retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


Transubstanciação do amor, por Emil Cioran em Nos cumes do desespero, Editora Hedra Ltda.
Assim como na elucidação do nascimento do amor, o fenô­meno da irracionalidade (“o amor é cego”) é revelador, da mesma maneira, na sensação de amor, o fenômeno da fusão não é menos revelador e significativo. O amor é uma forma de comunhão e intimidade. Ora, o que pode melhor expressar essa forma do que o fenômeno subjetivo da fusão, do desmoronamento de todas as barreiras da individuação? Fundir-se de amor significa expe­rimentar um arrepio orgânico, que reduz toda a vida do nosso interior a uma mera pulsação, a uma tremulação difícil de definir. Com que o amor nos põe em contato? Não constituiria ele o absoluto ao mesmo tempo universal e específico? O paradoxo do amor não seria atingir uma vagueza geral, embora se oriente na direção de uma única criatura? A mais profunda comunhão só se realiza por intermédio do individual. Amo uma criatura; mas por ela ser símbolo do Tudo, participo ontologicamente do Tudo e da essência, de maneira inconsciente e ingênua. A participação universal do amor exige a especificação do objeto; pois não é possível existir um acesso total sem o acesso absoluto de uma criatura individual. A exaltação e a vagueza no amor brotam de um pressentimento e de uma presença irrefletida e irracional, na alma, da vida em geral que cresce dentro de nós até o paroxismo. Todo amor genuíno representa um cume cuja sexualidade em nada o diminui. Não atinge também a sexualidade seus próprios cumes? Não se atinge nela um paroxismo único, extático para além de qualquer limite? Entretanto, curioso fenômeno do amor é o de deslocar a sexualidade do centro da consciência, embora amor sem sexualidade seja inconcebível. O ser amado cresce então dentro de nós purificado e obcecante, com um nimbo si­multâneo de transcendência e de intimidade, em cintilações e reflexos cuja sexualidade se torna periférica — se não de maneira real e efetiva, em todo caso subjetiva e imaginativa. O amor espi­ritual entre os sexos não existe, mas apenas uma transfiguração orgânica, por meio da qual a pessoa amada se fixa dentro de nós, evoluindo em nossa carne até nos dar a ilusão de espiritualidade. Só em tais condições é possível uma sensação de fusão, quando a carne estremece a um arrepio total, quando ela não constitui mais obstáculo nem resistência material, queimando em chamas internas e escorrendo de fluidezas imperceptíveis. O beijo só é possível numa tal sensação de fusão, de comunhão imanente e fecunda. Do ponto de vista existencial e ontológico, o beijo nos aproxima mais da essência íntima da vida do que uma longa e complexa reflexão. Não é através de formas e categorias que se chega a realidades essenciais. E, mesmo se chegarmos a elas de maneira inconsciente e ingênua, teremos perdido algo? Só quando estamos conscientes é que sentimos o quanto perdemos. Não acredito que a essência e a intimidade da vida tenham se tornado um bem perdido para aqueles que não se aventuraram pelos caminhos do espírito.
***
Só o primeiro amor tem valor. Só quem o levou até o fim e viveu todas as suas formas e encantos pode afirmar que não contrariou Eros. Mas se devido a uma hesitação e insegurança íntimas, devido a uma falta de coragem e impulso na primeira ju­ventude, não manifestamos nosso amor, matando dentro de nós as expansões eróticas e recusando um abandono integral, o que mais podemos então esperar do amor? Ai daqueles que nunca trocaram uma palavra com sua primeira namorada! Como en­contrarão palavras para a segunda? E será que o amor renascerá? Depende da pessoa e de suas tristezas. Tristezas prolongadas paralisam de tal modo o elã do amor, que começamos a nos per­guntar se a tristeza não seria um reflexo da morte, assim como o amor é um reflexo da vida. Aquela sensação de pressão interna, quando nos sentimos recolhidos dentro de nós mesmos, como se o cérebro estivesse sendo espremido e o corpo apertado por cilindros internos, quando qualquer ímpeto se extingue à voz vaga e obscura de chamados provenientes de profundezas negras e esmagadoras, transforma a tristeza num veneno que, pingando sobre o amor, acaba por turvá-lo e anestesiá-lo. O amor é, em essência, aberto como uma flor de primavera. Não fecharia o frio da tristeza as pétalas dessa flor? Às vezes o amor vence, outras vezes, a tristeza; certas vezes se misturam num amálgama com­plexo, gerando um estado de desassossego, quando tanto a vida quanto a morte reivindicam cada uma os seus direitos. Como as tristezas atacam as raízes de Eros! E por que é que entristecer é tão sinistro? Sou demasiado triste para ter nascido para o amor!
Emil Cioran
Enviado por Germino da Terra em 24/12/2012
Alterado em 24/12/2012
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