retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


A hora e vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa, em Contos e Novelas, seleção de Graciliano Ramos. Livraria – Editora Casa do Estudante do Brasil
                                               “Eu sou pobre, pobre, pobre, vou-me embora, vou-me embora...
Eu sou rica, rica, rica, vou-me embora daqui!...”
(Cantiga antiga)

“Sapo não pula por boniteza,
Mas porém por precisão”.
(Provérbio capiau)
Matraga não é Matraga, não é nada. Matraga é Esteves. Augusto Esteves, filho do Coronel Afonsão Esteves, das Pindaíbas e do Saco-da-Embira. Ou Nhô Augusto — o homem — nessa noitinha de novena, num leilão de atrás da igreja, no arraial da Virgem Nossa Senhora das Dores do Córrego do Murici.
Procissão entrou, reza acabou. E o leilão andou depressa e se extinguiu, sem graça, porque a gente direita foi saindo embora, quase toda de uma vez.
Mas o leiloeiro ficara na barraca, comendo amêndoas de cartucho e pigarreando de rouco, bloqueado por uma multidão encachaçada de fim de festa.
E, na primeira fila, apertadas contra o balcãozinho, bem iluminadas pelas candeias de meia-laranja, as duas mulheres-à-toa estavam achando em tudo um espírito enorme, porque eram só duas e pois muito disputadas, todo o mundo com elas querendo ficar.
Beleza não tinham: Angélica era preta e mais ou menos capenga, e só a outra servia. Mas, perto, encostado nela outra, um capiau de cara romântica subia todo no sem-jeito; eles estavam se gostando, e, por isso, aquele povo encapetado não tinha — pelo menos para o pobre namorado — nenhuma razão de existir. E a cada momento as coisas para ele pioravam, com o pessoal aos gritos:
— Quem vai arrematar a Sariema? Anda, Tião! Bota a Sariema no leilão!...
— Bota no leilão! Bota no leilão...
A das duas raparigas que era branca e que tinha pescoço fino e pernas finas, e passou a chamar-se, imediatamente, Sane ma — pareceu se assustar. O capiau apaixonado deixou fuxicar, de cansaço, o meio-riso que trazia pendurado. E o leiloeiro pedia que houvesse juízo; mas ninguém queria atender.
— Dou cinco mil-réis!
— Sariema! Sariema!
E, aí, de repente, houve um deslocamento de gentes, e Nhô Augusto, alteado, peito largo, vestido de luto, pisando pé dos outros e com os braços em tenso, angulando os cotovelos, varou a frente da massa, se encarou com a Sariema, e pôs-lhe o dedo no queixo. Depois, com voz de meio-dia, berrou para o leiloeiro Tião:
— Cinquenta mil-réis!...
E ficou de mãos na cintura, sem dar rosto ao povo, mas pausando para os aplausos.
— Nhô Augusto! Nhô Augusto!
E insistiu fala mais forte:
— Cinquenta mil-réis, já disse! Dou-lhe uma! dou-lhe duas! Dou-lhe duas — dou-lhe três!
Mas, nisso, puxaram para trás a outra — a Angélica preta se rindo, semvergonha e dengosa — que se soverteu na montoeira, de braço em braço, de rolo em rolo, pegada, manuseada, beliscada e cacarejante:
— Virgem Maria Puríssima! Ui, pessoal!
E só então o Tião leiloeiro achou coragem para se impor:
— Respeito, gente, que o leilão é de santo!...
— Bau-bau!
— Me desprezo! Me desprezo desse herege!... Vão coçar suas costas em parede!... Coisa de igreja tem castigo, não é brinquedo... Deix’passar! ... Dá enxame, gente! Dá enxame!...
Alguns quiseram continuar vaia, mas o próprio Nhô Augusto abafou a arrelia:
— Sino e santo não é pagode, povo! Vou no certo... Abre, abre, deixa o Tião passar!
Então, surpresos, deram caminho, e o capiau amoroso quis ir também:
— Vamos embora, Tomázia, aproveitando a confusão... E sua voz baixava, humilde, porque para ele ela não era a Sariema. Pôs três dedos no seu braço, e bem que ela o quis acompanhar. Mas Nhô Augusto separou-os, com uma pranchada de mão:
— Não vai, não!
E, atrás, deram apoio os quatro guarda-costas:
— Tem areia! Tem areia! Não vai, não!
— É do Nhô Augusto... Nhô Augusto leva a rapariga! — gritava o povo, por ser barato. E uma voz bem entoada cantou de lá, por cantar:
Mariquinha é como a chuva,
boa é, p’ra quem quer bem!
Ela vem sempre de graça,
só não sei quando ela vem...
Aí o povaréu aclamou, com disciplina e cadência:
— Nhô Augusto leva a Sariema! Nhô Augusto leva a Sariema!
O capiauzinho ficou mais amarelo. A Sariema começou a querer chorar. Mas Nhô Augusto, rompente, alargou no tal três pescoções:
— Toma! Toma! E toma!... Está querendo?...
Ferveram faces.                              
— Que foi? Que foi?...
— Deix’eu ver!...
— Não me esbarra, filho-da-mãe!
E a agitação partiu povos, porque a maioria tinha perdido a cena, apreciando, como estavam, uma falta de lugar, que se dera entre um velho — “Cai n’água, barbado!” — e o sacristão, no quadrante noroeste da massa. E também no setor sul estalara, pouco antes, um mal-entendido, de um sujeito com a correia desafivelada lept!... lept!... —, com um outro pedindo espaço, para poder fazer sarilho com o pau.
— Que foi, hein?... Que foi?
Foi o capiauzinho apanhando, estapeado pelos quatro cacundeiros de Nhô Augusto, e empurrado para o denso do povo, que também queria estapear.
— Viva Nhô Augusto!
— Te apessoa para cá, do meu lado! — e Nhô Augusto deu o braço à rapariga, que parou de lacrimejar.
— Vamos andando.
Passaram entre alas e aclamações dos outros, que, aí, como não havia mais mulheres, nem brigas, pegaram a debandar ou a cantar:
Ei, compadre, chegadinho, chegou...
Ei, compadre, chega mais um bocadinho!...
Nhô Augusto apertava o braço da Sariema, como quem não tivesse tido prazo para utilizar no capiau todos os seus ímpetos:
— E é, hein?... A senhora dona queria ficar com aquele, hein?!
— Foi, mas agora eu gosto é de você... O outro eu mal e mal conheci...
Caminharam para casa. Mas para a casa do Beco do Sem Ceroula, onde só há três prédios — cada um deles com gramofone tocando, de cornetão à janela e onde gente séria entra mas não passa.
Nisso, porém, transpunham o adro, e Nhô Augusto parou, tirando o chapéu e fazendo o em-nome-do-padre, para saudar a porta da igreja. Mas o lugar estava bem alumiado, com lanterninhas e muita luz de azeite, pendentes dos arcos de bambu. E Nhô Augusto olhou a mulher.
— Que é?!... Você tem perna de manuel-fonseca, uma fina e outra seca! E está que é só osso, peixe cozido sem tempero... Capim p’ra mim, com uma sombração dessas!... Vá-se embora, frango-d’água! Some daqui!
E, empurrando a rapariga, que abriu a chorar o choro mais sentido da sua vida, Nhô Augusto desceu a ladeira sozinho — uma ladeira que a gente tinha de descer quase correndo, por que era só cristal e pedra solta.
Lá em baixo, esbarrou com o camarada, que trazia recado de Dona Dionora: que Nhô Augusto voltasse, ou ao menos desse um pulo até lá— à casa dele, de verdade, na Rua de Cima, — porque ainda havia muito arranjo a ultimar para a viagem, e ela — a mulher, a esposa — tinha uma ou duas coisas por perguntar...
Mas Nhô Augusto nem deixou o mensageiro acabar de acabar:
— Desvira, Quim, e dá o recado pelo avesso: eu lá não vou! ... Você apronta os animais, para voltar amanhã com Siá Dionora mais a menina, para o Morro Azul. Mas, em antes, você sobe por aqui, e vai avisar aos meus homens que eu hoje não preciso deles, não.
E o Quim Recadeiro correu, com o recado, enquanto Nhô Augusto ia indo em busca de qualquer luz em porta aberta, aonde houvesse assombros de homens, para entrar no meio ou desapartar.
Era fim de outubro, em ano resseco. Um cachorro soletrava, longe, um mesmo nome, sem sentido. E ia, no alto do mato, a lentidão da lua.
Dona Dionora, que tinha belos cabelos e olhos sérios, escutou aquela resposta, e não deu ar de seus pensamentos ao pobre camarada Quim. Mas muitos que eles eram, a rodar por lados contrários e a atormentar-lhe a cabeça, e ela estava cansada, pelo que, dali a pouco, teve vontade de chorar. E até a Mimita, que tinha só dez anos e já estava na cama, sorriu para dizer:
— Eu gosto, minha mãe, de voltar para o Morro Azul...
E então Dona Dionora enxugou os olhos e também sorriu, sem palavra para dizer. De voltar para o retiro, sem a companhia do marido, só tinha por que se alegrar. Sentia, pelo desdeixo. Mas até era bom sair do comércio, onde todo o mundo devia estar falando da desdita sua e do pouco-caso, que não merecia.
E ela conhecia e temia os repentes de Nhô Augusto. Duro, doido e sem detença, como um bicho grande do mato. E, em casa, sempre fechado em si. Nem com a menina se importava. Dela, Dionora, gostava, às vezes; da sua boca, das suas carnes. Só. No mais, sempre com os capangas, com mulheres perdidas, com o que houvesse de pior. Na fazenda — no Saco-da-Embira, nas Pindaíbas, ou no retiro do Morro Azul — ele tinha outros prazeres, outras mulheres, o jogo do truque e as caçadas. E sem efeito eram sempre as orações e promessas, com que ela o pretendera trazer, pelo menos, até a meio caminho direito.
Fora assim desde menino, uma meninice à louca e à larga, de filho único de pai pancrácio. E ela, Dionora, tivera culpa, por haver contrariado e desafiado a família toda, para se casar.
Agora, com a morte do Coronel Afonsão, tudo piorara, ainda mais. Nem pensar. Mais estúrdio, estouvado e sem regra, estava ficando Nhô Augusto. E com dividas enormes, política do lado que perde, falta de crédito, as terras no desmando, as fazendas escritas por paga, e tudo de fazer ânsia por diante, sem portas, como parede branca.
Dionora amara-o três anos, dois anos dera-os às dúvidas, e o suportara os demais. Agora, porém, tinha aparecido outro. Não, só de pôr aquilo na idéia, já sentia medo... Por si e pela filha... Um medo imenso.
Se fosse, se aceitasse de ir com o outro, Nhô Augusto era capaz de matá-la. Para isso, sim, ele prestava muito. Matava, mesmo, como dera conta do homem da foice, pago por vingança de algum ofendido. Mas, quem sabe se não era melhor se entregar à sina, com a proteção de Deus, se não fosse pecado... Fechar os olhos.
E o outro era diferente! Gostava dela, muito... Mais do que ele mesmo dizia, mais do que ele mesmo sabia, da maneira de que a gente deve gostar. E tinha uma força grande, de amor calado, e uma paciência quente, cantada, para chamar pelo seu nome: ...Dionora... “Dionora, vem comigo, vem comigo e traz a menina, que ninguém não toma vocês de mim!...” Bom... Como um sonho... Como um sono...
Dormiu.
E, assim, mal madrugadinha escassa, partiram as duas — Dona Dionora, no cavalo de silhão, e a Mimita, mofina e franzina, carregada à frente da sela do camarada Quim.
Pernoitaram no Pau Alto, no sítio de um tio nervoso, que riscava a mesa com as unhas e não se cansava de resmungar:
— Fosse eu, fosse eu... Uma filha custa sangue, filha é o que tem de mais valia...
— Sorte minha, meu tio...
— Sorte nunca é de um só, é de dois, é de todos... Sorte nasce cada manhã, e já está velha ao meio-dia...
— Culpa eu tive, meu tio...
— Quem não tem, quem não teve? Culpa muita, minha filha... Mãe do Nhô Augusto morreu, com ele ainda pequeno... Teu sogro era um leso, não era p’ra chefe de família... Pai era como que Nhô Augusto não tivesse... Um tio era criminoso, de mais de uma morte, que vivia escondido, lá no Saco-da-Embira... Quem criou Nhô Augusto foi a avó... Queria o menino p’ra padre... Rezar, rezar, o tempo todo, santimônia e ladainha...
De manhã, com o sol nascendo, retomaram a andadura. E, quando o sol esteve mais dono de tudo, e a poeira era mais seca, Mimita começou a gemer, com uma dor de pontada, e pedia água. E, depois, com um sorriso tristinho, perguntava:
— Por que é que o pai não gosta de nós, mãe?
E o Quim Recadeiro ficava a bater a cabeça, vez e vez, com muita circunspecção tola, em universal assentimento.
Mas, na passagem do brechão do Bugre, lá estava seu Ovídio Moura, que tinha sabido, decerto, dessa viagem de regresso.
— Dionora, você vem comigo... Ou eu saio sozinho por esse mundo, e nunca mais você há de me ver!
Mas Dona Dionora foi tão pronta, que ele mesmo se espantou.
— Nhô Augusto é capaz de matar a gente, seu Ovídio... Mas eu vou com o senhor, e fico, enquanto Deus nos proteger...
Seu Ovídio pegou a menina do colo do Quim, que nada escutara ou entendera e passou a cavalgar bem atrás.
E, quando chegaram no pilão-d’água do Mendonça, onde tem uma encruzilhada, e o camarada viu que os outros iam tomando o caminho da direita, estugou o cavalo e ainda gritou, para corrigir:
— Volta para trás, minha patroa, que o caminho por aí é outro!
Mas seu Ovídio se virou, positivo:
— Volta você, e fala com o seu patrão que Siá Dona Dionora não quer viver mais com ele, e que ela de agora por diante vai viver comigo, com o querer dos meus parentes todos e com a bênção de Deus!
Quim Recadeiro, no primeiro passo, ainda levou a mão ao chapéu de palha, cumprimentando:
— Pois sim, seu Ovídio... Eu dou o recado...
Ficou parado, limpando suor dos cabelos, sem se resolver. Mas, fim no fim, num achamento, se retesou nos estribos, e gritou:
— Homem sujo!... Tomara que uma coruja ache graça na tua porta!...
Jogou fora, e cuspiu em cima. E tocou para trás, em galope doido, dando poeira ao vento. Ia dizer a Nhô Augusto que a casa estava caindo.
Quando chega o dia da casa cair — que, com ou sem terremotos, é um dia de chegada infalível, — o dono pode estar: de dentro, ou de fora. É melhor de fora. E é a só coisa que um qualquer-um está no poder de fazer.
Mesmo estando de dentro, mais vale todo vestido e perto da porta da rua. Mas, Nhô Augusto, não: estava deitado na cama — o pior lugar que há para se receber uma surpresa má.
E o camarada Quim sabia disso, tanto que foi se encostando de medo que ele entrou. Tinha poeira até na boca. Tossiu.
— Levanta e veste a roupa, meu patrão Nhô Augusto, que eu tenho uma novidade meia ruim, p‘ra lhe contar.
E tremeu mais, porque Nhô Augusto se erguia de um pulo e num átimo se vestia. Só depois de meter na cintura o revólver, foi que interpelou, dente em dente:
— Fala tudo!
Quim Recadeiro gaguejou suas palavras poucas, e ainda pôde acrescentar:
— ...Eu podia ter arresistido, mas era negócio de honra, com sangue só p’ra o dono, e pensei que o senhor podia não gostar...
— Fez na regra, e feito! Chama os meus homens!
Dali a pouco, porém, tornava o Quim, com nova desolação: os bate-paus não vinham... Não queriam ficar mais com Nhô Augusto... O Major Consilva tinha ajustado, um e mais um, os quatro, para seus capangas, pagando bem. Não vinham, mesmo. O mais merecido, o cabeça, até mandara dizer, faltando ao respeito: — Fala com Nhô Augusto que sol de cima é dinheiro!... P’ra ele pagar o que está nos devendo... E é mandar por portador calado, que nós não podemos escutar prosa de outro, que seu Major disse que não quer.
— Cachorrada!... Só de pique... Onde é que eles estão?
— Indo de mudados, p’ra a chácara do Major...
— Major de borra! Só de pique, porque era inimigo do meu pai!...Vou lá!
— Mal em mim não veja, meu patrão Nhô Augusto, mas to dos no lugar estão falando que o senhor não possui mais nada, que perdeu suas fazendas e riquezas, e que vai ficar pobre, no já-já... E estão conversando, o Major mais outros grandes, querendo pegar o senhor à traição. Estão espalhando... — o senhor dê o perdão p’ra minha boca que eu só falo o que é perciso — estão dizendo que o senhor nunca respeitou filha dos outros nem mulher casada, e mais que é que nem cobra má, que quem vê tem de matar por obrigação... Estou lhe contando p’ra modo de o senhor não querer facilitar. Carece de achar outros companheiros bons, p’ra o senhor não ir sozinho...
Eu, não, porque sou medroso. Eu cá pouco presto... Mas, se o senhor mandar, também vou junto.
Mas Nhô Augusto se mordia, já no meio da sua missa, vermelho e feroz. Montou e galopou, teso para trás, rei na sela, enquanto o Quim Recadeiro ia lá dentro, caçar um gole d’água para beber. Assim.
Assim, quase qualquer um capiau outro, sem ser Augusto Esteves, naqueles dois contratempos teria percebido a chegada do azar, da unhaca, e passaria umas rodadas sem jogar fazendo umas férias na vida: viagem, mudança, ou qualquer coisa ensossa, para esperar o cumprimento do ditado: “Cada um tem seus seis meses...”
Mas Nhô Augusto era couro ainda por curtir, e para quem não sai, em tempo, de cima da linha, até apito de trem é mau agouro. Demais, quando um tem que pagar o gasto, desembesta até ao fim. E, desse jeito, achou que não era hora para ponderados pensamentos.
Nele, mal e mal, por debaixo da raiva, uma ideia resolveu por si: que antes de ir à Mombuca, para matar o Ovídio e a Dionora, precisava de cair com o Major Consilva e os capangas. Se não, se deixasse rasto por acertar, perdia a força. E foi.
Cresceu poeira, de peneira. A estrada ficou reta, cheia de gente com cautela. Chegou à chácara do Major.
Mas nem descavalgou, sem tempo. Do tope da escada, o dono da casa foi falando alto, risonho de ruim:
— Tempo do bem-bom se acabou, cachorro de Esteves!...
O cavalo de Nhô Augusto obedeceu para diante; as ferraduras tiniram e deram fogo no lajedo; e o cavaleiro, em pé nos estribos, trouxe a taca no ar, querendo a figura do velho. Mas o Major piscou, apenas, e encolheu a cabeça, porque mais não era preciso, e os capangas pulavam de cada beirada, e eram só pernas e braços.
— Frecha, povo! Desmancha!
Já os porretes caíam em cima do cavaleiro, que nem pinotes de matrinxãs na rede. Pauladas na cabeça, nos ombros, nas coxas. Nhô Augusto desdeu o corpo e caiu. Ainda se ajoelhou em terra, querendo firmar-se nas mãos, mas isso só lhe serviu para poder ver as caras horríveis dos seus próprios bate-paus, e, no meio deles, o capiauzinho mongo que amava a mulher à-toa Sariema.
E Nhô Augusto fechou os olhos, de gastura, porque ele sabia que capiau de testa peluda, com o cabelo quase nos olhos, é uma raça de homem capaz de guardar o passado em casa, em lugar fresco perto do pote, e ir buscar da rua outras raivas pequenas, tudo para ajuntar à massa-mãe do ódio grande, até chegar o dia de tirar vingança.
Mas, aí, pachorrenta e cuspida, ressoou a voz do major:
— Arrastem p’ra longe, para fora das minhas terras... Marquem a ferro, depois matem.
Nhô Augusto se alteou e estendeu o braço direito, agarrando o ar com os cinco dedos:
— Cá pra perto, carrasco!... Só mesmo assim desse jeito, pra sojigar Nhô Augusto Esteves, das Pindaíbas!...
E, seguro por mãos e pés, torcido aos pulsos dos capangas, urrava e berrava, e estrebuchava tanto, que a roupa se estraçalhava, e o corpo parecia querer partir-se em dois, pela metade da barriga. Desprendeu-se, por uma vez. Mas outros dos homens desceram os porretes. Nhô Augusto ficou estendido, de bruços, com a cara encostada no chão.
— Traz água fria, companheiro!
O capiauzinho da testa peluda cantou, mal entoado:
Sou como a ema,
Que tem penas e não voa...
Os outros começaram a ficar de cócoras.
Mas, quando Nhô Augusto estremeceu e tornou a solevar a cabeça, o major, lá da varanda, apertando muito os olhos, para espiar, e se abanando com o chapéu, tirou ladainha:
— Não tem mais nenhum Nhô Augusto Esteves, das Pindaíbas, minha gente?!...
E os cacundeiros, em coro:
— Não tem não! Tem mais não!...
Puxaram e arrastaram Nhô Augusto, pelo atalho do rancho do Barranco, que ficou sendo um caminho de pragas e judiação.
 
Guimarães Rosa
Enviado por Germino da Terra em 11/10/2012
Alterado em 30/11/2012
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