, rebelde e transformador. Amar é a transgressão maior. É quando rom­pemos com a nossa solidão para inaugu­rar uma vida compar­tilhada e, portanto, inédita.
Só mesmo a loucura inclassificável do amor para fazer as pessoas criarem trigê­meos, trocarem de so­brenome, dividirem o mesmo banheiro, re­lacionarem-se com os parentes do outro e achar tudo isso nor­mal e inebriante.
  Mesmo desprestigi­ado, devemos muito a ele. “Ainda que eu fale as línguas dos ho­mens e dos anjos, se não tiver amor, serei como o bronze que soa, ou como o cím­balo que retine.” São Paulo, primeira epís­tola dos coríntios, cap. 13, v. 1-7. Eis um pouquinho de refle­xão neste mês natali­no, em que o amor sai do limbo, ganha novo fôlego e avisa que ainda está vivo. Seu aparente descrédito é conse­quência da pressa de viver, da urgência dos dias, da ne­cessidade de se “aproveitar” cada instante, como se amar fosse um impedimento para o prazer. Francamente, o que se aproveita, de fato, quando não se sente coisa alguma? A resposta é: coisa alguma.
Martha Medeiros
Enviado por Germino da Terra em 10/12/2013
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