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‘As mulheres são machistas’, Mary del Priore diz à Renata Izaal no ela d’O Globo de sábado 17.8.2013

A avó de Mary del Priore costumava usar a expressão “gente de categoria” para se referir às pessoas cultivadas e gentis, que valorizavam e respeitavam os outros e a si mesmas. Uma ideia que a escritora e historiadora trouxe para a sua vida pessoal e também para a pro­fissional. Ela anda preocupada com o que chama de “sucateamento e vulgari­zação” das pessoas e das cidades. E mais preocupada ainda com a falta de projetos que levem a mulher brasileira para frente. Não à toa, seu novo livro começa com um convite às leitoras pa­ra que conheçam “a história de suas mães e suas avós”.
  Na verdade, “Histórias e conversas de mulher” (Ed. Planeta) começa bem antes da geração de nossas avós. Mary traça um panorama da experiência da mulher brasileira do período colonial aos dias atuais, com o foco em três grandes áreas: o casamento e a família, a maternidade e as transformações do corpo. Não há uma tese a ser defendi­da, mas um convite à reflexão.
  — Eu não concluo nada. Mas convido as mulheres a pensar as transforma­ções pelas quais passamos no decorrer da História do Brasil. Temos conquistas formidáveis, mas muitas questões que ainda precisam de nossa atenção ex­plica a autora.

segredos de alcova
Nos mais de 30 livros que já publicou, Mary del Priore tem se dedicado a revelar a história da vida privada do Brasil. Sexualidade, erotismo, romances, feminismo e os segredos de alcova de personagens históricos, como D. Pedro I, a Impera­triz Leopoldina ou a Princesa Isabel.
  — Esse é o grande tema da minha obra. Acho que é uma escolha muito motivada pela geração a que pertenço, que viveu as conquistas femininas e mais tarde teve que lidar com as conse­quências ruins disso diz Mary.
  Como muitas de sua geração, Mary del Priore casou cedo, aos 21 anos, de véu e grinalda, e teve três filhos. Não se­ria diferente para uma jovem de boa fa­mília, educada no tradicional Colégio Sion. Também como outras de sua gera­ção, viu o casamento acabar quando o divórcio ainda era um tabu, experimen­tou a dificuldade de conciliar filhos e carreira e reconstruiu a vida afetiva com um novo casamento. Hoje, lida com os efeitos do tempo, que parece ter estica­do para a sua geração (mas não os te­me), é avó de dois, e desfruta de um prestígio profissional incontestável.
  — Acredito que a gente é fruto do nosso tempo. Eu casei, tive filhos e só entrei na faculdade aos 28 anos. Minha geração viveu a liberdade e a indepen­dência, mas nossas conquistas profissi­onais tiveram um impacto na ideia de família da época. Há quem ache que is­so foi um ônus. Hoje, temos que lidar com o envelhecimento, que também está sendo visto como um ônus aler­ta Mary, que não vê nenhum problema em revelar a idade. Tenho 60 anos. Na verdade, acho que faltam mulheres que assumam a idade.
  Mas as mulheres, o livro de Mary deixa claro, têm assumido um bocado de ou­tras coisas. Os filhos, as despesas da ca­sa, posições de destaque no mercado de trabalho, o cuidado com os pais idosos, a responsabilidade pelo seu próprio fu­turo financeiro. Quem quer depender do marido hoje e dos filhos na velhice?
  Para a escritora essa é uma questão que precisa ser tratada pelas mulheres, a ligação cruel entre carência e depen­dência.
  — Acho que as brasileiras precisam tratar a carência saindo do individua­lismo pelo coletivo, dando novos para­digmas para o país. Para muitas, o casa­mento é como um colchão, uma fonte de equilíbrio. Sem um marido e filhos, elas não sabem o que fazer. Mas a soli­dão pode ser usada para se ir da inércia à criatividade diz Mary.
  Para alguém cujo trabalho é pesqui­sar, refletir e escrever, a solidão pode ser parte do cotidiano. Ou talvez essa não seja a palavra adequada, nem mes­mo uma questão.
  — Não gosto daquela história de ‘eu preciso aprender a ser só’. Sabe a canção? Prefiro fazer piada disso brinca Mary, que vive com o marido (o segun­do) em Teresópolis e trabalha no escri­tório que montou em casa.
  Há dez anos ela trocou o magistério na USP pela carreira de escritora. Deixou São Paulo pelo interior do Rio (por conta do tal sucateamento das grandes cidades), onde vive numa casa que está em sua família há quatro gerações. O marido é egípcio, nascido em Alexandria, e passa uma parte do ano viajando a trabalho. Uma vez por semana, Mary vem ao Rio para dar aula na pós-graduação da Universidade Salgado de Oliveira e almoçar com a mãe. O resto do tempo ela está em casa, com os dois cachorros, trabalhando. Não há tempo para sentir-se só.
  Eu sou disciplinada. Acordo e durmo cedo. As sete da manhã estou no es­critório e trabalho até a hora do alma­ço. À tarde, organizo a pesquisa do dia seguinte. Caminho quatro quilômetros diariamente e mexo no jardim (que é enorme, bonito e foi todo feito por ela). Aqui a noção de tempo é outra diz. Tempo, aliás, é coisa que as brasilei­ras gastam com o corpo. E muito. O problema é o porquê.
  — Como diz a Miram Goldenberg, as mulheres têm o corpo como capital. Elas constroem sua identidade através do olhar do homem, transformando os seus corpos em objetos de consumo. Não é à toa que adoram ser chamadas de algo comestível, essa coisa esdrúxula que são as mulheres frutas afirma Mary, ressaltando que os critérios de beleza mudam radicalmente de acordo com a classe social, mas o objetivo de agradar ao homem, não. São as mulhe­res frango para uns e as filés para outros.

homens em ereção constante--
Esse tipo de submissão, alerta a escrito­ra, é proposital e tem sido estudado há séculos pela Filosofia, as Ciências Soci­ais e até a Psicanálise. Há mulheres que se submetem ao olhar masculino para tirar alguma vantagem disso, como se quisessem permanecer o sexo frágil. Mas o olhar masculino é um cárcere.
  — Apesar de todas as conquistas fe­mininas, ainda existem mulheres que preferem ser como animais de compa­nhia. E pior, elas são machistas e educam os filhos para o serem também. E, assim, as próprias mulheres desvalori­zam as suas conquistas indigna-se Mary, que se mantém otimista. Acre­dito nessa geração de 20 e poucos anos. Elas sabem que a maternidade não é necessariamente a sua realização co­mo ser humano, estão descoladas do modelo da família tradicional e do ca­samento como fonte de sustento material e afetivo.
  E no meio disso tudo, como ficam os homens?
  — Eles têm um fardo para carregar. Reagiram com violência às conquistas femininas, até por que elas acontece­ram de forma abrupta no Brasil. Hoje, de uma maneira geral, lidam mal com isso, mas há nas parcelas mais educa­das da população aqueles que já procuram por um papel diferente observa Mary, que agora se dedica a uma “His­tória dos homens no Brasil”. Será um alívio para eles quando as mulheres entenderem que a juventude é só uma ca­racterística. Acho que vai ser reconfor­tante para o homem mais velho não precisar viver em ereção constante, tomando Viagra.
 
Mary del Priore e Renata Izaal
Enviado por Germino da Terra em 24/08/2013
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