retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

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Quando termina a novela, de Martha Medeiros na Revista O Globo de 21 de outubro de 2012
A atriz havia passado os últimos meses na pele de uma persona­gem atormentada, vulcânica, daquelas que não têm um dia de sossego. Era de se supor que ela estivesse dando o sangue para interpretar uma mu­lher tão diferente dela mesma, ela que na vida real parecia ser bem tranquila. Foi então, na festa de encerramento, quando o elenco se reuniu para assistir ao último capítulo juntos, que o repórter se apro­ximou da estrela e per­guntou: “Para onde vo­cê irá viajar quando ter­minar a novela?”
  Ele não perguntou “se” ela iria viajar. Per­guntou direto “para on­de”; sem a menor dúvi­da de que essa era a única opção após tanto empenho nem pas­sou pela cabeça do jor­nalista que ela poderia emendar um persona­gem no outro. E, de fa­to, ela não emendaria. Respondeu que preten­dia passar um mês em alguma praia deslum­brante e secreta, sem especificar em que lu­gar exatamente.
  Quando termina a novela, a primeira providência é preparar a mala e se mandar.
  O mesmo se dá nas novelas particulares, fora da tela. O que não falta é dramalhão no nosso cotidiano. A pessoa se doa, se escabe­la, chafurda em lamentações, quase enlouquece, até que o des­gaste se confirma (seja o de uma relação, de um drama familiar, de um projeto profissional) e chega-se ao último capítulo, pois sempre há um fim. E entre o fim e um novo começo, há que se recuperar a energia, abandonar o “personagem” e marcar um en­contro consigo próprio, de preferência bem longe do cenário on­de foram vividas as agruras. Pegar a estrada é o primeiro pensa­mento de quem encerra uma etapa da vida.
  Viajar tem essa função terapêutica também. Pretende-se que seja um divisor de águas, um momento de desconexão com o passado e de preparo para um futuro que promete ser mais pro­missor. E como tudo que foi intenso exaure nossas forças, espera-se que uma viagem (para um local paradisíaco, de preferência), acelere o restabelecimento.
  Claro, pode ser tam­bém para um lugar lú­gubre, abandonado, sem energia elétrica. Há quem não queira ver ninguém, não queira ser interrompido em sua introspecção, e se embrenha num lugare­jo fora do mapa, na es­quina de Deus nos Acu­da com o Fim do Mun­do.
  Mas geralmente pro­cura-se o belo e o alegre — desde que se conte com um bom pé-de-meia. Separou? Itália. Encerrou um tratamen­to quimioterápico com sucesso? Porto de Gali­nhas. Pediu demissão depois de 23 anos na mesma empresa? Um cruzeiro pelo Caribe. Passou no vestibular? Garopaba. É preciso co­memorar. Terminou a novela.
  Algumas pessoas car­rancudas não sabem o que se ganha com uma viagem. Chamam de fu­ga, e uma fuga bem cara. Gasta-se uma nota preta para trazer de volta apenas fotografias. Qual o retorno de se comprar um bem imaterial? Não é melhor investir num carro, renovar o guarda­-roupa, trocar de computador?
  Quando acaba a novela, nem carro, nem guarda-roupa, nem iniciar outra novela na sequência. Hora de sair de cena para recu­perar o fôlego até que a próxima inicie porque sempre haverá outra.
 
Martha Medeiros
Enviado por Germino da Terra em 22/10/2012
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