retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


A hora e vez de Augusto Matraga (parte II), de Guimarães Rosa, em Contos e Novelas, seleção de Graciliano Ramos. Livraria – Editora Casa do Estudante do Brasil

...
E, quando chegaram ao rancho do Barranco, ao fim de légua e meia, Nhô Augusto já vinha quase que só carregado, meio nu, todo picado de faca, quebrado de pancadas e enlameado grosso, poeira com sangue.
Empurraram-no para o chão, e ele nem se moveu.
— É aqui mesmo, companheiros. Depois, é só jogar lá para baixo, pra nem a alma se salvar...
Os jagunços veteranos da chácara do major Consilva acenderam seus cigarros, com descanso, mal interessados na execução. Mas os quatro que tinham sido bate-paus de Nhô Augusto mostravam maior entusiasmo, enquanto o capiauzinho sem testa, diligente e contente, ia ajuntar lenha para fazer fogo.
E, aí, quando tudo esteve a ponto, abrasaram o ferro com a marca do gado do major — que soía ser um triângulo inscrito numa circunferência —, e imprimiram-na, com chiado, chamusco e fumaça, na polpa glútea direita de Nhô Augusto. Mas recuaram todos, num susto, porque Nhô Augusto viveu-se, com um berro e um salto, medonhos.
— Segura!
Mas já ele alcançara a borda do barranco, e pulara no espaço. Era uma altura. O corpo rolou, lá em baixo, nas moitas, se sumindo.
— Por onde é que a gente passa, pra poder ir ver se ele morreu?
Mas um dos capangas mais velhos disse melhor:
— Arma uma cruz aqui mesmo, Orósio, para de noite ele não vir puxar teus pés...
E deram as costas, regressando, sob um sol mais próximo e maior.
Mas o preto que morava na boca do brejo, quando calculou que os outros já teriam ido embora, saiu do seu esconso, entre as taboas, e subiu aos degraus de mato do pé do barranco. Chegou-se. Encontrou vida funda no corpo tão maltratado do homem branco; chamou a preta, mulher do preto que morava na boca do brejo, e juntos carregaram Nhô Augusto para o casebre dos dois, que era um cofo de barro seco, sob um tufo de capim podre, mal erguido e mal avistado, no meio das árvores, como um ninho de maranhões.
E o preto foi cortar padieiras e travessas, para um esquife, enquanto a preta procurava um coto de vela benta, para ser posta na mão do homem, na hora do “Diga Jesus comigo, irmão”...
Mas, nessa espera, por surpresa, deu-se que Nhô Augusto pôs sua pessoa nos olhos, e gemeu:
— Me matem de uma vez, por caridade, pelas chagas de Nosso Senhor...
Depois, falou coisas sem juízo, para gente ausente, pois estava lavorando de quente e tinha mesmo de delirar.
— Deus que me perdoe — resmungou a preta, — mas este homem deve de ser ruim feito cascavel barreada em buraco, porque está variando que faz e acontece, e é só braveza de matar e sangrar... E ele chama por Deus, na hora da dor forte, e Deus não atende, nem para um fôlego, assim num desamparo como eu nunca vi!
Mas o negro só disse:
— Os outros não vão vir aqui, para campear defunto, porque a pirambeira não tem descida, só dando muita volta por longe. E, como tem um bezerro morto, na biboca, lá de cima vão pensar que os urubus vieram por causa do que eles estão pensando...
Deitado na esteira, no meio de molambos, no canto escuro da choça de chão de terra, Nhô Augusto, dias depois, quando voltou a ter noção das coisas, viu que tinha as pernas metidas em toscas talas de taboca e acomodadas em regos de telhas, porque a esquerda estava partida em dois lugares, e a direita num só, mas com ferida aberta. As moscas esvoaçavam e pousavam, e o corpo todo lhe doía, com costelas também partidas, e mais um braço, e um sofrimento de machucaduras e cortes, e a queimadura da marca de ferro, como se o seu pobre corpo tivesse ficado imenso.
Mesmo assim, com isso tudo, ele disse a si que era melhor viver. Bebeu mingau ralo de fubá, e a preta enrolou para ele um cigarro de palha. Em sua procura não aparecera ninguém. Podia sarar. Podia pensar.
Mas, de tardinha, chegou a hora da tristeza; com grunhidos de porcos, ouvidos através das fendas da parede, e os ruflos das galinhas, procurando poleiro nos galhos, e a negra, lá fora, lavando as panelas e a cantar:
As árvores do Mato-Bento
deitam no chão pra dormir...
E havia também, quando a preta parava, as cantigas miúdas dos bichinhos mateiros e os sons dos primeiros sapos.
Esfriou o tempo, antes do anoitecer. As dores melhoraram. E, aí, Nhô Augusto se lembrou da mulher e da filha. Sem raiva, sem sofrimento, mesmo, só com uma falta de ar enorme, sufocando. Respirava aos arrancos, e teve até medo, porque não podia ter tento nessa desordem toda, e era como se o corpo não fosse mais seu. Até que pôde chorar, e chorou muito, um choro solto, sem vergonha nenhuma, de menino ao abandono. E, sem saber e sem poder, chamou alto soluçando:
— Mãe... Mãe...
Aí, o preto, que estava sentado, pondo chumbada no anzol, no pé da porta de casa, ouviu e ficou atrapalhado; chamou a preta, que veio ligeira e se enterneceu:
— Não faz assim, seu moço, não desespera. Reza, que Deus endireita tudo... Pra tudo Deus dá o jeito!
E a preta acendeu a candeia, e trouxe uma estampa de Nossa Senhora do Rosário, e o terço.
Agora, parado o pranto, a tristeza tomou conta de Nhô Augusto. Uma tristeza mansa, com muita saudade da mulher e da filha, e com um dó imenso de si mesmo. Tudo perdido! O resto, ainda podia... Mas, ter a sua família, direito, outra vez, nunca. Nem a filha... Para sempre... E era como se tivesse caído num fundo de abismo, em outro mundo distante.
E ele teve uma vontade virgem, uma precisão de contar a sua desgraça, de repassar as misérias da sua vida. Mas mordeu a fala e não desabafou. Também não rezou. Porém a luzinha da candeia era o pavio, a tremer, com brilhos bonitos no poço de azeite, contando histórias da infância de Nhô Augusto, histórias mal lembradas, mas todas de bom e bonito final. Fechou os olhos. Suas mãos, uma na outra, estavam frias. Deu-se ao cansaço. Dormiu.
E desse modo ele se doeu no enxergão, muitos meses, por que os ossos tomavam tempo para se ajuntar, e a fratura exposta criara bicheira. Mas os pretos cuidavam muito dele, não arrefecendo na dedicação.
— Se eu pudesse ao menos ter absolvição dos meus pecados!...
Então eles trouxeram, uma noite, muito à escondida, o padre, que o confessou e conversou com ele, muito tempo, dando-lhe conselhos que o faziam chorar.
— Mas, será que Deus vai ter pena de mim, com tanta ruindade que fiz, e tendo nas costas tanto pecado mortal?!
— Tem, meu filho. Deus mede a espora pela rédea, e não tira o estribo do pé de arrependido nenhum...
E por aí a fora foi, com um sermão comprido, que acabou depondo o doente num desvencido torpor.
— Eu acho boa essa ideia de se mudar para longe, meu filho. Você não deve pensar mais na mulher, nem em vinganças. Entregue para Deus, e faça penitência. Sua vida foi entortada no verde, mas não fique triste, de modo nenhum, porque a tristeza é aboio de chamar o demônio, e o Reino do Céu, que é o que vale, ninguém tira de sua algibeira, desde que você esteja com a graça de Deus, que ele não regateia a nenhum coração contrito!
— Fé eu tenho, fé eu peço, Padre...
— Você nunca trabalhou, não é? Pois, agora, por diante, cada dia de Deus você deve trabalhar por três, e ajudar os outros, sempre que puder. Modere esse mau gênio: faça de conta que ele é um poldro bravo, e que você é mais mandante do que ele... Peça a Deus assim, com esta jaculatória: “Jesus, manso e humilde de coração, fazei meu coração semelhante ao vosso”...
E, páginas adiante, o padre se portou ainda mais excelentemente, porque era mesmo uma brava criatura. Tanto assim, que, na despedida, insistiu:
— Reze e trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina com sol quente, que às vezes custa muito a passar, mas sempre passa. E você ainda pode ter muito pedaço bom de alegria... Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua.
E, lá fora, ainda achou de ensinar à preta um enxofre e tal para o gogo dos frangos, e aconselhou o preto a pincelar água de cal no limoeiro, e a plantar tomateiros e pés de mamão.
Meses não são dias, e a vida era aquela, no chão da choupana. Nhô Augusto comia, fumava, pensava e dormia. E tinha pequenas esperanças: de amanhã em diante, o lado de cá vai doer menos, se Deus quiser... — E voltou a recordar todas as rezas aprendidas na meninice, com a avó. Todas e muitas mais, mesmo as mais bobas de tanta deformação e mistura: as que o preto engrolava, ao lavar-lhe com creolina a ferida da perna, e as que a preta murmurava, benzendo a cuia d’água, ao lhe dar de beber.
E somente essas coisas o ocupavam, porque para ele, féria feita, a vida já se acabara, e só esperava era a salvação da sua alma e a misericórdia de Deus Nosso Senhor. Nunca mais seria gente! O corpo estava estragado, por dentro, e mais ainda a ideia. E tomara um tão grande horror às suas maldades e aos seus malfeitos passados, que nem podia se lembrar; e só mesmo rezando.
Espantava as ideias tristes, e, com o passar do tempo, tudo isso lhe foi dando uma espécie nova e mui serena de alegria. Esteve resignado, e fazia compridos progressos na senda da conversão.
Quando ficou bom para andar, escorando-se nas muletas que o preto fabricara, já tinha os seus planos, menos maus, cujo ponto de início consistia em ir para longe, para o sitiozinho perdido no sertão mais longínquo uma data de dez alqueires, que ele não conhecia nem pensara jamais que teria de ver, mas que era agora a única coisa que possuía de seu. Antes de partir, teve com o padre uma derradeira conversa, muito edificante e vasta. E, junto com o casal de pretos samaritanos, que, ao hábito de se desvelarem, agora não o podiam deixar nem por nada, pegou chão, sem paixão.
Largaram à noite, porque o começo da viagem teria de ser uma verdadeira escapada. E, ao sair, Nhô Augusto se ajoelhou, no meio da estrada, abriu os braços em cruz, e jurou:
— Eu vou pra o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal!... E a minha vez há de chegar... Pra o céu eu vou, nem que seja a porrete!... E os negros aplaudiram, e a turminha pegou o passo, a caminho do sertão.
Foram norte a fora, na derrota dos criminosos fugidos, dormindo de dia e viajando de noite, como cativos amocambados, de quilombo a quilombo. Para além do Bacupari, do Boqueirão, da Broa, da Vaca e da Vacaria, do Peixe-Bravo, dos Tachos, do Tamariduá, da Serra-Fria, e de todos os muitos arraiais jazentes na reta das léguas, ao pé dos verdes morros e dos morros de cristais brilhantes, entre as varjarias e os cordões-de-mato. E deixavam de lado moendas e fazendas, e as estradas com cancelas, e roçarias e sítios de monjolos, e os currais do Fonseca, e a pedra quadrada dos irmãos Trancoso; e mesmo as grandes casas velhas, sem gente mais morando, vazias como os seus currais. E dormiam nas brenhas, ou sob as árvores de sombra das caatingas, ou em ranchos de que todos são donos, à beira das lagoas com patos e das lagoas cobertas de mato. Atravessaram o Rio das Rãs e o Rio do Sapo. E vieram, por picadas penhascosas e sendas de pedregulho, contra as serras azuis e as serras amarelas, sempre. Depois, por baixadas, com outeiros, terras mansas. E em paragens ripuárias, mas evitando a linha dos vaus, sob o voo das garças — os caminhos por onde as boiadas vêm, beirando os rios.
E assim se deu que, lá no povoado do Tombador — onde, às vezes, pouco às vezes e somente quando transviados da boa rota, passavam uns bruaqueiros tangendo tropa, ou uns baianos corajosos migrando rumo sul, — apareceu, um dia, um homem esquisito, que ninguém não podia entender.
Mas todos gostaram logo dele, porque era meio doido e meio santo; e compreender deixaram para depois.
Trabalhava que nem um afadigado por dinheiro, mas, no feito, não tinha nenhuma ganância e nem se importava com acrescentes: o que vivia era querendo ajudar os outros. Capinava para si e para os vizinhos do seu fogo, no querer de repartir, dando de amor o que possuísse. E só pedia, pois, serviço para fazer, e pouca ou nenhuma conversa.
O casal de pretos, que moravam junto com ele, era quem mandava e desmandava na casa, não trabalhando um nada e vivendo no estadão. Mas, ele, tinham-no visto mourejar até dentro da noite de Deus, quando havia luar claro.
Nos domingos, tinha o seu gosto de tomar descanso: batendo mato, o dia inteiro, sem sossego, sem espingarda nenhuma e nem nenhuma arma para caçar; e, de tardinha, fazendo parte com as velhas corocas que rezavam o terço ou os meses dos santos. Mas fugia às léguas de viola ou sanfona, ou de qualquer outra qualidade de música que escuma tristezas no coração.
Quase sempre estava conversando sozinho, e isso também era de maluco, diziam; porque eles ignoravam que o que fazia era apenas repetir, sempre que achava preciso, a fala final do padre: — “Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua”. — E era só.
E assim se passaram pelo menos seis ou seis anos e meio, direitinho deste jeito, sem tirar e nem pôr, sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma estória inventada, e não é um caso acontecido, não senhor.
Quem quisesse, porém, durante esse tempo, ter dó de Nhô Augusto, faria grossa bobagem, porquanto ele não tinha tentações, nada desejava, cansava o corpo no pesado e dava rezas para a sua alma, tudo isso sem esforço nenhum, como os cupins que levantam no pasto murundus vermelhos, ou como os tico ticos, que penam sem cessar para levar comida ao filhote de pássaro-preto bico aberto, no alto do mamoeiro, a pedir mais.
Esta última lembrança era do povo do Tombador, já que em toda a parte os outros implicam com os que deles se desinteressam, e que o pessoal nada sabia das alheias águas passadas, e nem que o negro e a negra eram agora pai e mãe de Nhô Augusto.
Também, não fumava mais, não bebia, não olhava para o bom parecer das mulheres, não falava junto em discussão. Só o que ele não podia era se lembrar da sua vergonha; mas, ali, naquela biboca perdida, fim de mundo, cada dia que descia ajudava a esquecer.
Mas, como tudo é mesmo muito pequeno, e o sertão ainda é menor, houve que passou por lá um conhecido velho de Nhô Augusto — o Tião da Tereza — à procura de trezentas reses de uma boiada brava, que se desmanchara nos gerais do alto Urucuia, estourando pelos cem caminhos sem fim do chapadão.
Tião da Tereza ficou bobo de ver Nhô Augusto. E, como era casca-grossa, foi logo dando as notícias que ninguém não tinha pedido: a mulher, Dona Dionora, continuava amigada com seu Ovídio, muito de bem os dois, com tenção até em casamento de igreja, por pensarem que ela estava desimpedida de marido; com a filha, sim, é que fora uma tristeza: crescera sã e se encorpara uma mocinha muito linda, mas tinha caído na vida, seduzida por um cometa, que a levara do arraial, para onde não se sabia... O Major Consilva prosseguia mandando no Murici, e arrematara as duas fazendas de Nhô Augusto... Mas o mais mal arrumado tinha sido com o Quim, seu antigo camarada, o pobre do Quim Recadeiro — “Se alembra?” — Pois o Quim tinha morrido de morte-matada, com mais de vinte balas no corpo, por causa dele, Nhô Augusto: quando soube que seu patrão tinha sido assassinado, de mando do Major, não tivera dúvida: . . .jurou desforra, beijando a garrucha, e não esperou café coado! Foi cuspir no canguçu detrás da moita, e ficou morto, mas já dentro da sala de jantar do major, e depois de matar dois capangas e ferir mais um outro...
— Para, chega, Tião!... Não quero saber de mais coisa nenhuma! Só te peço é para fazer de conta que não me viu, e não contar pra ninguém, pelo amor de Deus, por amor de sua mulher, de seus filhos e de tudo o que para você tem valor!... Não é mentira muita, porque é a mesma coisa em como se eu tivesse morrido mesmo... Não tem mais nenhum Nhô Augusto Esteves, das Pindaíbas, Tião...
— Estou vendo, mesmo. Estou vendo...
E Tião da Tereza pôs, nos olhos, na voz e no meio aberto da boca, tanto nojo e desprezo, que Nhô Augusto abaixou o queixo; e nem adiantou repetir para si mesmo a jaculatória do coração manso e humilde: teve foi de sair, para trás das bananeiras, onde se ajoelhou e rejurou: — Pra o céu eu vou, nem que seja a porrete!...
E foi bom passo que nesse dia um homem chamado Romualdo, morador à beira da cava, precisou de ajuda para tirar uma égua do atoleiro, e Nhô Augusto teve trabalho até tarde da noite, com fogueira acesa e tocha na mão.
Mas, daí em seguida, ele não guardou mais poder para espantar a tristeza. E, com a tristeza, uma vontade doente de fazer coisas mal feitas, uma vontade sem calor no corpo, só pensada: como que, se bebesse e cigarrasse, e ficasse sem trabalhar nem rezar, haveria de recuperar sua força de homem e seu acerto de outro tempo, junto com a pressa das coisas, como os outros sabiam viver.
Mas, a vergonheira atrasada? E o castigo? O padre bem que tinha falado:
— “Você, em toda sua vida, não tem feito senão pecados muito graves, e Deus mandou estes sofrimentos só para um pecador poder ter a ideia do que o fogo do inferno é!”...
Sim, era melhor rezar mais, trabalhar mais e escorar firme, para poder alcançar o reino do céu. Mas o mais terrível era que o desmazelo de alma em que se achava não lhe deixava esperança nenhuma do jeito de que o céu podia ser.
— Desonrado, desmerecido, marcado a ferro feito rês, mãe Quitéria, e assim tão mole, tão sem homência, será que eu posso mesmo entrar no céu?!...
— Não fala fácil, meu filho!... Dei’stá: debaixo do angu tem molho, e atrás de morro tem morro.
— Isso sim... Cada um tem a sua vez, e a minha hora há de chegar!...
E, enquanto isso tudo, Nhô Augusto estava no escuro e sozinho, cercado de capiaus descalços, vestidos de riscado e seriguilha tinta, sem padre nenhum com quem falar. E essa era a consequência de um estouro de boiada na vastidão do planalto, por motivo de uma picada de vespa na orelha de um marruá bravio, combinada com a existência, neste mundo, do Tião da Tereza. E tudo foi bem assim, porque tinha de ser, já que assim foi.
Apenas, Nhô Augusto se confessou aos seus pretos tutelares, longamente, humanamente, e foi essa a primeira vez. E, no fim, desabafou: que era demais o que estava purgando pelos seus pecados, e que Nosso Senhor se tinha esquecido dele! A mulher, feliz, morando com outro... A filha, tão nova, e já na mão de todos, rolando por este mundo, ao deus-dará... E o Quim, o Quim Recadeiro — um rapazinho miúdo, tão no desamparo — e morrendo como homem, por causa do patrão... um patrão de borra, que estava prali no escondido, encostado, que nem como se tivesse virado mulher!...
— O resto é peso pra dia, mãe Quitéria... Mas, como é? Como é que eu vou me encontrar com o Quim lá com Deus, com que cara?!... E eu já fui zápete, já pus fama em feira, mãe Quitéria! Na festa do Rosário, na Tapera... E um dia em que enfrentei uns dez, fazendo todo o mundo correr... Desarmei e dei pancada, no Sergipão Congo, mãe Quitéria, que era mão que desce, mesmo monstro matador!... E a briga, com a família inteira, pai, irmão, tio, da moça que eu tirei de casa, semana em antes de se casar?!
— Vira o demônio de costas, meu filho... Faz o que o seu padre mandou!
— E é o diabo mesmo, mãe Quitéria... Eu sei... Ou então é castigo, porque eu vou me lembrar dessas coisas logo agora, que o meu corpo não está valendo, nem que eu queira, nem pra brigar com homem e nem pra gostar de mulher.
— Rezo o credo!
Mas Nhô Augusto, que estava de cócoras, sentou-se no chão e continuou:
— Tem horas em que fico pensando que, ao menos por honrar o Quim, que morreu por minha causa, eu tinha ordem de fazer alguma vantagem... Mas eu tenho medo... Já sei como é que o inferno é, mãe Quitéria... Podia ir procurar a coitadinha da minha filha, que talvez esteja sofrendo, precisando de mim... Mas eu sei que isso não é eito meu, não é não. Tenho é de ficar pagando minhas culpas, penando aqui mesmo, no sozinho. Já fiz penitência estes anos todos, e não posso ter prejuízo deles! Se eu quisesse esperdiçar essa penitência feita, ficava sem uma coisa e sem outra... Sou um desgraçado, mãe Quitéria, mas o meu dia há de chegar!... A minha vez...
 
Guimarães Rosa
Enviado por Germino da Terra em 11/10/2012
Alterado em 02/12/2012
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