retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


A hora e vez de Augusto Matraga (parte IV), de Guimarães Rosa, em Contos e Novelas, seleção de Graciliano Ramos. Livraria – Editora Casa do Estudante do Brasil

— Virgem! Estão todas assanhadas, pensando que já tem milho nas roças... Mas, também, como é que podia haver um de-manhã mesmo bonito, sem as maitacas?!...
O sol ia subindo, por cima do voo verde das aves itinerantes. Do outro lado da cerca, passou uma rapariga. Bonita! Todas as mulheres eram bonitas. Todo anjo do céu devia de ser mulher. E Nhô Augusto pegou a cantar a cantiga, muito velha, do capiau exilado:
Eu quero ver a moreninha tabaroa,
arregaçada, enchendo o pote na lagoa...
Cantou, longo tempo. Até que todas as asas saíssem do céu.
— Não passam mais... Ô papagaiada vagabunda! Já devem de estar longe daqui...
Longe, onde?
Como corisca, como ronca a trovoada,
no meu sertão, na minha terra abençoada...
Longe, onde?
Quero ir namorar com as pequenas,
com as morenas do norte de Minas...
Mas, ali mesmo, no sertão do Norte, Nhô Augusto estava. Longe onde, então?
Quando ele encostou a enxada e veio andando para a porta da cozinha, ainda não possuía ideia alguma do que ia fazer. Mas, dali a pouco, nada adiantavam, para retê-lo, os rogos reunidos de mãe preta Quitéria e de pai preto Serapião.
— Adeus, minha gente, que aqui é que mais não fico, porque a minha vez vai chegar, e eu tenho que estar por ela em outras partes!
— Espera o fim das chuvas, meu filho! Espera a vazante...
— Não posso, mãe Quitéria. Quando coração está mandando, todo tempo é tempo!... E, se eu não voltar mais, tudo o que era de meu fica sendo para vocês.
Rodolpho Merêncio quis emprestar-lhe um jegue.
— Que nada! Lhe agradeço o bom desejo, mas não preciso de montada, porque eu vou é mesmo a pé...
Mas, depois, aceitou, porque mãe Quitéria lhe recordou ser o jumento um animalzinho assim meio sagrado, muito misturado às passagens da vida de Jesus.
E todos sentiram muito a sua partida. Mas ele estava madurinho de não ficar mais, e, quando chegou no sozinho, espiou só para a frente, e logo entoou uma das letras que ouvira aos guerreiros de seu Joãozinho Bem-Bem:
A roupa lá de casa
não se lava com sabão:
lava com ponta de sabre
e com bala de canhão...
Cantar, só, não fazia mal, não era pecado. As estradas cantavam. E ele achava muitas coisas bonitas, e tudo era mesmo bonito, como são todas as coisas, nos caminhos do sertão.
Parou, para espiar um buraco de tatu, escavado no barranco; para descascar um ananás selvagem, de ouro mouro, com cheiro de presépio; para tirar mel da caixa comprida da abelha borá; para rezar perto de um pau-d’arco florido e de um solene pau-d’óleo, que ambos conservavam, muito de fresco, os sinais da mão de Deus. E, uma vez, teve de se escapar, depressa, para a meia-encosta, e ficou a contemplar, do alto, o caminho, belo como um rio, reboante ao tropel de uma boiada de duas mil cabeças, que rolava para o Itacambira, com a vaqueirama encourada — piquete de cinco na testa, em cada talão sete ou oito, e, atrás, todo um esquadrão de ulanos morenos, cantando cantigas do alto sertão.
E também fez, um dia, o jerico avançar atrás de um urubu reumático, que claudicava estrada a fora, um pedaço, antes de querer voar. E bebia, aparada nas mãos, a água das frias cascatas véus-de-noivas dos morros, que caem com tom de abundância e abandono. Pela primeira vez na sua vida, se extasiou com as pinturas do poente, com os três coqueiros subindo da linha da montanha para se recortarem num fundo alaranjado, onde, na descida do sol, muitas nuvens pegam fogo. E viu voar, do mulungu, vermelho, um tié ainda mais vermelho — e o tié-piranga pousou num ramo do barbatimão sem flores, e Nhô Augusto sentiu que o barbatimão todo se alegrava, porque tinha agora um ramo que era de mulungu.
Viajou nas paragens dos mangabeiros, que lhe davam dormida nas malocas, de teto e paredes de palmas de buriti. Retornou à beira do rio, onde os barranqueiros lhe davam comida, de pirão com pimenta e peixe. Depois, seguiu.
Uma tarde, cruzou, em pleno chapadão, com um bode amarelo e preto, preso por uma corda e puxando, na ponta da corda, um cego, esguio e meio maluco. Parou, e o cego foi declamando lenta e mole melopeia:
Eu já vi um gato ler
e um grilo sentar escola,
nas asas de uma ema
jogar-se o jogo da bola,
dar louvores ao macaco.
Só me falta ver agora
acender vela sem pavio,
correr pra cima a água do rio,
o sol a tremer com frio
e a “lua” tomar tabaco!...
— Eh, zoeira! ‘tou também!.., — aplaudiu Nhô Augusto.
Já o cego estendia a mão, com a sacola:
— “Estou misturando aqui o dinheirinho de todos”...
Mas mudou de projeto, enquanto Nhô Augusto caçava qualquer cobre na algibeira:
— Tem algum de-comer, aí, irmão? Dinheiro quero menos, que por aqui por estes trechos a gente custa muito a encontrar qualquer povoado, e até as cafuas mesmo são vasqueiras...
E explicou: tinha um menino-guia, mas esse-um havia mais de um mês que escapulira; e teria roubado também o bode, se o bode não tivesse berrado e ele não investisse de porrete. Agora, era aquele bicho de duas cores quem escolhia o caminho... Sabia, sim, sabia tudo! Ótimo para guiar... Companheiro de lei, que nem gente, que nem pessoa de sua família...
Se despediu. Achava a vida muito boa, e ia para a Bahia, de volta para o Caitité, porque quando era menino tinha nascido lá.
— Pois eu estou indo para a banda de onde você veio... Em todo o caso, meu compadre cego por destino de Deus, em todo o caso, dá lembrança minha a todos do povo da sua terra, toda essa gente certa, que eu não tenho ocasião de conhecer!
E aí o jumento andou, e Nhô Augusto ainda deu um eco, para o cerrado ouvir:
— “Qualquer paixão me adiverte!”... Oh coisa boa a gente andar solto, sem obrigação nenhuma e bem com Deus!...
E quando o jegue empacava — porque, como todo jumento, ele era terrível de queixo-duro, e tanto tinha de orelhas quanto de preconceitos — Nhô Augusto ficava em cima, mui concorde, rezando o terço, até que o jerico se decidisse a caminhar outra vez. E também, nas encruzilhadas, deixava que o bendito asno escolhesse o caminho, bulindo com as conchas dos ouvidos e ornejando. E bastava batesse no campo o pio de uma perdiz magoada, ou viesse do mato a lália lamúria dos tucanos, para o jumento mudar de rota, pendendo à esquerda ou se em pescoçando para a direita; e, por via de um gavião casaco-de-couro cruzar-lhe à frente, já ele estacava, em concentrado prazo de irresolução.
Mas, somadas as léguas e deduzidos os desvios, vinham eles sempre para o sul, na direção das maitacas viajoras. Agora, amiudava-se o aparecimento de pessoas — mais ranchos, mais casas, povoados, fazendas; depois, arraiais, brotando do chão. E então, de repente, estiveram a muito pouca distância do arraial do Murici.
— Não me importo! Aonde o jegue quiser me levar, nós vamos, porque estamos indo é com Deus!...
E assim entraram os dois no arraial do Rala-Côco, onde havia, no momento, uma agitação assustada no povo.
Mas, quando responderam a Nhô Augusto: — É a jagunçada de seu Joãozinho Bem-Bem, que está descendo para a Bahia... — ele, de alegre, não se pôde conter:
— Agora sim! Cantou pra mim, passarim! ... Mas, onde é que eles estão?
Estavam aboletados, bem no centro do arraial, numa casa de fazendeiro, onde seu Joãozinho Bem-Bem recebeu Nhô Augusto, com muita satisfação.
Nhô Augusto caçoou:
— “Boi andando no pasto, pra lá e pra cá, capim que acabou ou está para acabar”...
— É isso, mano velho... Livrei meu compadre Nicolau Cardoso, bom homem... E agora vou ajuntar o resto do meu pessoal, porque tive recado de que a política se apostemou, do lado de lá das divisas, e estou indo de rota batida para o Pilão Arcado, que o meu amigo Franquilim de Albuquerque é capaz de precisar de mim...
Fitava Nhô Augusto com olhos alegres, e tinha no rosto um ar paternal. Mas, na testa, havia o resto de uma ruga.
— Está vendo, mano velho? Quem é que não se encontra, neste mundo?... Fico prazido, por lhe ver. E agora o senhor é quem está em minha casa... Vai se arranchar comigo. Se abanque, mano velho, se abanque!... Arranja um café aqui pra o parente, Flosino!
— Não queria empalhar... O senhor está com pouco prazo...
— Que nada, mano velho! Nós estamos de saída, mas ainda falta ajustar um devido, para não se deixar rabo para trás... Depois lhe conto. O senhor mesmo vai ver, daqui a pouco... Come com gosto, mano velho.
Nhô Augusto mordia o pão de broa, e espiava, inocente, para ver se já vinha o café.
— Tem chá de congonha, requentado, mano velho...
— Aceito também, amigo. Estou com fome de tropeiro... Mas, qu’é do Juruminho?
— Ah, o senhor guardou o nome, e, apois, gostou dele, do menino... Pois foi logo com o pobre do Juruminho, que era um dos mais melhores que eu tinha...
— Não diga...
O rosto de seu Joãozinho Bem-Bem foi ficando sombrio.
— O matador — foi à traição — caiu no mundo, campou no pé... Mas a família vai pagar tudo, direito!
Seu Joãozinho Bem-Bem, sentado em cima da beirada da mesa, brincava com os três bentinhos do pescoço, e batia, muito ligeiro, os calcanhares, um no outro. Nhô Augusto, parando de limpar os dentes com o dedo, lastimou:
— Coitado do Juruminho, tão destorcido e de tão bom parecer... Deixa eu rezar por alma dele...
Seu Joãozinho Bem-Bem desceu da mesa e caminhou pela sala, calado. Nhô Augusto, cabeça baixa, sempre sentado num selim velho, dava o ar de quem estivesse com a mente muito longe.
— Escuta, mano velho...
Seu Joãozinho Bem-Bem parou em frente de Nhô Augusto, e continuou:
— ....eu gostei da sua pessoa, em desde a primeira hora, quando o senhor caminhou para mim, na rua daquele lugarejo... Já lhe disse, da outra vez, na sua casa: o senhor não me contou coisa nenhuma de sua vida, mas eu sei que já deve de ter sido brigador de ofício. Olha: eu, até de longe, com os olhos fechados, o senhor não me engana: juro como não há outro homem p’ra ser mais sem medo e disposto para tudo. É só o senhor mesmo querer...
— Sou um pobre pecador, seu Joãozinho Bem-Bem...
— Que o quê! Essa mania de rezar é que está lhe perdendo... O senhor não é padre nem frade, pra isso; é algum?... Cantoria de igreja, dando em cabeça fraca, desgoverna qualquer valente... Bobajada!...
— Bate na boca, seu Joãozinho Bem-Bem meu amigo, que Deus pode castigar!
— Não se ofenda, mano velho, deixe eu dizer: eu havia de gostar, se o senhor quisesse vir comigo, para o norte... Já lhe falei e torno a falar: é convite como nunca fiz a outro, e o senhor não vai se arrepender! Olha: as armas do Juruminho estão aí, querendo dono novo...
— Deixa eu ver...
Nhô Augusto bateu a mão na winchester, do jeito com que um gato poria a pata num passarinho. Alisou coronha e cano. E os seus dedos tremiam, porque essa estava sendo a maior das suas tentações.
Fazer parte do bando de seu Joãozinho Bem-Bem! Mas os lábios se moviam — talvez ele estivesse proferindo entre dentes o creio-em-deus-padre — e, por fim, negou com a cabeça, muitas vezes:
— Não posso, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem!... Depois de tantos anos... Fico muito agradecido, mas não posso, não me fale nisso mais...
E ria para o chefe dos guerreiros, e também por dentro se ria, e era o riso do capiau ao passar a perna em alguém, no fazer qualquer negócio.
— Está direito, lhe obrigar não posso... Mas, pena é...
Nisso, fizeram um estardalhaço, à entrada.
— Quem é?
— É o tal velho caduco, chefe.
— Deixa ele entrar. Vem cá, velho.
O velhote chorava e tremia, e se desacertou, frente às pessoas. Afinal, conseguiu ajoelhar-se aos pés de seu Joãozinho Bem-Bem.
— Ai, meu senhor que manda em todos... Ai, seu Joãozinho Bem-Bem, tem pena!... Tem pena do meu povinho miúdo... Não corta o coração de um pobre pai...
— Levanta, velho...
— O senhor é poderoso, é dono do choro dos outros... Mas a Virgem Santíssima lhe dará o pago por não pisar em formiguinha do chão... Tem piedade de nós todos, seu Joãozinho Bem- Bem!...
— Levanta, velho! Quem é que teve piedade do Juruminho, baleado por detrás?
— Ai, seu Joãozinho Bem-Bem, então lhe peço, pelo amor da senhora sua mãe, que o teve e lhe deu de mamar, eu lhe peço que dê ordem de matarem só este velho, que não presta para mais nada... Mas que não mande judiar com os pobrezinhos dos meus filhos e minhas filhas, que estão lá em casa sofrendo, adoecendo de medo, e que não têm culpa nenhuma do que fez o irmão... Pelo sangue de Jesus Cristo e pelas lágrimas da Virgem Maria!...
E o velho tapou a cara com as mãos, sempre ajoelhado, curvado, soluçando e arquejando.
Seu Joãozinho Bem-Bem pigarreou, e falou:
— Lhe atender não posso, e com o senhor não quero nada, velho. É a regra... Senão, até quem é mais que havia de querer obedecer a um homem que não vinga gente sua, morta de traição?... É a regra. Posso até livrar de sebaça, às vezes, mas não posso perdoar isto não... Um dos dois rapazinhos seus filhos tem de morrer, de tiro ou à faca, e o senhor pode é escolher qual deles é que deve de pagar pelo crime do irmão. E as moças... Para mim não quero nenhuma, que mulher não me enfraquece: as mocinhas são para os meus homens...
— Perdão, para nós todos, seu Joãozinho Bem-Bem... Pelo corpo de Cristo na Sexta-feira da Paixão!
— Cala a boca, velho. Vamos logo cumprir a nossa obrigação...
Mas, aí, o velho, sem se levantar, inteiriçou-se, distendeu o busto para cima, como uma caninana enfunada, e pareceu que ia chegar com                                                                                                                                                                                                a cara até em frente à de seu Joãozinho Bem-Bem. Hirto, cordoveias retesas, mastigando os dentes e cuspindo baba, urrou:
— Pois então, satanás, eu chamo a força de Deus pra ajudar a minha fraqueza no ferro da tua força maldita!
Houve um silêncio. E, aí:
— Não faz isso, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem, que o desgraçado do velho está pedindo em nome de Nosso Senhor e da Virgem Maria! E o que vocês estão querendo fazer em casa dele é coisa que nem Deus não manda e nem o diabo não faz!
Nhô Augusto tinha falado; e a sua mão esquerda acariciava a lâmina da lapiana, enquanto a direita pousava, despreocupada, no pescoço da carabina. Dera tom calmo às palavras, mas puxava forte respiração soprosa, que quase o levantava do selim e o punha no assento outra vez. Os olhos cresciam, todo ele crescia, como um touro que acha os vaqueiros excessivamente abundantes e cisma de ficar sozinho no meio do curral.
— Você está caçoando com a gente, mano velho?
— Estou não. Estou pedindo como amigo, mas a conversa é no sério, meu amigo, meu parente, seu Joãozinho Bem-Bem.
— Pois pedido nenhum desse atrevimento eu até hoje nunca que ouvi nem atendi!...
O velho engatinhou, ligeiro, para se encostar na parede. No calor da sala, uma mosca esvoaçou.
— Pois então... — e Nhô Augusto riu, como quem vai contar uma grande anedota — ... Pois então, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem, é fácil... Mas tem que passar primeiro por riba de eu defunto...
Joãozinho Bem-Bem se sentia preso a Nhô Augusto por uma simpatia poderosa, e ele nesse ponto era bem assistido, sabendo prever a viragem dos climas e conhecendo por instinto as grandes coisas. Mas Teófilo Sussuarana era bronco excessivamente bronco, e caminhou para cima de Nhô Augusto. Na sua voz:
— Epa! Nomopadrofilhospritossantamêin! Avança, cambada de filhos-da-mãe, que chegou minha vez!...
E a casa matraqueou que nem panela de assar pipocas, escurecida à fumaça dos tiros, com os cabras saltando e miando de maracajás, e Nhô Augusto gritando qual um demônio preso e pulando como dez demônios soltos.
— Ô gostosura de fim de mundo!...
E garrou a gritar todas as palavras feias e os nomes imorais que aprendera em sua farta existência, e que havia muitos anos não proferia. E atroava, também, a voz de seu Joãozinho Bem-Bem:
— Sai, Canguçu! Foge, daí, Epifânio! Deixa nós dois brigar sozinhos!
A coronha do rifle, no pé-do-ouvido... Outro pulo... Outro tiro... Três dos cabras correram, porque outros três estavam mortos, ou quase, ou fingindo.
E aí o povo encheu a rua, à distância, para ver. Porque não havia mais balas, e seu Joãozinho Bem-Bem mais o Homem do Jumento tinham rodado cá para fora da casa, só em sangue e em molambos de roupas pendentes. E eles negaceavam e pulavam, numa dança ligeira, de sorriso na boca e de faca na mão.
— Se entregue, mano velho, que eu não quero lhe matar...
— Joga a faca fora, dá viva a Deus, e corre, seu Joãozinho Bem-Bem...
— Mano velho! Agora é que tu vai dizer: quantos palmos é que tem, do calcanhar ao cotovelo!...
— Se arrepende dos pecados, que senão vai sem contrição, e vai direitinho pra o inferno, meu parente seu Joãozinho Bem-Bem!...
— Ui, estou morto...
A lâmina de Nhô Augusto talhara de baixo para cima, do púbis à boca-do-estômago, e um mundo de cobras sangrentas saltou para o ar livre, enquanto seu Joãozinho Bem-Bem caía ajoelhado, recolhendo os seus recheios nas mãos.
Aí, o povo quis amparar Nhô Augusto, que punha sangue por todas as partes, até do nariz e da boca, e que devia de estar pesando demais, de tanto chumbo e bala. Mas tinha fogo nos olhos de gato-do-mato, e o busto, especado, não vergava para o chão.
— Espera aí, minha gente, ajudem o meu parente ali, que vai morrer mais primeiro... Depois, então, eu posso me deitar.
— Estou no quase, mano velho... Morro, mas morro na faca do homem mais maneiro de junta e de mais coragem que eu já conheci!... Eu sempre lhe disse quem era bom mesmo, mano velho... E só assim que gente como eu tem licença de morrer... Quero acabar sendo amigos...
— Feito, meu parente, seu Joãozinho Bem-Bem. Mas, agora, se arrepende dos pecados, e morre logo como um cristão, que é para a gente poder ir juntos...
Mas, seu Joãozinho Bem-Bem, quando respirava, as rodilhas dos intestinos subiam e desciam. Pegou a gemer. Estava no estorcer do fim. E, como teimava em conversar, apressou ainda mais a despedida. E foi mesmo.
Alguém gritou: — “Eh, seu Joãozinho Bem-Bem já bateu com o rabo na cerca! Não tem mais!”... — E então Nhô Augusto se bambeou nas pernas, e deixou que o carregassem.
— Pra dentro de casa, não, minha gente. Quero me acabar no solto, olhando o céu, e no claro... Quero é que um de vocês chame um padre... Pede para ele vir me abençoando pelo caminho, que senão é capaz de não me achar mais...
E riu.
E o povo, enquanto isso, dizia: “Foi Deus quem mandou esse homem no jumento, por môr de salvar as famílias da gente!...” E a turba começou a querer desfeitear o cadáver de seu Joãozinho Bem-Bem, todos cantando uma cantiga que qualquer um estava inventando na horinha:
Não me mata, não me mata
seu Joãozinho Bem-Bem!
Você não presta mais pra nada,
seu Joãozinho Bem-Bem!...
Nhô Augusto falou, enérgico:
— Pára com essa matinada, cambada de gente herege!... E depois enterrem bem direitinho o corpo, com muito respeito e em chão sagrado, que esse aí é o meu parente seu Joãozinho Bem-Bem!
E o velho choroso exclamava:
— Traz meus filhos, para agradecerem a ele, para beijarem os pés dele!... Não deixem este santo morrer assim... Pra que foi que foram inventar arma de fogo, meu Deus?!
Mas Nhô Augusto tinha o rosto radiante, e falou:
— Perguntem quem é aí que algum dia já ouviu falar no nome de Nhô Augusto Esteves, das Pindaíbas!
— Virgem Santa! Eu logo vi que só podia ser você, meu primo Nhô Augusto...
Era o João Lomba, conhecido velho e meio parente. Nhô Augusto riu:
— E hein, hein João?!
— Pra ver...
Então, Augusto Matraga fechou um pouco os olhos, com sorriso intenso nos lábios lambuzados de sangue, e de seu rosto subia um sério contentamento.
Daí, mais, olhou, procurando João Lomba, e disse, agora sussurrado, sumido:
— Põe a benção na minha filha... seja lá onde for que ela esteja... E, Dionora... Fala com a Dionora que está tudo em ordem!
Depois, morreu.
 
Guimarães Rosa
Enviado por Germino da Terra em 11/10/2012
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras