retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


Sobre Thoreau*, por Ralph Waldo Emerson — apêndice de Walden; ou a vida nos bosques

Entre seus pares folga uma rainha,
E a atenta Natureza conhece os seus,
Nas vilas, matas, vales e céus,
E como amante a eles se aninha,
Num passeio à mata, oferece a seu filho
Em generosa dádiva sem empecilho
Mais tesouros do que aos estudiosos
Numa centena de exames cuidadosos.

Como que trazido pelas brisas nasceu,
Como que criado pelas pardais cresceu,
Como se soubesse por senha secreta
Onde distante cresce a orquídea discreta.

Henry David Thoreau era o último descendente masculino de um antepassado francês que chegou a este país vindo da ilha de Guernsey. Seu caráter mostrava traços ocasionais derivados dessa linhagem, numa combinação singular com um gênio saxão muito forte.
  Thoreau nasceu em Concord, Massachusetts, em 12 de julho de 1817. Graduou-se em Harvard em 1837, mas sem distinção literária. Iconoclasta em literatura, ele raramente agradecia aos préstimos das faculdades à sua formação, tendo-as em baixa estima, apesar de sua grande dívida para com o ensino universitário. Depois de sair da universidade, ele se associou ao irmão para ensinar numa escola particular, mas logo desistiu. O irmão era um fabricante de lápis de grafite, e durante algum tempo Henry se dedicou a esse ofício, acredi­tando que poderia fazer um lápis melhor do que os que estavam em uso. Depois de concluir suas experiências, ele apresentou seu trabalho a químicos e artistas em Boston e, tendo obtido seus certificados de excelência do produto, equivalente aos melhores fabricados em Londres, voltou para casa satisfeito. Os amigos o parabenizaram, pois agora tinha aberto caminho para fazer fortuna. Mas ele respondeu que nunca faria um outro lápis. “Por que faria? Não vou fazer de novo algo que já fiz uma vez.” Retomou seus passeios intermináveis e sua miscelânea de estudos, adquirindo diariamente novos conhe­cimentos da Natureza, mas sem nunca falar em zoologia ou botânica, pois, mesmo sendo um grande estudioso dos fatos naturais, era indiferente à técnica e à ciência dos livros.
  Nessa época, quando todos os seus amigos estavam esco­lhendo uma profissão ou dispostos a iniciar alguma atividade lucrativa, o rapaz forte e saudável, recém-saído da universi­dade, inevitavelmente estaria pensando na mesma questão, e foi necessária uma grande e rara firmeza para rejeitar todos os caminhos já trilhados e manter sua liberdade solitária, ao preço de desapontar as expectativas naturais da família e dos amigos: ainda mais difícil porque ele era de uma absoluta integridade, consciencioso em garantir sua independência e convicto de que todos tinham a mesma obrigação. Mas Thoreau nunca fraquejou. Era um protestante nato. Recusou-se a trocar suas amplas ambições teóricas e práticas por algum ofício ou pro­fissão estreita, atendendo a um chamado muito mais alto, a arte de bem viver. Se desprezava e enfrentava a opinião dos outros, era apenas porque estava mais empenhado em conciliar suas ações com suas crenças. Nunca ocioso ou acomodado, ele preferia, quando precisava de dinheiro, ganhá-lo com algum trabalho manual que lhe agradasse, como construir um barco ou tinia cerca, fazer um plantio, um enxerto, uma medição topográfica ou outros serviços rápidos, sem se comprometer a longo prazo. Com seus hábitos austeros e poucas necessidades, sua habilidade em trabalhos na madeira e seu bom domínio aritmético. Thoreau tinha grande competência para morar em qualquer parte do mundo. Para suprir suas necessidades, precisava de menos tempo do que qualquer outra pessoa, e assim garantia tempo livre para si.
  Sua grande facilidade para mensuração, resultante de seu conhecimento matemático e do hábito de tomar as medidas e distâncias dos objetos que o interessavam, o tamanho das árvores, a profundidade e a extensão de lagos e rios, a altura das montanhas e a distância aérea entre seus cumes favoritos — isso e mais seu íntimo conhecimento do território em volta de Concord o conduziram à profissão de agrimensor. Ela lhe oferecia a vantagem de levá-lo constantemente a novas áreas isoladas, e ajudava em seus estudos da Natureza. Sua precisão e habilidade nesse ofício logo foram reconhecidas, e não lhe faltava serviço.
  Henry podia resolver facilmente problemas topográficos, mas era diariamente perseguido por questões mais sérias, que enfrentava com bravura. Questionava todos os costumes, e queria assentar toda a sua prática sobre um fundamento ideal. Era um protestante à l’outrance, e raras são as vidas de tantas renúncias. Nunca se formou em nenhuma profissão, nunca se casou; vivia sozinho; nunca ia à igreja; nunca votou; recusou-se a pagar tini imposto ao Estado; não comia carne, não tomava vinho, nunca usou tabaco; embora estudasse a Natureza, não utilizava armas nem armadilhas. Sua escolha, certamente sábia para ele, foi ser o cavaleiro solitário a serviço da mente e da Natureza. Não tinha talento para a riqueza, e sabia ser pobre sem qualquer ponta de deselegância ou sordidez. Talvez tenha tomado esse rumo de vida sem grande deliberação, mas aprovou-o à luz da experiência posterior. Como escreveu em seu diário: “Amiúde sou lembrado de que, fosse-me conce­dida a riqueza de Creso, meus objetivos ainda deveriam ser os mesmos, e mus meios essencialmente os mesmos”. Não tinha tentações a combater — desejos, paixões ou o gosto por ninharias elegantes. Uma bela casa, roupas finas, as maneiras e as conversas das pessoas altamente cultivadas não signifi­cavam nada para ele. Preferia um bom índio, e considera tais refinamentos como obstáculos à conversação, desejando manter a conversação nos mais simples termos. Declinava convites para jantares, porque ali todos se misturavam e não poderia ter um contato individual direto. ‘‘Eles se orgulham’’, disse Henry, ‘‘que seus jantares saíam caros, eu me orgulho que meu jantar saia barato’’. Quando lhe perguntavam à mesa qual prato preferia, ele respondia: ‘‘O que estiver mais perto’’. Não gostava de vinho, e nunca teve um vício na vida. Dizia: “Tenho uma leve lembrança do prazer em fumar hastes secas de lírio, antes de ser adulto. Costumava ter um estoque. Nunca fumei nada mais pernicioso”.
  Thoreau decidiu ser rico diminuindo suas necessidades e atendendo pessoalmente a elas. Em suas viagens, usava o trem apenas para atravessar a região que não se referia a seu objetivo naquele momento, percorria a pé centenas de quilômetros, evitava as estalagens, pagava para se alojar na casa de agricultores e pescadores, como opção mais barata e mais agradável para ele, e porque facilitava encontrar as pessoas e as informações que queria.
  Havia algo de militar em sua natureza, que não se dobrava, sempre viril e capaz, raramente terno, como se se sentisse autêntico estando em oposição. Precisava de uma falácia para desmascarar, de um erro para ridicularizar; necessitava, por assim dizer, de uma pequena sensação de vitória, de um rufar de tambores, para exercer a plenitude de suas capacidades. Não lhe custava nada dizer ‘‘Não’’; na verdade, achava muito mais fácil do que dizer ‘‘Sim’’. Era como se seu primeiro instinto, ao ouvir uma proposição, fosse contestá-la, tão impaciente ficava com as limitações de nosso raciocínio cotidiano. Esse hábito, naturalmente, esfria um pouco as afeições sociais; mesmo que, ao final, o interlocutor o absolva de qualquer malícia ou falsidade, ainda assim prejudica a conversa. Por isso companheiro imparcial mantinha relações afetuosas com alguém tão puro e franco. Como disse um de seus amigos, ‘‘Amo Henry, mas não consigo gostar dele; ao tomá-lo pelo braço, logo sinto como se tosse o braço de um olmo”.
  Apesar disso, ermitão e estoico como era, Henry real­mente gostava de calor humano: entregava-se de coração, como uma criança, à companhia de jovens que lhe eram que­ridos e adorava entretê-los, como só ele conseguia, contando as variadas e intermináveis anedotas de suas experiências nos campos e nos rios: e estava sempre pronto para organizar uma festa dos mirtilos ou uma colheita de castanhas ou uvas. Certo dia, comentando um discurso público, Henry observou que nada que fazia sucesso entre o público prestava. E eu disse: “Quem não gostaria de escrever algo que todos possam ler, como Robinson Crusoé? E quem não lamenta ao ver que seu texto não tem um tratamento materialista correto, capaz de agradar a todos?”. Henry objetou, claro, e declarou que as melhores palestras eram as que alcançavam apenas uma mi­noria. Mas, na hora do jantar, uma moça, ao saber que ele ia dar uma palestra no Liceu, perguntou-lhe diretamente “Se a palestra ia ser uma história bonita e interessante, como a que ela queria ouvir, ou se ia ser uma daquelas coisas filosóficas antiquadas que não lhe interessavam”. Henry se virou para ela e se pôs a refletir consigo mesmo, esforçando-se em acreditar, como pude perceber, que ele teria assunto capaz de interessar a moça e seu irmão, que se levantariam e iriam assistir se fosse uma boa palestra para eles.
  Ele era um orador e um ator da verdade, de nascença, e estava sempre entrando em situações críticas por causa disso. Em qualquer ocasião, todos os presentes se interessavam em saber o partido que Henry tomaria e o que diria; ele não frustrava as expectativas e emitia juízos originais a cada emer­gência. Em 1845, construiu pessoalmente uma pequena casa de madeira nas margens do Lago Walden, e lá viveu dois anos sozinho, numa vida de trabalho e estudo. Essa iniciativa era muito própria e adequada a ele. Ninguém que o conhecesse to­maria isso como afetação. Distinguia-se dos vizinhos mais nas ideias do que na ação. Logo que esgotou as vantagens daquele isolamento, saiu de lá. Em 1847, não aprovando o destino de alguns gastos públicos, se negou a pagar o imposto municipal e foi preso. Um amigo pagou o imposto por ele, e Henry foi solto. O mesmo problema ameaçou surgir no ano seguinte. Mas, como seus amigos pagaram a taxa a despeito de seus protestos, creio que ele parou de resistir. Nenhuma crítica ou ridículo exerciam qualquer efeito. Imperturbável, ele expunha integralmente sua opinião, sem fingir crer que fosse a opinião do interlocutor. Pouco importava se todos os outros presentes fossem de opinião contrária. Certa vez, ele foi à biblioteca da universidade para pegar alguns livros. O bibliotecário não quis fazer o empréstimo. Thoreau foi até ao reitor, o qual lhe expli­cou as regras e normas, que permitiam o empréstimo de livros a moradores formados, a clérigos que fossem ex-alunos e a alguns outros residentes num raio de dezesseis quilômetros em tomo da universidade. Thoreau explicou ao reitor que a estrada de ferro tinha destruído a antiga escala das distâncias — e que nos termos daquelas suas regras a biblioteca era inútil, sim se­nhor, e reitor e universidade também; que o único benefício que ele reconhecia à universidade era sua biblioteca; que, naquele momento, não só tinha uma necessidade imperiosa de livros, como também precisava de uma grande quantidade de obras, e lhe assegurou que era ele, Thoreau, e não o bibliotecário, o guardião adequado dos livros. Em suma, o reitor considerou o requerente tão convincente, e as regras começaram a parecer tão ridículas que acabou lhe concedendo um privilégio que, em suas mãos, veio a se revelar inesgotável.
  Jamais existiu americano mais autêntico do que Thoreau. Seu amor pelo país era genuíno, e sua aversão ao gosto e aos modos ingleses e europeus chegava às raias do desprezo. Ou­via com impaciência as notícias ou os bonmots colhidos nos círculos londrinos; embora tentasse ser cortês, essas anedotas o cansavam. Todos os homens estavam se imitando entre si, e seguindo um modelo limitado. Por que não podem viver afas­tados ao máximo, e cada qual ser um homem por si mesmo? O que Henry buscava era a natureza mais enérgica: queria ir ao Oregon, não a Londres. “Em todas as partes da Grã-Bretanha”, escreveu no diário, “foram descobertos vestígios dos romanos, suas urnas funéreas, seus acampamentos, suas estradas, suas moradas. Mas a Nova Inglaterra pelo menos não se funda em nenhuma ruína romana. Não precisamos lançar os alicerces de nossas casas sobre as cinzas de uma civilização anterior.”
  Mas, idealista como era, defendendo a abolição da escra­vatura, a abolição dos impostos e quase a abolição do governo, nem é preciso dizer que não se via representado na política atual, e era também quase igualmente contrário a todas as ca­tegorias de reformadores. Mesmo assim, prestava o tributo de seu invariável respeito pelo Partido Antiescravista. Havia um homem a quem honrava com excepcional apreço, tendo travado conhecimento pessoal com ele. Antes que se dissesse qualquer palavra positiva em favor do capitão John Brown, Henry man­dou recado a inúmeras casas em Concord, avisando que iria discursar num salão público sobre a posição e o caráter de John Brown, num domingo à noite, e que estavam todos convidados a comparecer. O Comitê Republicano e o Comitê Abolicionista lhe mandaram dizer que era prematuro e desaconselhável. Ele respondeu: “Enviei o aviso a vocês não pedindo conselho, mas para anunciar que vou falar”. O salão ficou lotado desde cedo com gente de todos os partidos, e o sincero tributo de Henry ao herói foi ouvido respeitosamente por todos, e por muitos com uma solidariedade que o surpreendeu pessoalmente.
  Diz-se que Plotino sentia vergonha do próprio corpo, e é muito provável que tivesse boas razões para tanto — que seu corpo não era um bom servo, e que o filósofo não tinha facili­dade para lidar com o mundo material, como sói acontecer a homens de inteligência abstrata. Mas Thoreau era dotado de um corpo extremamente adaptado, que lhe servia muito bem. Era baixo, de constituição sólida, tez clara, olhos azuis sérios e intensos e uma fisionomia grave — nos últimos anos, uma bela barba lhe cobria o rosto. Tinha os sentidos aguçados, uma estrutura sólida e compacta, as mãos fortes e hábeis no uso de ferramentas. E havia uma maravilhosa adequação entre corpo e mente. Ele podia medir oitenta metros com seus passos com um grau de precisão maior do que qualquer outra pessoa com metro e trena. E dizia que encontrava seu caminho nas matas à noite mais pelos pés do que pela visão. Conseguia calcular muito bem a olho a medida de uma árvore; e calculava o peso de um porco ou de um bezerro, como um comerciante. Numa caixa com 35 quilos ou mais de lápis soltos, ele apanhava ra­pidamente uma dúzia exata por vez. Nadava, corria, patinava e remava bem, e provavelmente era capaz de percorrer a pé, num dia de jornada, uma distância maior do que a maioria dos conterrâneos. E a relação entre corpo e mente tinha uma sintonia ainda mais fina do que assinalamos. Ele dizia que precisava de cada passada que davam suas pernas. O ritmo de suas caminhadas dava o ritmo de suas palavras escritas. Fechado em casa, não escrevia uma única linha.
  Henry era dotado de sólido bom senso, como aquele que Rose Flammock, a filha do tecelão no romance de Scott, elogia em seu pai, como um padrão de medida que, se mede morins e panos de fralda, mede igualmente bem tapeçarias e tecidos de ouro. Ele sempre tinha um novo recurso. Quando eu estava plantando árvores florestais e tinha conseguido meio celamim de bolotas de carvalho, ele comentou que apenas uma pequena parte prestaria e começou a examiná-las e selecionar as boas. Mas, vendo que isso tomava tempo, disse: “Acho que, se você puser todas elas na água, as boas vão afundar”; fizemos a ex­periência e deu certo. Sabia projetar um jardim, uma casa ou um celeiro; teria competência para comandar uma “Expedição de Exploração ao Pacífico”; poderia dar conselhos judiciosos nos mais graves assuntos públicos ou privados.
  Ele vivia o dia de hoje, e a memória não o mortificava nem o obstruía. Se tinha enunciado alguma nova proposição ontem, podia chegar hoje com uma outra igualmente revolu­cionária. Muito trabalhador, e dando, como todas as pessoas altamente organizadas, um grande valor ao tempo, ele parecia ser o único homem com tempo livre na cidade, sempre pronto para sair em qualquer excursão promissora ou para entabular longas conversas até altas horas. Sua percepção aguda nunca se detinha diante de suas regras de prudência diária, e estava sempre aberta às novas ocasiões. Thoreau apreciava e fazia uso da comida mais simples possível, mas, quando alguém defendia alguma dieta vegetariana, ele julgava que as questões das dietas eram muito triviais, dizendo: “o homem que mata o bisão para comer vive melhor do que o homem que faz suas refeições no Graham”. Dizia também: “Você pode dormir ao lado da ferrovia, sem nunca ser incomodado: a Natureza sabe muito bem quais são os sons que merecem ser ouvidos, e decidiu não ouvir o apito do trem. Mas as coisas respeitam a mente devota, e jamais um êxtase mental foi interrompido”.
  Ele notou algo que lhe ocorria com frequência: depois de receber de longe uma planta rara, logo encontrava a mesma nos locais que frequentava. E aqueles lances de sorte que acon­tecem apenas aos bons jogadores aconteciam a ele também. Certo dia, andando com um estrangeiro que perguntava onde poderia encontrar pontas de flechas índias, ele respondeu: “Em toda parte”, inclinou-se e na mesma hora recolheu uma do chão. Em Monte Washington, na ravina de Tuckerman, Thoreau sofreu uma queda feia e torceu o pé. No momento em que ia se levantar, ele viu pela primeira vez as folhas da Arnica mollis.
  Mas seu bom senso robusto, auxiliado pelas mãos for­tes, os sensos aguçados e uma vontade férrea, não basta para explicar a superioridade que resplendia em sua vida simples e retirada. Devo acrescentar o fato fundamental de que ele possuía uma extrema sabedoria, própria de uma rara classe de homens, que lhe mostrava o mundo material como meio e símbolo. Essa descoberta, que por vezes fornece uma certa luz ocasional e intermitente aos poetas, nele era uma percepção constante; mesmo que ela pudesse ser toldada por qualquer falha ou defeito de temperamento, ele nunca desobedecia à visão celestial. Quando jovem, um dia ele disse: “O outro mundo é toda a minha arte; meus lápis não desenharão senão ele, meu canivete não cortará nada além dele; não é um meio para mim”. O outro mundo era a musa e o gênio que regia suas opiniões, suas conversas, estudos, trabalhos e rumos de vida. Converteu-o num juiz perspicaz dos homens. Ele media a pessoa a uma vista d’olhos e, mesmo insensível a alguns traços culturais mais refinados, conseguia avaliar muito bem seu peso e seu calibre. E imprimiu a marca de genialidade que às vezes surgia em sua conversação.
  Thoreau entendia imediatamente o assunto em questão e enxergava as limitações e a pobreza de seus interlocutores, de modo que nada parecia se ocultar a olhos tão terríveis. Tenho conhecido constantemente vários jovens de sensibilidade, que se converteram num instante à crença de que tal era o homem que buscavam, o homem dos homens, capaz de lhes dizer tudo o que deviam fazer. A relação de Henry com eles nunca era afetuosa, e sim superiora, didática, desdenhando suas tri­vialidades apenas muito lentamente concedendo, ou não, a promessa de visitá-los na casa deles ou mesmo de recebê-los na sua. “Iria caminhar com eles?” “Não sabia. Não havia nada tão importante para ele quanto suas caminhadas; não tinha caminhada sobrando para desperdiçar com companhias.” Vinham se oferecer respeitosamente, mas ele os dispensava. Admiradores amigos se ofereciam para levá-lo, custeando-lhe a viagem, ao rio Yellowstone, às Índias Ocidentais, à América do Sul. Mas, mesmo que suas negativas fossem absolutamente sérias e ponderadas, fazem lembrar a resposta daquele janota Brummel, num contexto totalmente diferente, ao cavalheiro que lhe ofereceu a carruagem durante um aguaceiro: “Mas então aonde você irá?” e que silêncios acusadores, e que discursos penetrantes e irretorquíveis, derrotando todas as defesas, seus amigos podem lembrar!
  Thoreau dedicou seu gênio aos campos, às colinas e às águas de sua terra natal, com um amor tão incondicional que se tornaram conhecidos e se fizeram interessantes a todos os leitores americanos e a pessoas no exterior. O rio a cujas margens nasceu e morreu, ele conhecia desde a nascente até a confluência com o Merrimack. Acompanhou-o por muitos anos, observando-o no verão e no inverno, em todas as horas do dia e da noite. O resultado do recente levantamento feito pela Comissão de Águas nomeada pelo Estado de Massachu­setts tinha sido alcançado por Henry em suas experiências pessoais, muitos anos antes. Toda ocorrência no leito, nas margens ou no ar acima do rio; os peixes, a desova e os ninhos, os hábitos e a alimentação; os insetinhos efemerópteros que uma vez por ano enchem o ar no final da tarde e são apanha­dos pelos peixes com tanta avidez que muitos morrem de congestão; os montes cônicos de seixos nos baixios do rio, os ninhos enormes de peixes miúdos, que às vezes ocupam e até transbordam da carriola; as aves que frequentam o local, garças, patos, tadomos, mobelhas, águias-pescadoras; cobras, ratos almiscarados, lontras, marmotas e raposas nas margens; tartarugas, rãs, relas e grilos que dão voz à orla todos eles lhe eram conhecidos, como que amigos e conterrâneos de Henry, o qual considerava um absurdo ou uma violência qualquer experiência de dissecação e ainda mais de medição esticando o animalzinho numa régua, de exibição do esqueleto ou a conservação de um esquilo ou de um pássaro em álcool. Gostava de discorrer sobre os hábitos do rio, como uma cria­tura em sentido próprio, mas sempre com exatidão e a partir de um fato da observação. Além do rio, conhecia igualmente os lagos da região.
  Um dos instrumentos que usava, para ele mais importante do que o microscópio ou o recipiente com álcool para outros investigadores, era um capricho que se desenvolveu nele por gosto, mas que aparecia como a mais séria proposição, a saber, que sua cidade natal e seus arredores constituíam o centro mais propício para a observação da Natureza. Ele afirmava que a Flora de Massachusetts continha quase todas as plantas importantes da América: a grande maioria dos carvalhos e dos salgueiros, os melhores pinheiros, os freixos, os plátanos, as faias, as árvores de nozes e castanhas. Ele devolveu Arctic Voyage de Kane a um amigo que lhe emprestara, com o comentário: “A maioria dos fenômenos registrados pode ser observada em Concord”. Parecia invejar um pouco o Polo, pela coincidência entre o nascer e o pôr do sol, ou pelo dia de cinco minutos depois de seis meses: um fato esplêndido que Annursnuc nunca tinha lhe proporcionado. Encontrou neve vermelha numa de suas caminhadas, e me disse que tinha esperanças de encontrar a Victoria regia em Concord. Era o defensor das plantas nativas e reconhecia explicitamente sua preferência pelos matos em vez das plantas importadas, pelo índio em vez do homem civilizado, e notava com prazer que as varas de salgueiro usadas como suporte do feijoeiro de seu vizinho tinham crescido mais do que os pés de feijão. Dizia: “Veja esses matos que têm sido carpidos por milhões de agricultores em todas as primaveras e verões, e mesmo assim prevaleceram, e agora aparecem triunfantes em todas as aleias, pastagens, lavouras e jardins, tamanhos são os vigores deles. Nós os insultamos com nomes vulgares — como Pigweed [‘capim-do-­porco’, caruru-da-angola], Wormwood [‘pau-verme’, losna], Chickweed [‘capim-pintinho’, morugem], Shad-blossom [‘flor-de-arenque’, nespereira-do-monte]” E continua: “Eles têm também belos nomes: Ambrosia, Stellaria, Amelanchier, Amaranthus etc.”.
  Creio que sua vontade de remeter tudo ao meridiano de Concord não nascia da ignorância ou da depreciação de outras latitudes e longitudes, sendo antes uma expressão jocosa de sua ideia de que todos os lugares se equivalem, e que o melhor lugar para cada pessoa é onde ela está. Ele colocou isso da seguinte maneira: “Penso que não se pode esperar nada de você, se esse torrão sob seus pés não lhe for mais doce do que qualquer outro neste ou noutro mundo”.
  A outra arma com que ele vencia todos os obstáculos na ciência era a paciência. Sabia ficar imóvel, como se fizesse parte da pedra onde se sentava, até que o pássaro, o réptil, o peixe que tinham se afastado dali voltassem e retomassem seus hábitos, ou mesmo, movidos pela curiosidade, se apro­ximassem e ficassem a observá-lo.
  Era um prazer e um privilégio caminhar com Thoreau. Conhecia a região como uma raposa ou uma ave, e percorria os locais livremente em veredas próprias dele. Conhecia cada trilha na neve ou no solo, e sabia que criatura tinha passado por ali antes dele. É preciso se submeter humildemente a um guia assim, e a recompensa era grande. Sob o braço levava um velho livro de partituras onde coletar plantas; no bolso, o diário e um lápis, um binóculo para os pássaros, microscópio, canivete e barbante. Usava um chapéu de palha, sapatos sólidos, calças cinzentas resistentes, para enfrentar as moitas de carvalhos e esmílaces, e para subir numa árvore por causa de algum ninho de gavião ou de esquilo. Entrava no lago para ver as plantas aquáticas, e suas fortes pernas eram elementos importantes de sua armadura. Neste dia que estou comentando, ele procurava Menyanthes, avistou-a do outro lado do lago e, ao examinar as florzinhas, concluiu que tinham florido fazia cinco dias. Tirou o diário do bolso e leu os nomes de todas as plantas que de­viam florescer naquele dia, o que mantinha anotado como um banqueiro que marca a data de vencimento de seus títulos. O Cypripedium iria vencer amanhã. Ele achava que, se acordasse de um transe nesta várzea, seria capaz de dizer pelas plantas em que época do ano estava, com uma margem de dois dias. A setófaga voava por ali, e também o belo pardal-do-norte, cujo encamado vivo “faz o observador apressado esfregar os olhos” e cujo canto límpido e agradável Thoreau comparava ao de um sanhaço que tivesse perdido a rouquidão. Então ele ouviu um canto que disse ser do rouxinol-dos-caniços, um pássaro que nunca tinha identificado e que procurava fazia doze anos, o qual, sempre que o via, estava se enfiando numa árvore ou numa moita, e que era inútil procurá-lo; a única ave canora que canta indiferentemente de dia e de noite. Eu lhe disse que devia se guardar de encontrá-lo e registrá-lo, para que a vida ainda tivesse algo para lhe mostrar. Henry respondeu: “O que você busca em vão durante metade de sua vida, um dia lhe cai por inteiro, toda a família reunida no jantar. Você busca como um sonho e, quando o encontra, torna-se sua vítima”.
  Seu interesse pelas flores e pelas aves tinha raízes muito fundas em seu espírito, e estava ligado à Natureza e o sig­nificado da Natureza, ele nunca tentou definir. Thoreau não faria um relatório com suas observações para apresentar à Sociedade de História Natural. “Por que faria? Se eu separasse a descrição de suas relações em minha mente, ela deixaria de ser válida ou verdadeira para mim: e eles não querem o que é assim”. Sua capacidade de observação parecia indicar outros sentidos adicionais. Ele via como que por um microscópio, ouvia como que com uma corneta acústica e sua memória era um registro fotográfico de tudo o que via e ouvia. E ninguém sabia melhor do que ele que não é o fato que importa e sim a impressão ou o efeito do fato em nossa mente. Todo fato jazia em glória em sua mente, como um modelo da ordem e da beleza do conjunto.
  Sua dedicação à História Natural era orgânica. Thoreau admitia que às vezes se sentia um sabujo ou uma pantera, e que se tivesse nascido entre os índios teria sido um caçador feroz. Mas, reprimido por sua cultura do Massachusetts, ele exercia a caça nessa forma branda da botânica e da ictiologia. Sua intimidade com os animais parecia aquilo que Thomas Fuller comentava a respeito do apiologista Butler: “ele contava coisas às abelhas ou as abelhas contavam a ele”. Cobras se enrolavam em suas pernas; peixes nadavam na concha de sua mão fora d’água; tirava a marmota da toca puxando-a pela cauda, tomava a raposa sob sua proteção, defendendo-a dos caçadores. Nosso naturalista era da mais plena generosidade e não guardava segredos: ele nos levava ao retiro da garça ou a seu mais querido pântano botânico provavelmente sabendo que nunca voltaríamos a encontrá-lo, mesmo que nos arriscássemos.
  Nenhuma faculdade jamais lhe ofereceu um diploma ou uma cátedra; nenhuma academia o tomou como secretário cor­respondente, como pesquisador ou como simples membro. Tal­vez essas instituições eruditas temessem suas atitudes satíricas. Todavia, poucos possuíam tanto conhecimento do gênio e dos segredos da Natureza, e ninguém com uma síntese mais ampla e religiosa. Pois ele não tinha o menor grão de respeito pelas opiniões de qualquer pessoa ou grupo de pessoas, e prestava homenagem exclusivamente à verdade; e, quando descobria entre os cientistas de todas as partes alguma atitude movida apenas pela cortesia, eles caíam em seu descrédito. Thoreau passou a ser respeitado e admirado por seus concidadãos, que antes o tinham como um simples excêntrico. Os agricultores que o contratavam como agrimensor logo viam sua rara habi­lidade e precisão, seu conhecimento da terra, das árvores, das aves, dos vestígios indígenas, o que lhe permitia explicar a todos eles mais do que sabiam antes sobre seus próprios sítios, e assim começavam a sentir como se Thoreau tivesse mais direitos a suas terras do que eles mesmos. Sentiam também a superioridade de caráter que tratava a todos os homens com uma autoridade inata.
  Existem vestígios indígenas em abundância em Concord pontas de flechas, formões de pedra, pilões e fragmentos de objetos de olaria e nas margens do rio há vários montes de conchas de mariscos e cinzas marcando os locais frequentados pelos índios. Esses vestígios e todos os elementos referentes aos índios eram de grande importância para ele. As visitas de Henry ao Maine se deviam sobretudo a seu amor pelos povos indígenas. Teve a satisfação de ver como se fazia a canoa de cascas de árvore, e pôde experimentá-la nas corredeiras. Tinha curiosidade em saber como era feita a ponta de pedra das flechas, e no final da vida encarregou alguns jovens que estavam de partida para as Montanhas Rochosas de encontrar um índio que pudesse explicar: “Para aprender, bem valia uma visita à Califórnia”. De vez em quando, um pequeno grupo de índios penobscots visitava Concord e armava suas tendas durante algumas semanas de verão à beira do rio. Henry travou conhecimento com os melhores deles, embora soubesse que perguntar qualquer coisa aos índios era como tentar catequizar coelhos e castores. Em sua última visita ao Maine, ele teve grande satisfação em estar com Joseph Polis, um índio inteligente de Oldtown, que lhe serviu de guia du­rante algumas semanas.
  Thoreau se interessava igualmente por todos os fatos na­turais. Sua percepção profunda encontrava uma mesma lei em toda a Natureza, e não conheço nenhum outro gênio capaz de inferir tão rapidamente uma lei universal a partir de um fato iso­lado. Ele não se prendia a nenhum formalismo. Tinha os olhos abertos à beleza e os ouvidos atentos à música. Encontrava-as não esporadicamente, mas aonde quer que fosse. Julgava que a melhor musicalidade se encontrava na melodia simples, e via sugestões poéticas no zumbido do telégrafo.
  Suas poesias podiam ser boas ou medíocres; sem dúvida faltavam-lhe a facilidade lírica e a habilidade técnica, mas tinha em si a fonte da poesia, em sua percepção espiritual. Era um bom leitor e um bom crítico, e seu juízo poético era sólido. Não se deixava enganar quanto à presença ou ausência do elemento poético em qualquer composição e, em sua sede de lirismo, era indiferente e quiçá desdenhoso em relação a floreios superficiais. Podia ignorar muitos ritmos delicados, mas detectaria num livro qualquer verso ou estrofe que tivesse vitalidade, e sabia muito bem encontrar igual encanto poético na prosa. Amava tanto a beleza espiritual que, comparativamente, pouco apreço dava aos poemas efetivamente escritos. Admirava Ésquilo e Píndaro, mas, quando alguém os elogiava, respondia que Ésquilo e os gregos, ao falar de Apolo e Orfeu, não haviam criado nenhuma melodia ou, pelo menos, nenhuma que pres­tasse. “Não deviam comover árvores, e sim cantar aos deuses um hino que lhes tirasse todas as velhas ideias da cabeça e lhes trouxesse outras novas.” Os versos de sua lavra geralmente eram toscos e falhos. O ouro não corre puro, é grosseiro e vem com escória. O tomilho e a manjerona ainda não são méis. Mas, se lhe faltam méritos técnicos e refinamento lírico, se não possui um temperamento poético, nunca lhe falta o raciocínio causal, mostrando que seu gênio é maior do que seu talento. Henry conhecia o valor da Imaginação para elevar e consolar a vida humana, e gostava de encastoar todo pensamento humano num símbolo. O fato em si não tem valor, apenas sua impressão. Por isso a presença de Thoreau era poética, sempre atiçava a curiosidade para conhecermos melhor os segredos de sua mente. Tinha muitas reservas, relutava em mostrar a olhos profanos o que ainda lhe era sagrado, e sabia como lançar um véu poético sobre sua experiência. Todos os leitores de Walden lembrarão o registro mítico de suas desilusões:
  “Muito tempo atrás perdi um cão de caça, um cavalo baio e uma rola, e ainda continuo a procurá-los. Falei com muitos viajantes sobre eles, descrevendo quais eram suas pegadas e a que chamados respondiam. Encontrei um ou dois que tinham ouvido o cão e o andar do cavalo, e até tinham visto a rola desaparecer atrás de uma nuvem, e pareciam tão ansiosos em recuperá-los como se eles mesmos os tivessem perdido”.
  Seus enigmas eram dignos de leitura, e tenho certeza de que, mesmo que eu possa não entender a expressão, ela é correta. Sua verdade era de tal riqueza que ele não usaria palavras em vão. Seu poema chamado “Sympathy” revela a ternura sob aquela tripla couraça de estoicismo e a sutileza intelectual alimentada por ela. Seu clássico poema sobre “Smoke” faz lembrar Simonides, mas é melhor do que qual­quer poema de Simonides. Seu pensamento habitual converte toda a sua poesia num hino à Causa das causas, ao Espírito que o vivifica e o guia:
Ouço como quem tinha apenas ouvidos,
E vejo, como quem antes apenas via;
Vivo instantes como outrora anos vividos
E enxergo a verdade como quem tudo sabia.
E ainda mais nestes versos religiosos:


Sim, é esta agora minha hora natal,
E apenas agora minha plenitude vital;
Não duvido do amor que se mantém silente,
Que me veio não por ser digno ou carente,
Que me cortejou jovem, e me corteja ancião,
E a este entardecer me traz pela mão.
  Embora Thoreau recorresse nos textos a uma certa pe­tulância quando falava de igrejas ou sacerdotes, ele era uma pessoa de religiosidade absoluta, incapaz de qualquer profa­nação em atos ou em pensamentos. O mesmo isolamento que fazia parte de sua maneira original de pensar e viver também o apartava de todas as formas religiosas sociais. Não é algo que se deva censurar ou lamentar. Aristóteles explicou muito tempo atrás: “Quem ultrapassa seus concidadãos em virtude deixa de fazer parte da cidade. A lei deles não se lhe aplica, pois ele tem em si sua lei”.
  Thoreau era a própria sinceridade, capaz de fortalecer as convicções dos profetas nas leis éticas com sua maneira sagrada de viver. Era uma experiência afirmativa que não podia ser posta de lado. Orador da verdade, capaz da conversa mais profunda e rigorosa; médico para as chagas de todas as almas; amigo, conhecedor não só do segredo da amizade, mas quase adorado pelos poucos que recorriam a ele como confessor e profeta, e sabia do enorme valor de sua mente e de seu grande coração. Acreditava que, sem algum tipo de religião ou devo­ção, nunca se realizaria nada de grandioso; e pensava que o sectário fanático deveria levar isso em consideração.
  Às vezes suas virtudes, evidentemente, chegavam aos extremos. Era fácil ver que aquela austeridade, que tomava esse ermitão voluntário ainda mais solitário do que desejaria, derivava da inexorável exigência de verdade que cobrava de todos. Sendo ele mesmo de probidade irrepreensível, exigia o mesmo dos outros. Tinha aversão ao crime, e nenhum êxito mundano o encobriria. Com a mesma presteza e o mesmo des­dém detectava a trapaça nos cidadãos prósperos e respeitáveis ou nos mendigos. Havia em seu trato social uma franqueza tão perigosa que os admiradores o chamavam de “aquele terrível Thoreau”, como se falasse estando em silêncio, como se continuasse presente depois de partir. Penso que o rigor de seu ideal contribuiu para privá-lo de um grau saudável de convívio humano.
  Devido ao hábito do realista em descobrir que as coisas são o contrário do que aparentam, ele tendia a formular tudo sob a forma de paradoxo. Seus primeiros textos vinham des­figurados por um certo hábito de antagonismo: um artifício retórico que não se desenvolveu plenamente nos textos pos­teriores, que consistia em substituir a palavra e a ideia óbvias pelo inverso diametralmente oposto. Louvava as montanhas ermas e as florestas de inverno pelo ar doméstico e acolhedor, encontrava calor no gelo e na neve, elogiava as paisagens agrestes pela semelhança com Roma e Paris. “Era tão seco que se podia dizer úmido.”
  A tendência de engrandecer o momento, de ler todas as leis da Natureza no objeto ou na combinação única sob os olhos, certamente é cômica para os que não partilham a percep­ção da identidade, própria do filósofo. Para ele, tamanho não existia, O lago era um pequeno oceano; o Atlântico, um grande Lago Walden. Remetia cada fato minúsculo a leis cósmicas. Embora pretendesse ser justo, parecia perseguido por certo pressuposto crônico de que a ciência contemporânea apenas fingia ser completa, e acabara de descobrir que os savants tinham deixado de diferenciar uma determinada variedade botânica, de descrever as sementes ou contar as sépalas. Res­pondíamos: “Isso quer dizer que esses estúpidos não nasceram em Concord; mas quem disse o contrário? Foi um tremendo azar deles que tenham nascido em Londres, Paris ou Roma; mas, coitados, fizeram o que podiam, se considerarmos que nunca viram o Lago de Bateman, o Nine-Acre Corner e nem o Pântano de Becky Stow; ademais, para que você veio ao mundo, se não para acrescentar essa observação?”.
  Se fosse de gênio apenas contemplativo, Henry esta­ria plenamente adequado à sua vida, mas, com a energia e habilidade prática que tinha, parecia nascido para grandes empreendimentos e para o mando; e lamento tanto a perda de sua extraordinária capacidade de ação que não posso deixar de ver sua falta de ambição como um defeito. À falta dela, em vez de ter projetos para toda a América, capitaneava uma festa dos mirtilos. Bater feijão pode até servir vez por outra para bater impérios; mas, ao longo dos anos, continuam a ser apenas feijões!
  No entanto, esses defeitos, reais ou aparentes, logo desapareceram no crescimento constante de um espírito tão robusto e sábio, que apagava suas derrotas com novas vitórias. Seu estudo da Natureza era um ornamento constante nele, e inspirava aos amigos a curiosidade de ver o mundo com seus olhos e de ouvir suas aventuras. Tinham todo o interesse.
  Thoreau possuía muitos traços de elegância própria, embora zombasse da elegância convencional. Assim, não suportava ouvir o som dos próprios passos, o ranger do cas­calho; assim, nunca caminhava de bom grado pela estrada, e preferia a grama, nas montanhas e nos bosques. Tinha sen­tidos aguçados, e comentava que, à noite, todas as moradias soltam emanações ruins, como um abatedouro. Ele gostava do perfume do trevo-cheiroso. Tinha especial consideração por certas plantas, sobretudo pelo aguapé a seguir, pela genciana, a Mikania scandens, a “sempre-viva” e uma tília que visitava anualmente, na época da florada, em meados de julho. Considerava o olfato como instrumento de investigação mais oracular do que a visão mais oracular e mais fidedigno. O olfato, naturalmente, revela o que está oculto aos outros sentidos. Pelo olfato ele detectava o que estava ligado à terra. Gostava de ecos, e dizia que eram quase a única espécie de vozes familiares que ouvia. Amava tanto a Natureza, sentia-se tão feliz na solidão dela que se tomou muito desconfiado das cidades e dos infelizes efeitos que os luxos e artifícios urbanos causavam ao homem e ao ambiente. O machado destruía incessantemente sua floresta. E dizia: “Graças a Deus não podem derrubar as nuvens!”; “Essa tinta branca fibrosa desenha no fundo azul figuras de todas as espécies”.
  Acrescento abaixo algumas frases extraídas de seus manuscritos inéditos, não só como registros de suas ideias e sentimentos, mas por sua força expressiva e excelência literária:
“Algumas provas circunstanciais são muito fortes, como quando encontramos uma truta no leite.”
“O leucisco é um peixe macio, e tem gosto de papel de embrulho fervido com sal.”
“O jovem junta seus materiais para construir uma ponte até a lua, ou talvez um palácio ou templo na terra, e depois o homem de meia-idade resolve construir com eles um barraco de madeira.”
“O gafanhoto a-zz-obia.”
“Libélulas ziguezagueando no riacho Nut-Meadow.”
“O som é mais doce ao ouvido saudável do que o açúcar ao paladar.”
“Amontoei alguns galhos de pinheiro, e o rico sal cre­pitando em suas folhas era como mostarda aos ouvidos, o crepitar de regimentos incontáveis. Árvores mortas amam o fogo.”
“O azulão leva o céu nas costas.”
“O sanhaço voa por entre a folhagem verde como se fosse incendiar as folhas.”
“Se quero crina de cavalo para a mira do compasso, tenho de ir ao estábulo; mas a ave para seu ninho vai, com sua vista aguda, à estrada.”
“Água imortal, viva mesmo na superfície.”
“O fogo é o terceiro mais tolerável.”
“A Natureza fez as samambaias só pelas folhas, para mostrar que sabia criar com aquelas linhas.”
“Nenhuma árvore tem tronco tão belo e base tão bonita quanto a faia.”
“Como essas lindas cores do arco-íris entraram na con­cha do marisco de água doce, enterrado na lama do fundo de nosso rio escuro?”
“Duros os tempos em que os sapatos da criança são seus segundos pés.”
“Estamos estritamente confinados a nossos homens a quem damos liberdade.”
“Não há nada que se deva temer mais do que o medo.”
“O  ateísmo pode ser relativamente popular com o próprio Deus.”
“Que importância tem as coisas que você pode esquecer? Um pequeno pensamento é o sacristão de todo o mundo.”
“Quem não tem uma época de plantio do caráter como pode esperar uma colheita de pensamentos?”
“Apenas quem apresenta uma face de bronze às expect­ativas pode receber presentes.”
“Peço para ser derretido. A única coisa que se pode pedir aos metais é que sejam brandos com o fogo que os derrete. A nada mais podem ser brandos.”

Existe uma flor conhecida dos botânicos, do mesmo gênero de nossa planta estival chamada “cotonária”, pare­cida com uma Gnaphalium, que cresce nos penhascos mais inacessíveis das montanhas tirolesas, onde mesmo os cabritos monteses mal se arriscam a ir, e que o caçador, atraído por sua beleza e movido pelo amor (pois a flor é imensamente estimada pelas donzelas suíças), escala os rochedos para co­lher, às vezes sendo encontrado morto no sopé, com a flor na mão. Seu nome botânico é Gnaphalium leontopodium, mas os suíços a chamam de Edelweiss, que significa Nobre Pureza. A mim, Thoreau parecia viver na esperança de colher esta flor, que lhe pertencia de direito. Seus estudos avançavam a uma escala tão ampla que requeria longevidade, e não estávamos preparados para seu desaparecimento súbito. O país ainda não conhece, ou conhece apenas um mínimo, o grande filho que perdeu. Parece uma ofensa que tenha deixado ao meio sua tarefa interrompida, a qual ninguém mais poderá terminar, uma espécie de indignidade para uma alma tão nobre que te­nha abandonado a Natureza antes de poder se mostrar a seus pares como realmente era. Mas pelo menos ele está contente. Sua alma foi feita para o mais nobre convívio; numa vida breve, ele esgotou as capacidades deste mundo; onde houver conhecimento, onde houver virtude, onde houver beleza, ele encontrará um lar.

* Versão publicada na revista Atlantic Motly em agosto de 1862 do discurso fúnebre proferido por Emerson em 6 de maio do mesmo ano, quando da morte do amigo Thoreau.
Ralph Waldo Emerson (25 de maio de 1803, Boston - 27 de abril de 1882, Concord, Massachusetts), escritor, filósofo e poeta norte-americano.

 
Ralph Waldo Emerson
Enviado por Germino da Terra em 08/04/2013
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