retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

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O que você vai ser quando crescer, por Martha Medeiros na Revista O Globo de 10 de novembro de 2013

Numa sociedade competitiva como a de hoje, não é de es­tranhar que o fator mais importante da vida seja o trabalho. Ele consome nosso tempo e nossas preocupações: temos que ganhar dinheiro, temos que ser os melhores, temos que superar a concorrên­cia e só então... Só en­tão o quê? Morrer?
  Crianças mal atin­gem os 5 anos e já co­meçam a ser sabatinadas sobre o futuro: “O que você vai ser quan­do crescer?” E as coi­tadinhas entram no jogo. Em vez de res­ponderem que pre­tendem ser surfistas, andarilhas, artistas de rua, participantes de um coro ou defenso­ras da natureza, res­pondem com a pri­meira profissão que lhes vêm à cabeça: ve­terinário, professor, bombeiro. No fundo, elas não têm a menor ideia do que querem ser nem os vestibu­landos têm —, mas intuem que sua iden­tidade estará atrelada ao que fizerem para se sustentar.
  Tanto isso é verdade que os anjinhos crescem, estudam, começam a trabalhar e um belo dia estão numa festa e são apresentados a alguém. Trocam um aperto de mãos, e a primeira pergunta entre os dois desconhecidos será: “O que você faz?”
E não se ouvirá como resposta “eu levo meus filhos ao es­tádio, eu participo de rallys aos domingos, eu sou campeão em palavras cruzadas, eu saio com meu cachorro todo final de tarde, eu vou ao cinema às quintas-feiras, eu namoro a mulher mais incrível do mundo, eu corro maratonas”.
  Você responderá que é professor, veterinário, bombeiro. Ou vão achar que você não tem uma vida.
  Mas você tem espero. Só que ela ocupa um espaço bem menor do que deveria na sua lista de prioridades. Você pas­sa um terço do dia trabalhando, e outro terço pensando na reunião de amanhã cedo, nas tarefas que ainda não foram concluídas, no cliente que está ameaçando deixar a empre­sa, no funcionário que não está corres­pondendo. No tercei­ro terço você dorme. Mal.
  Quem está viciado nesse esquema en­contra dificuldade em relaxar e talvez não consiga mais mudar a engrenagem. Mas pa­ra quem está entran­do agora no mercado de trabalho, vale ado­tar desde cedo uma postura mais equili­brada entre vida pes­soal e profissional, co­meçando por repen­sar essa questão da identidade: você não é o que você faz para ganhar dinheiro, você é o que você faz para ser feliz. É bom lem­brar que as horas de lazer também são muito produtivas, uma vez que elas abastecem nossa imaginação, nossos sonhos, ideias e reflexões, e, sem isso, aí é que não se cria identidade alguma, viramos apenas um número a mais nas estatísticas de mão de obra.
  Não sei o que o Brasil pretende ser quando crescer, mas to­mara que ele cresça com pessoas que, ao chegarem perto da morte, não tenham tantos arrependimentos pelo que deixa­ram de fazer quando ainda tinham tempo para fazê-las.
Martha Medeiros
Enviado por Germino da Terra em 28/11/2013
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