retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


Os vastos espaços, por Paulo Rónai em Primeiras estórias de Guimarães Rosa, Editora Nova Fronteira (II)

Oralidade
Ao autor da presente introdução falta convivência com o povo do interior brasileiro e, especialmente, da região que serve de cenário à maioria dessas estórias para que possa tentar uma distinção da contribuição popular lato sensu e da nitidamente regional; por isso adota o termo acima, que lhe parece determinar com bastante exa­tidão uma das principais coordenadas da linguagem rosiana.
  Suas páginas porejam modismos e fórmulas que estamos habi­tuados a ouvir na boca de pessoas do povo e que, em seu frusto vigor, dão à fala popular sabor e energia deliciosos: “Nosso pai nada não dizia.”; “Do que eu mesmo me alembro”; “Nossa casa, no tempo, era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua”; “perto e longe da sua família dele”; “avisado que nem Noé”: “A gen­te, firmes, sem mover o passo”.
  Os exemplos poderiam ser multiplicados. E precisamente o formigar de tais rodeios que dá a leitores menos avisados a ideia de que o autor se propõe a mera reprodução da linguagem po­pular. Com essa ideia metida na cabeça, logo vão implicar com o primeiro neologismo e apontar em triunfo aquele “destom” como exemplo de insucesso.
  E desconhecer a própria essência dessa arte tão provocadoramente original. A predileção do autor por fórmulas populares de uso geral não o impede de se deleitar com insólitas locuções indi­viduais nem de inventar outras que, golpeando em cheio o leitor, lhe possam inculcar uma percepção nova.
  Tem toda a aparência popular e regional o uso do artigo defini­do a frente dos adjetivos indefinidos, adotado pelo autor como as demais práticas de estilo oral mesmo em trechos em que ele fala por conta própria: “As muitas pessoas”: “o parente nenhum”; “a alguma alegria”; “o certo solerte contentamento”; “a alguma recomendação”; “pelas certas pessoas”; “a tanta importância”; “as todas manhãs”; “a muita criatura”. Essa praxe paradoxal, oriunda talvez do desejo de aumentar a massa sonora e o peso da locução, nota-se também no caso de expressões onde normalmente a indefinição se patenteia pela ausência de determinantes: “iam dar na gente a tremenda vaia!’’; “O gebo, pernas tresentortadas e moles, quase de não andar direito, mas o capaz de deslizar ligeiro”.
  O    leitor citadino, especialmente carioca, encontrará o mesmo sabor regional no uso do subjuntivo com valor de condicional — “Nem olhasse mais a paisagem?”; “nem fosse possível”; “constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação” ou de indicativo, com matiz dubitativo: “só ele conhecesse, a palmos, a escuridão daquele [brejão]”; “Por certo esse Herculinão Socó des­merecesse a mínima simpatia humana”; “e tão apartado em si se conduzia ele (...) que jamais quase a referisse pelo nome”.
  Observando a fala de pessoas de poucas letras, ou de todo não alfabetizadas, podemos notar quão frequentemente elas deixam a frase inacabada, como que suspensa, completando o sentido com o silêncio da pausa. Em Guimarães Rosa, o vezo, de tão frequente, ganha foros de categoria sintática: “queriam-lhe como quem”; “No que num engano.”; “Sabiam o ate-que-ponto”; “Aquilo era quando as onças.” “O que foi quando subitamente”; “Brejeirinha de alegria ante todas, feliz como se, se; menina só ave.”: ‘Esse moço, pois, para ele sendo igual matéria o futuro que o passado?”. Dentro do contexto, todas essas frases e muitas semelhantes palpitam com o frescor da emoção. Um jovem critico, Roberto Schwarz, em sua percuciente análise da linguagem de Guimarães Rosa, che­ga a ver em tais sentenças inacabadas a chave de toda a expressão do autor: “Podemos afirmar mesmo, dado encontrar frases ir­redutíveis ao esquema comum, serem estas as que devem orientar o nosso modo de ler, por realizarem mais radicalmente a dicção do livro. Através de umas tantas orações sem fio gramatical de­finível, fica instaurado um universo linguístico em que mesmo as proposições de lógica perfeita passam a pedir uma leitura diversa (...).” Especialmente o verbo de cópula ganha força em ser omitido quando substituído por interrupção do fluxo sonoro: “Se homens, meninos, cavalos e bois — assim insetos?; “O estilo espavorido; “Atordoados, pois.”: “A gente, nada. Ali, formados, soldados mes­mos, mudando de cor, de amargor.”: “O pasmatório.” E, em nível literário: “Tia Liduína, que já fina música e imagem.”
  Caracteriza ainda o modo de falar das pessoas simples certo rebuscamento, a adoção de formas da linguagem escrita conside­radas elegantes e não inteiramente assimiladas. É o que explica o aparecimento do gerúndio em orações relativas que depois o jeito falante não sabe como acabar: “Seo Fifino (...) noticiou: que tendo chegado certo sujeito, um positivo, com carta.”: “Seus sabe­dores informavam: que a marca sendo de grande fazendeiro.” O particípio passado pode também assumir esse efeito desorganiza­dor do gerúndio: “Vim ver quem. Aquele homem que chegado.”; “acomodar os hóspedes, que esperados”. Por expressivo; o modis­mo é adotado pelo próprio narrador: “Dava para se sentir o peso da [arma] de fogo, no cinturão, que usado baixo”.
  Efeitos enérgicos são tirados de outras irregularidades sintáti­cas, igualmente característicos do estilo oral: da regência impró­pria (“E prometia-lhe o Tio as muitas coisas que ia brincar e ver, e fazer e passear”): da concordância pelo sentido ( “e a gente fica quase presos, alojados na cozinha”) e deste anacoluto expressivo que abre a undécima estória: “O espelho, são muitos”.

Sonoridade
Essas citações devem ter feito entrever uma das qualidades para­doxais do estilo de Guimarães Rosa: suas páginas exigem leitura atenta e meditada, e, ao mesmo tempo, podem ser lidas em voz alta ou, pelo menos, com a colaboração ininterrupta da imagina­ção auditiva. Se assim poderão ser apreciados in totum e valoriza­dos seus esforços originalíssimos de “transposição total para o pla­no auditivo de uma representação puramente visual” (Oswaldino Marques).
  Há frases de nosso autor, precisamente das mais carregadas de significação, que exigem notação musical: “Infância é coisa, coi­sa?”; Porque eu desconheci meus Pais eram-me tão estranhos; jamais poderia verdadeiramente conhecê-los, eu; eu?”
  A aliteração serve-lhe de subsídio pitoresco ou acompanhamen­to musical, marcadora de ritmo ou de monotonia, sinal de gravida­de ou de graça: “Miúdo, moído.”; “aquele doer, que põe e punge, de dó. desgoste e desengano”: “leigos, ledos, lépidos”; “Desconto (...) o em que me tive na mocidade: desmandos, desordens e despra­ças.”; Podia também ser de outra essência a mandada, mancha­da. malfadada.”; “conforme confere e confirmava”. Em suas acro­bacias verbais ressurgem as figuras da velha retórica, a homofonia: “ferramos fera briga”; o homoteleuto: “não conseguindo juntar o prestígio ao fastígio”; o poliptoto: “Ao que sei, que se saiba, nin­guém soube sozinho direito o que houve.”; a figura etymologica: “as figurantes figuras, mas personagens personificantes”.
A rima sentenciosa é um adjutório caracterizador (em “Luas-de-mel”): “Eu ponho a mesa e pago a despesa.”; “cachorro, gato e espalhafato”: “Só em paz, com Deus, sossegado. Sensato, sincero e honrado”; “Herói é no que dói!”.
  Usa com o mesmo intento, ou como simples intermezzo lúdico, palavras pomposas e grandiloquentes, que ganham graça pelo emprego pernóstico: “Só vivo no supracitado.”; “os Noivos (...) satisfa­tórios; “aquele senhor (...) provisoriamente impoluto”. Há muitos outros exemplos,sobretudo ao longo de “Partida do audaz navegan­te”, onde o autor confirma implicitamente a ampla contribuição da linguagem infantil para seus processos de inovação mais ousados.
  Com patente alegria sensual ele deixa arrebentar-se pelo batu­car das onomatopéias: “Aí, o povaréu fez vêvêvê”; “o a-tchim-pum­-pum dos foguetes”; “trupitar” de cavalos; “catastrapes!”; “chique­tichique”; todos exemplos encontráveis em “— Tarantão, meu pa­trão”, onde a reprodução imitativa começa no próprio título.
  O    prolongamento das palavras por meio de sufixos altissonan­tes — furibundância, circunspectância, esplendição, blasfemífero, ardilidade — ou pela ousada repetição de sílabas sussussurrar, mumumundos, nesse interintintim é praticado com intuito de in­tensificação semântica.
  Assinale-se mais uma fonte de sonoridades sugestivas e clas­sificadoras: os expressivos nomes próprios com que Guimarães Rosa gosta de brindar-nos, enfileirando-os às vezes em saborosas enumerações rabelaisianas. Nenhum outro autor nosso armazena tantos apelidos, alcunhas, epítetos, corruptelas de nomes e sobrenomes pitorescos e pedantes. Só em Primeiras estórias encontra­mos os quatro irmãos Dagobé: Damastor, Doricão, Dismundo e Derval, além de Tãozão, Mão-na-Lata e Zé Centeralfe. E ainda, a sinistra tríade formada pela Mula-Marmela, Mumbungo e Retrupé; e Nhinhinha e a Nhatiaga; e Vagalume, de seu verdadeiro nome (!) João Dosmeuspés Felizardo: e Curucutu, Cheira-Céu, Jiló, Pé-de-Moleque. Barriga-Cheia, Corta-Pau, Rapa-pé, o Gorro-Pintado... todo um catálogo bem brasileiro de extravagância denominativa.

Dinamização
Além desses aspectos pitorescos, convém destacar na linguagem de Guimarães Rosa o fator dinâmico ao serviço da representação do que ele chamou o “corrido, contínuo, do incessar”. E um cons­tante rebatizar de fenômenos já denominados, um contínuo bus­car de nomes para formas que inesperadamente emergem do caos existencial e também, às vezes, a criação de uma realidade nova que surge pelo poder da evocação verbal.
  Os processos dessa renovação não são, não podem ser pura­mente arbitrários, senão prejudicariam a comunicabilidade da mensagem. Na maioria dos casos são tornados de empréstimo à própria língua, e consistem na imitação e na intensificação de seus recursos evolutivos. Às vezes parecem sugeridos pelo espírito de outros idiomas. Vez por outra são produtos de uma invenção di­vertida, arbitraria e lúdica.
  Naturalmente, nem todos os termos não dicionarizados de Primeiras estórias podem ser considerados como neologismos de fato. É praticamente impossível separar os vocábulos ainda não registrados da linguagem familiar ou regional e os que existem na língua em estado latente. São desse grupo, resultante de derivação regular, substantivos como terrestreidade ou cascalharal, adjetivos como multitudinal e gravitacional, verbos como trevar, andorinhar e bruaar. Outro grupo de plausibilidade semelhante é formado por palavras compostas de acordo com os moldes tradicionais: abre­tragos e borrafofo, gritatmulta e ultramuito.
  É impossível não notar um terceiro grupo, muito numeroso, constituído por derivados paralelos aos já existentes surgidos pela substituição do elemento derivador: perversia, simulagem, confu­samento, estupefazimento e estupefatura, casamentício e casacão, ve­lhes, ceqgues e mesmes, outros tantos doublets de feição geralmente popular que nem sempre se distinguem das formas banais por uma nova matização intelectual. “Haverá de causar espécie” obser­va oportunamente Oswaldino Marques “que, muitas vezes, o autor recorra a neologismos quando já conta a língua com pala­vras de uso corrente que expressem o mesmo conteúdo (...). Sua função primordial (...) é descondicionar os nossos hábitos verbais e levar-vos a reexperimentar as ideias ou sensações veiculadas. A comoção que nos agita arranca-nos, por assim dizer, à nossa letar­gia mental e nos obriga a repensar os objetos. A linguagem opera, desse modo, a contínua reativação das nossas vivências e nos abas­tece de conotações insuspeitas.”
  Observemos que, desse ponto de vista, o mesmo sufixo pode exercer efeito diferentes. Note-se a crescente intensidade do cho­que em sertanegice e aguaceirice efrutice.
  Contribui para a tremulação ondeante do estilo o fato de certos sufixos aparecerem não somente em aliagens insólitas, mas tam­bém com carga semântica diversa. Nota-se isto em particular nos adjetivos formados com -oso e com –vei, mesmo quando simples­mente enfileirados fora de contexto: viuvoso, coutroversioso, sonhoso, tigroso, sobrossoso, artimanhoso, desadoroso, grossoso, terrivoroso; encantoável, assombrável, enlameável, cravável, comiserável, deslumbrável — nos quais o exame atento descobrirá alternadamente va­lor ativo ou passivo, nuança quantitativa ou qualitativa. O sufixo -ista, de conotação erudita, passa a nitidamente popular em poetís­ta e namorista; o sufixo –az, petrificado, desenregela-se em zoinhaz e sanguinaz.
  De fixidez bem maior que os sufixos de derivação, os provér­bios, imobilizados desde a época latina, voltam a ganhar na mão de Guimarães Rosa extraordinária vitalidade. Ao restituir poder denotativo ou intensificador a prevérbios esvaziados de sentido, o escritor, profundo conhecedor de várias línguas, parece ter-se dei­xado influenciar por idiomas como o alemão ou o russo, em que essas partículas até hoje conservaram vigorosa atuação. Os exem­plos pululam: trasviver, trasmodo, trasv’ôo, transclaro e travisagem; tresentortado, trebusco, tresenorte, tresbulício e travisagem; contriste, compesar, congracez; sobrecrente e sobreabrir-se; circuntristeza, contra-surpresa, obcego e perludiz. Juntamente com a ten­dência de antepor essas partículas a verbos, derivados verbais, ou mesmo a palavra de outras espécies, patenteia-se a de multiplicá-las. Tal tendência é característica do idioma húngaro cuja estrutura Guimarães Rosa conhece intimamente segundo se depreende de “Pequena palavra” com que prefaciou a minha Antologia do conto húngaro. Luiz Costa Lima Filho aponta com acerto o que esse prefácio tem de revelador; à sua leitura nota-se “o quanto de hungárico ele conscientemente incorporou à nossa língua literária”. Alguns exemplos: altiloquar e altitonar, cabismeditado e cabisbaíixar-se, bis­ver, vis-ver e vice-ver.
O maior número de incidências, como na língua comum, dá-se com os prefixos des- e in- em função criadora de antônimos. Eis alguns dos muitos exemplos que parecem inventados (ou apanha­dos pela primeira vez) pelo nosso autor: desacontecido, desaproxi­mar-se, desconcernência, descarecer, desvárias (vezes), dessonambu­lizar, despreferência, desentregar-se, desesconder-se, desnascer e, até, desdeslembrar-se; inconfuso, inesperavamse, imnpermanência, inque­brantar-se, inenganador, insabível, intrágico, inestimar, inacional. Se o sentido de alguns é bastante claro, parece que outros são origina­dos menos por uma visão concreta do que por indução do termo positivo, oposto. É nestes casos que, segundo a afirmação exultan­te de Vilem Flusser, “a língua portuguesa cria conscientemente, se quiserem cerebralmente e metodicamente, a realidade nova”. O escritor criou o conceito novo, e ”os biólogos e os psicólogos virão, em seu tempo, para inseri-lo dentro da sua realidade”.
  Para quem percebe o mundo sob as espécies de luz e sombra, afirmação e negação, o método mais óbvio da criação conceptual de novas realidades é mesmo a invenção de contrastes. A sua inventa­riação permitiria uma compreensão mais profunda, não somente do estilo, mas da cosmovisão de Guimarães Rosa. Aqui fica, a título de sugestão, uma relação rápida de expressões e frases em que o advér­bio não surge com valor tipicamente adversativo: “em não-tais con­dições”; “sua não rapidez”: “Eles se olhavam para não-distância”; “Satisfazer-me com fantásticas não-explicações?”; “desaparecesse no não; “Olhava na direção do não.”; “Acontecia o não-fato, o não-tempo; “tão bom como tão não”. Acrescentem-se dois trechos, par­ticularmente significativos, do conto “A benfazeja”, todo ele cons­truído em dicotomias: “Talvez pressentisse que só ela seria capaz de destruí-lo, de cortar, com um ato de ‘não’, sua existência doidamente celerada.”; “E ela, então, não riu. Vocês, os que não a ouviram não rir, nem suportam de lembrar direito do delirido daquela risada.”
  Insensivelmente chegamos de uma linguagem predominantemente oral, de forte sabor popular, a outra, de alto teor filosófico. Só que as duas são uma só, inseparável e orgânica, apesar de toda a sua heterogeneidade.
  A dissociação das parcelas semânticas observa-se não apenas em vocábulos, mas ainda nessas outras unidades léxicas que são as locuções. Palavras que estamos habituados a ouvir unicamente in­tegradas em frases feitas voltam a agir por sua conta ou a empres­tar mobilidade à expressão estereotipada: “com cara de nenhum amigo”; “Transfoi-se-me. Esses trizes”; “espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até então”; “Capazes de qualquer supetão”; “me diz-que-disseram”; “E se humilhara, a menos não poder.”; “o outro, no tir-te, se encolheu”; “E era o impasse de mágica.”; “um deu-nos-sacuda”.
  Nos dois últimos exemplos, o processo confina com o trocadi­lho, recurso algo desconsiderado. Mas Guimarães Rosa não des­denha nenhum truque em sua luta com a expressão; verdadeiro catch as catch can em que todos os ardis são permitidos.
  A derivação regressiva de substantivos, a que a língua frequen­temente recorre em deverbais como apanha, derrama, derruba etc., traz também contribuição para o léxico de nosso contista, em pa­lavras como apavor, reobriga, ensimesmo.
  Outro meio de enriquecer a expressão é impedir-lhe o empo­brecimento. A ele recorre o autor de Primeiras estarias ao reativar o particípio presente, em via de desaparecimento, restituindo-lhe toda a força verbal: vejam-se pleiteantes brados, a mais buscante análise, e, ainda, espantante, pantuante, querente, requiescante, apalpan­te, decretante. Numa extensão de sentido contrário, alarga, ao mes­mo tempo, o uso adjetivo do particípio passado: “a cada podido momento”; “olhos empalidecidamente azuis”; “entregadamente”; “alongada, sorrida, moduladamente’.
  O    reagrupamento de semantemas estende-se, naturalmente, a toda a organização sintática, aproveitando os efeitos estilísticos que oferece a modificação da ordem costumeira das palavras. A mais óbvia dessas modificações é o destaque do adjetivo por meio de antecipação: “Seus muitos, sequazes homens”; “na prática ver­dade”: “pela indiferente rua”; “insuspeitado estilo.
  Outras inversões que, em Retórica, seriam qualificadas de hi­pérbatos e de sínquises: ”e com quantos sem uso corredores”. “Só este é o seu, deles, diálogo”; “tudo apesar-de”; “o multitudinal silêncio das pessoas de milhares”; “Se lhe de deveres e afetos falei!”; “o das-Finanças-Públicas secretario”. Note-se que os qua­tro últimos exemplos são extraídos de “Darandina”, onde neolo­gismos, trocadilhos, onomatopéias e inversões estão a serviço de uma esfuziante comicidade o que lembra que os processos esti­lísticos do autor não devem ser avaliados fora do clima de intencio­nalidade que lhes cabe no contexto.
  Deixei para o fim um exemplo agressivo de tmese (que evoca a separabilidade do prevérbio alemão e húngaro): E entrou de peito feito. Àquelas qüilas águas trans”, para marcar o limite extre­mo da atomização estilística.
  Não é de espantar que os sinais de pontuação tenham também o seu emprego alargado. Além do famoso exemplo constante do título Grande sertão: veredas, os dois-pontos neste livro também transcrevem pausas sugestivas:
“Sentava-se, inteiro, dentro do macio rumor do avião: o bom brinquedo trabalhoso.”; A grande cidade apenas começava a fa­zer-se, num semi-ermo, no chapadão: a mágica monotonia, os di­luídos ares.”; “Não viu: imediatamente.”; “Antes do rio não viam: as aves que já ninhavam.”
  Como é mesmo que dizia Riobaldo? “Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sem­pre iguais, ainda não foram terminadas mas que elas vão sempre mudando.” Tal como a linguagem.

O arbítrio criador
“Muita religião, seu moço! dizia ainda Riobaldo, — “Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de rodas. Bebo agora de todo rio...”
  Ponha-se “língua” em lugar de religião, e aí temos uma definição estilística da obra de Guimarães Rosa. Nela estará acenada a hibri­dez de um sistema expressivo cujos elementos provêm de origens as mais variadas, em que termos de gíria (“o meu esmarte Patrão“ “Moço esporte de forre”) e latinismos (“assim vocado e ordena­do”: “as infernas grotas”; “O padre Prefeito, solene modo, fez-nos a comunicação”) se misturam aos rodeios de acentuado sabor popular e a preciosismos rebuscados.
  Ao relacionar os componentes desse estilo, em seu estudo nunca assaz citado, Manuel Cavalcanti Proença afirma que, contudo, ele não constitui uma nova língua: “O que ocorreu foi ampla utilização das virtualidades da nossa língua, tendo a analogia, principalmente, fornecido os recursos de que ele [= o autor] se serviu.” E para neles basear a analogia, Oswaldino Marques, em seu estudo igualmente fundamental, cita em apoio das inovações mais ousadas outros tantos “parâmetros”, termos vernáculos tomados ao acaso.
  Deve-se admitir, porém, a existência de praxes não apoiadas em analogias. Estão neste caso as amálgamas de dois vocábulos cuja fusão é provocada não por associação intelectual, mas pela coin­cidência sonora de uma sílaba. Duas palavras fúnebre e brilho fundem-se na parcela sonora comum em funebrilho, para desig­nar uma noção (enfeite de caixão) ate então não denominada com termo específico. Ou então diligente e gentil fundem-se para indi­car a função momentânea de dois atributos em diligentil. Outros exemplos: personagente (já citado), perséquito, sussurruído, delirido, tumultroada, engenhingonça, afobafo, malandrajo, excelentriste, dan­çandoar-se, descreviver. De momento não me ocorre outro parâ­metro a não ser tranquilômetro, tranquilometragem, pertencentes à pseudolíngua publicitária. Em tais casos a fantasia do autor substi­tui-se às tendências da língua entregando-se a criação arbitrária de neologismos com a mesma deleitação que inspira as bizarrices da linguagem infantil na boca de sua personagem Brejeirinha.
  Nem sempre o significado dessas inovações é obvio: mais de uma constitui enigma de decifração nada fácil, capaz de suscitar as interpretações mais desencontradas. Veja-se este exemplo, encon­trado em “Nada e a nossa condição”: “Ante e perante, à distância, em roda, mulheres se ajoelhavam, e homens que pulando gritavam, sebestos, diabruros”. O leitor fica intrigado com o adjetivo não di­cionarizado sebesto. Deverá ligá-lo a sebesta (nome de árvore) ou a sebo (especialmente das locuções: metido a sebo; ora ,sebo!), tomá-lo por uma corruptela de sebento ou considerá-lo uma amálgama audaciosa de sebo + besta ou de se (pronome) + besta? Todas essas conjeturas, embora desencorajadas pelo contexto, hão de se apre­sentar ao espírito do leitor mais prontamente do que o verdadeiro radical, pedido emprestado ao substantivo grego sébas (“temor re­ligioso”, veneração) e ao correspondente verbo sebo.
  Outro exemplo, constante da “Pequena palavra” já citada, mostra também como seria ilusório pretender a uma compreensão integral de uma página de Guimarães Rosa. Ao caracterizar o divertimento dos pastores húngaros diz que “se alargam nas tabernas rurais, onde o país canta e dança suas csardas, que em ritmo alternam: a lentidão melancólica e lassa — e — o ferver tenso agilíssimo de alegria doidada que alucina com um inaudito frisson”. À primeira leitura o trecho não oferece dificuldades: mas se matiza de engenhosa musicalidade aos olhos de quem notar (mas quem notará?) que o autor, num enlevo de virtuoso, encontrou jeito de encerrar nele os próprios termos que, em magiar [húngaro], designam as duas variantes do csárdás: lassu (“lento”) e friss (“rápido”). Não é difícil prever a perplexidade dos autores de teses de doutoramento sobre a linguagem de João Guimarães Rosa (teses que já começam a aparecer, dentro e fora do país) dando tratos à bola para desvendarem os mistérios adrede espalhados pelo autor ao longo de suas páginas, enquanto este, de longe, os observa com discreta malícia e aquelas suas risadinhas cordiais de esfinge bem-educada.
  Embora com raízes na língua, que não desconhece palavras de polivalência funcional (como longe, advérbio, adjetivo e substanti­vo), nas páginas de Guimarães Rosa os vocábulos ganham elastici­dade quase ilimitada. Não somente substantivos, adjetivos e advér­bios, mas conjunções e interjeições trocam de categoria funcional com grande facilidade: “Mas a Moça estava devagar.”; “a gente (...) pensava num logo luar”; “Desço em pulos passos”; “outroras coi­sas”: “o que fácil não fiz”; “os futuros antanhos”; “mal dava para se ver, no escurecendo”; “a de nunca naturalidade”; “Sou de nem palavras.”: “Aquilo na noite do nosso teatrinho foi de Oh.”; “Disse de não, conquanto costumes” etc.
  Assim como nas enálages supracitadas o advérbio se disfarça em adjetivo ou substantivo, toda e qualquer locução adverbial pode-se revestir de função nominal: “Noutro de-repente”; “do meu mais-longe”; “os às-nuvens pináculos dos montes; “aquela apique difícil fazenda”; “no entre algumas flores”; “o em-diabo pre­tinho Alfel”, passando até a se flexionar: “em-diabas confusões”; “ela batia com a cabeça, nos docementes”. Mais ainda, uma frase qualquer se transforma em epíteto ou substantivo: “um narizinho que-carícia”; “no se é o que é que é”; “o em que me tive”.
  Quer dizer que os materiais da língua estão em fusibilidade per­manente, lavas que só criam forma ao derramar-se. Nem todos os produtos dessa criação vulcânica saem graciosos ou eufônicos: há os que irritam e provocam: mas o conjunto da erupção é um espe­táculo que subjuga.
  Por enquanto só se pode conjeturar a profundeza da revolução operada nas letras brasileiras por Guimarães Rosa. Quem assina esta introdução pôde, como árbitro de vários concursos de conto, obser­var a sedução exercida pelo seu estilo nos nossos prosadores de todas as regiões do Brasil. Inimitável na intuição das correntes fundas do inentendível mundo íntimo, assim como na transferência de episódios locais para horizontes universais, sua obra, por enquanto, está agindo sobretudo pelo aspecto epidérmico. É de se esperar que nos talentos bastante fortes para se subtraírem ao perigo do arremedo servira de estímulo para o desapego de todos os padrões tradicionais. Mas pare­ce pouco provável que suas invenções e liberdades em sua totalidade venham a se enquadrar no corpus do idioma, precisamente porque seu poder está no vislumbre fugaz da instantaneidade.
  “Evidentemente há coisas que só entenderá em Grande sertão: veredas o sertanejo, precisamente o menos provável de seus leito­res” — pondera com espírito Adolfo Casais Monteiro. Estendendo a observação a Primeiras estórias, acrescentaria eu que há outras coisas que só o dialetologista, outras que só o filósofo, outras ain­da que só o psicanalista entenderá o que equivale a dizer que nenhum leitor entenderá a obra na íntegra. Tenho que esse enten­dimento nem sequer é visado pelo escritor. Trabalhando como o cineasta, sabe que os detalhes de seus flagrantes só parcialmente serão percebidos pelo público na rápida sucessão das imagens e nem por isso deixa de calcular e apurar os seus menores efeitos. Por menos que pegue dessa profusão barroca, o leitor médio ainda pegará bastante para ceder ao encantamento.
  Dessa própria riqueza surge a possibilidade de se encontrarem intenções e subentendidos mesmo onde não os há, de surgirem interpretações de surpreender o único detentor de todas as cha­ves da obra, o próprio autor. Até agora não me consta que ele te­nha posto em dúvida a validez de qualquer explanação, nem creio que venha a fazê-lo. Mas tampouco fornece as chaves a ninguém. “Rosa não entrega nem a pau o mapa da mina” — segundo uma expressão feliz de Afonso Arinos de Melo Franco. Solta pelo seu criador, a obra passa a ter a sua própria vida, que a este não é dado nem retificar nem influenciar. Tudo leva a crer que os livros de Guimarães Rosa suscitem mais tentativas de decifração que os de qualquer outro escritor brasileiro, e que estas os tornem ainda mais densos e mais cheios de significados.
  Conta-me Guimarães Rosa que os compositores de tipografia, não entendendo uma de suas palavras ou frases, têm-nas modifica­do involuntariamente; e que, ao rever as provas, tem-lhe aconte­cido não emendar o erro por decorrer de uma compreensão acei­tável dos antecedentes, e por se ajustar bem ao contexto.
  O grande tradutor de Grande sertão: veredas, Meyer-Clason (que neste momento está transplantando para o alemão estas Primeiras estórias), resolvera a maior percentagem possível dos enigmas ver­bais que formam o tecido desse romance gigantesco. Enganou-se, porem, ao tomar “lagarta-de-fogo” (equivalente de tatarana, alcu­nha de Riobaldo) por “lagartixa de fogo” e ao traduzir esse mis­terioso nome de bicho por Feuersalamander. Foi assim agregada à variante alemã do livro uma conotação alquimística e medieval inexistente no original, mas que o autor, depois de estranhá-la no princípio, acabou por admitir como perfeitamente compatível com o destino da personagem, que ganhava assim uma nova dimensão.
  Espero ter dado ao leitor, nestas considerações prévias dema­siadamente difusas, uma ideia pelo menos da extensão do mundo em que se vai embrenhar, com o risco certo de perder-se mais de uma vez e com a recompensa não menos certa de se reencontrar seguidamente a si mesmo nos muitos atalhos de Guimarães Rosa.
 
Sítio Pois é (Nova Friburgo), fevereiro de 1966.
 
Paulo Rónai
Enviado por Germino da Terra em 25/01/2013
Alterado em 01/04/2013
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