retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


Sobre as mídias Zygmunt Bauman diz a Benedetto Vecchi em Identidade, livro de entrevista traduzido por Carlos Alberto Medeiros e publicado pela Companhia das Letras

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Do meu ponto de vista, a última pergunta sobre a internet pede que atentemos para o papel dos novos meios de comunicação na forma­ção da opinião pública e da identidade coletiva. O que eu tenho em mente? Para mim, o livro precisa examinar dois outros temas: a iden­tidade e os novos meios de comunicação, assim como a “política da identidade” (a crise do multiculturalismo).
  Já discutimos antes esse tema controverso, o “multiculturalismo”. Eu disse então que o que é carne para alguns pode ser veneno para outros. A proclamação da “era multicultural” reflete, em minha opinião, a experiência de vida da nova elite global, a qual, sempre que viaja (e ela viaja muito, seja por avião ou na rede mundial de computadores), encontra outros membros da mes­ma elite global que falam a mesma língua e se preocupam com as mesmas coisas. Fazendo palestras pela Europa e outros lugares, tem me chocado o fato de as perguntas da plateia serem as mes­mas em toda parte...
  A proclamação da era multicultural é, entretanto, ao mesmo tempo uma declaração de intenções: uma recusa a fazer um julgamento e assumir uma posição; uma declaração de indiferença, de eximir-se em relação a pequenas querelas com referência a estilos de vida ou valores preferidos. Ela revela o caráter “culturalmente onívoro” da elite global: vamos tratar o mundo como uma gigantesca loja de departamentos com prateleiras cheias das mais variadas ofertas, e vamos ficar livres para vagar de um an­dar para o outro, experimentando e testando cada artigo à mos­tra, escolhendo-os segundo nossa vontade.
  Essa é uma atitude de gente que viaja — mesmo quando permanece em suas casas ou escritórios. Não é, porém, uma atitude fácil de adotar para a grande maioria dos habitantes do planeta, que permanece presa ao local de nascimento e, se de­sejasse ir para outros lugares em busca de uma vida melhor ou simplesmente diferente, seria detido na fronteira mais próxi­ma, confinada em campos para “imigrantes ilegais” ou “enviada de volta para casa”. Essa maioria é excluída do banquete mun­dial. Para ela não existe “bazar multicultural”. Seus membros frequentemente se encontram, como apontou Maria Markus, num estado de “existência suspensa”, apegando-se à imagem de um passado perdido, mas que se sonha restaurar, e à do pre­sente como uma aberração resultante do trabalho das forças do mal. Eles “se isolam” na atordoante cacofonia das mensagens culturais.
  Em nenhum momento dos últimos dois séculos, mais ou menos, as linguagens faladas respectivamente pelas elites instruídas e abastadas e pelo resto do “povo”, assim como as experiên­cias relatadas nessas linguagens, foram tão diferentes entre si.
  Desde o advento do Estado moderno, a elite instruída via a si mesma (correta ou equivocadamente, para o bem ou para o mal) como a vanguarda, as unidades avançadas da nação: es­tamos aqui para conduzir o resto do povo para o lugar a que já chegamos outros nos seguirão, e é nossa tarefa fazer com que se movam rapidamente. Essa noção de missão coletiva está agora quase que totalmente abandonada. O “multiculturalismo” é um polimento nessa retirada (ou uma desculpa para isso). É como se aqueles que louvam e aplaudem as divisões multicultu­rais estivessem dizendo: somos livres para nos tornar qualquer coisa que desejemos ser, mas “o povo” prefere ater-se à condição em que nasceu e foi ensinado a permanecer. Que o faça é pro­blema dele, não nosso.
  Você pergunta sobre o papel dos meios de comunicação na produção das identidades atuais. Eu preferiria dizer que a mídia fornece a matéria bruta que seus leitores/espectadores usam para enfrentar a ambivalência de sua posição social. A maioria do pú­blico de TV está penosamente consciente de que teve recusado o ingresso nas festividades mundiais “policulturais”. Não vive, e não pode sonhar viver, no espaço global extraterritorial em que habita a elite cultural cosmopolita. À multidão de pessoas que teve negado o acesso à versão real, a mídia fornece uma “extra­territorialidade virtual”, “substituta” ou “imaginada”.
  O efeito de “extraterritorialidade virtual” é obtido sincro­nizando-se a mudança de atenção e seus objetos para as vastas extensões do planeta. Milhões e centenas de milhões assistem às mesmas estrelas de cinema ou celebridades pop e as admiram, mudam simultaneamente do hevy metal para o rap, das calças boca de sino para a última moda em tênis atléticos, fulminam o mesmo inimigo público (global), temem o mesmo vilão (global) ou aplaudem o mesmo salvador (global). Por algum tempo, isso os eleva espiritualmente acima do chão em que não lhes é permi­tido mover-se fisicamente.
  A sincronização dos focos de atenção e dos temas de con­versa não é, evidentemente, equivalente a uma identidade com­partilhada, mas os focos e temas mudam com tal rapidez que dificilmente há tempo para se compreender essa verdade. Ten­dem a desaparecer de vista e ser esquecidos antes que tenha ha­vido tempo para tirar sua máscara. Mas antes de desaparecerem eles conseguem aliviar a dor da exclusão. Criam uma ilusão de liberdade de escolha como aquela de que Peer Gynt desfrutou e usufruiu, embora sustentar essa ilusão fosse uma tarefa assustadora e um esforço penoso gerando muita frustração e proporcionando poucos ganhos. Os momentos de felicidade eram entremeados por longos períodos de preocupação e tristeza. [“Peer Gynt, o herói (da peça de 1867) de Henrik Ibsen, obcecado a vida toda por encontrar a sua verdadeira identidade, resumiu a sua estratégia existencial: Tentei fazer o tempo parar — dançando!”]
  Se você deseja que eu ate os muitos fios que começamos a tecer, mas na maioria dos casos deixamos soltos, eu diria que a ambivalência que a maioria de nós experimenta a maior parte do tempo ao tentarmos responder à questão da nossa identidade é genuína. A confusão que isso causa em nossas mentes também é genuína. Não há receita infalível para resolver os problemas a que essa confusão nos conduz, e não há consertos rápidos nem formas livres de risco para lidar com tudo isso. Também diria que, apesar de tudo, teremos de nos confrontar vezes sem conta com a tarefa da “autoidentiflcação”, a qual tem pouca chance de ser con­cluída com sucesso e de modo plenamente satisfatório. É pro­vável que fiquemos divididos entre o desejo de uma identidade de nosso gosto e a escolha e o temor de que, uma vez assumida essa identidade, possamos descobrir, como o fez Peer Gynt, que não existe uma “ponte, se você tiver de bater em retirada”.
  E tenha cuidado ao optar por não enfrentar o desafio. Lem­bre-se das palavras de Stuart Hall:

  Já que a diversidade cultural é, cada vez mais, o destino do mundo moderno, e o absolutismo étnico, uma característica regressiva da modernidade tardia, o maior perigo agora se origina das formas de identidade nacional e cultural novas e antigas que tentam assegurar a sua identidade adotando versões fechadas da cultura e da comunidade e recusando o engajamento... nos difíceis problemas que surgem quando se tenta viver com a diferença.

  Tente, o máximo possível, evitar esse problema.
Zygmunt Bauman
Enviado por Germino da Terra em 28/11/2013
Alterado em 28/11/2013
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