retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


Tão óbvio, por Martha Medeiros na Revista O Globo de 3 de novembro de 2013
 
Sempre tive mais tendência a simplificar do que complicar, e agora isso se intensificou a ponto de eu começar a flertar com o budismo. Lendo alguns livros e assistindo a palestras, tenho percebido como o caminho para ser feliz é óbvio eu mesma fui acusada de escrever sobre coisas óbvias, e não tenho como me defender contra isso: escrevo obviedades, sem dúvida. Porém, me pergunto, intrigada: por que as obvie­dades andam tão ne­cessárias?
  É que normalmente o óbvio fica soterrado sob camadas e mais camadas de autoboi­cotes: as pessoas se irritam por besteiras, fazem escolhas idio­tas, brigam no trânsi­to, não se abrem so­bre o que sentem, desperdiçam energia à toa, desrespeitam o coletivo e são refratá­rias a tudo o que seja simples e fácil, já que a dor, a culpa e o ódio fazem parecer que elas têm uma vida mais profunda. Feli­cidade é algo que to­dos desejam e ao mesmo tempo rene­gam, já que não sabe­riam lidar com algo que lhes deixaria tão soltos e leves. Com péssimo ibope junto à elite intelectual, a felicidade (que nada tem a ver com bobice, mas com paz de espírito) ficou associada à superficialidade, enquanto que o sofrimento produz arte e filosofia.
  Sob esse aspecto, óbvio que ser um deprimido é mais charmoso.
 Pena que isso seja um estereótipo. Ora, filosofia busca a consciência, que é chave para a felicidade, e a arte faz um bem danado a mentes atormentadas, que através dela con­seguem realizar catarses e se conectar com um mundo que lhes parece hostil. Ou seja, não importa quem ou de que for­ma, todos querem viver melhor, sem esquecer que esse “melhor” tem sentidos diversos para uns e para outros. Seja qual for o significado de “melhor” para você, ele é a sua per­seguição. Só que alguns escolhem vias cheias de obstáculos e acabam não aproveitando a viagem.
  O bem-estar vem de onde? Óbvio: da convivência com amigos, de relações saudáveis, de não per­mitir que frustrações e ressentimentos virem a tônica da vida, de não reagir com exage­ro diante de insigni­ficâncias, da valoriza­ção das miudezas grandiosas do cotidia­no, de sentir-se dispo­nível para o novo e o diferente a fim de en­riquecer a própria existência, mantendo uma espiritualidade básica que envolva a generosidade, a com­paixão, a tolerância (não é obrigatório ter religião para isso). Mais: de aceitar as mudanças, de trocar de perspectiva quan­do se estiver obcecado com algo, de buscar a evolução da mente.
Inventei a pólvora? Estou dizendo alguma coisa que você não esteja careca de saber? É tudo tão evi­dente, tão incontestável, que dá até sono. O que você ainda está fazendo lendo essa página? Acorde e vá pra rua. 
  Aí você sai e cruza com centenas de outros cidadãos para quem o óbvio é uma teoria sem aplicação prática, e que con­tinuam encrencando-se de forma absurda, a fim de volta­rem para casa estressados e sentindo-se vítimas do próprio destino. Charmosos, sem dúvida. Resta saber a que custo pessoal. 
Martha Medeiros
Enviado por Germino da Terra em 07/11/2013
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras