retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


sonho de uma noite de verão, de Shakespeare — condensado por Charles e Mary Lamb (tradução de Berenice Xavier)

Havia uma lei, na cidade de Atenas, que dava aos pais o direito de casar as filhas com os homens que eles pró­prios escolhessem; se alguma recusasse obediência, o pai, se­gundo a lei, poderia fazê-la condenar à morte. Como em geral, porém, os pais não desejam perder suas filhas, mesmo quando elas se mostram rebeldes, a lei raramente era aplicada, embora as jovens fossem muitas vezes ameaçadas de morte.
  Ocorreu, entretanto, que um velho chamado Egeu se apre­sentou a Teseu (então príncipe reinante em Atenas) para quei­xar-se de sua filha Hérmia. Ordenara-lhe que se casasse com Demétrio, filho de nobre família ateniense, mas ela se recusava a obedecer, porque amava outro jovem, de nome Lisandro. Egeu pedia, assim, justiça a Teseu, fazendo com que a lei fosse aplicada no caso de sua filha.
  Hérmia, para justificar a desobediência, alegava que De­métrio declarara amor a Helena, sua querida amiga, e que He­lena o amava loucamente. Razão tão justa, porém, não comovia o inflexível Egeu.
­  Apesar de grande e magnânimo príncipe, Teseu não tinha condições de alterar as leis do país; por conseguinte, pôde ape­nas conceder quatro dias a Hérmia, para que reconsiderasse sua decisão. Se ainda se recusasse a desposar Demétrio, no fim desse prazo, seria condenada à morte.
  Terminada a audiência com o príncipe, a jovem procurou seu amado e contou-lhe o perigo que a ameaçava: ou despo­sava Demétrio, ou morreria dentro de quatro dias.
  Ouvindo tão cruel notícia, Lisandro foi tomado de grande consternação; mas, lembrando-se de que uma sua tia morava a certa distância de Atenas, onde a desumana lei não poderia al­cançar sua amada, pois só vigorava dentro dos limites da cida­de, propôs a Hérmia que fugisse da casa paterna, naquela noite, e fosse com ele para a casa da parenta, onde se casariam.
  — Eu te esperarei disse — na floresta que há a alguns quilômetros da cidade; naquele bosque maravilhoso onde tantas vezes passeamos com Helena, no adorável mês de maio.
  Hérmia concordou alegremente com a proposta, e não falou de sua planejada fuga a ninguém, exceto à amiga Helena. Esta, porém (visto que por amor as moças cometem loucuras), resolveu muito ingratamente contar tudo a Demétrio, embora não pudesse esperar, com essa traição à amiga, mais que o in­significante prazer de acompanhar seu amado infiel ao bosque, pois sabia que Demétrio lá iria, à procura de Hérmia.
  O bosque em que Lisandro e Hérmia tencionavam en­contrar-se era um dos recantos favoritos desses pequenos seres conhecidos como Fadas.
  Oberon, o rei, e Titânia, a rainha das fadas, com todo o seu minúsculo cortejo de seguidores, costumavam realizar nes­sa floresta seus banquetes da meia-noite.
  Entre o pequenino rei e a pequenina rainha das fadas, re­gistrava-se, por essa época, um sério desentendimento: não po­diam encontrar-se na agradável alameda, à luz do luar, sem entrar em acaloradas discussões, fazendo com que os belos elfos, atemorizados, se ocultassem nas bolotas de carvalho.
  O    que motivava esse triste desacordo era o fato de Ti­tânia se recusar entregar a Oberon um menininho cuja mãe fora sua amiga. Ao morrer a amiga, a rainha das fadas roubara a criança dos braços da ama, e agora criava-a consigo na flo­resta.
  Na noite em que os amantes deviam encontrar-se, Titânia passeava, com algumas de suas damas de honra, e encontrou Oberon, acompanhado de seu séquito.
  — Que mal encontro para uma noite de luar, orgulhosa Titânia disse o rei.
  — Como! É o invejoso Oberon? Afastai-vos depressa, fadas, não quero saber dele!
  — Calma, calma. Então não sou o teu senhor? Por que Titânia contraria o seu Oberon? Dá-me o menino para que seja meu pajem.
  — Podes ficar sossegado respondeu Titânia que não trocarei o garoto nem por todo o teu reino.
  E foi-se embora, deixando o marido muito zangado.
  — Está bem, seja como queiras disse Oberon. Mas, antes do amanhecer, eu me vingarei dessa ofensa.
  Mandou chamar Puck, seu favorito e conselheiro par­ticular.
  Punck, também chamado Robin, o Brincalhão, era um espírito cheio de malícia, que costumava pregar peças sem conta à gente das aldeias vizinhas. Entrava às vezes nas queijarias e azedava o leite; outras, mergulhava sua leve e alada forma nas batedeiras, e enquanto se revolvia lá dentro, a leiteira não con­seguia transformar o creme em manteiga. Tampouco os jovens camponeses obtinham melhor tratamento; se Puck resolvia fa­zer suas travessuras com as fermentadeiras, não havia dúvida de que a cerveja ficaria estragada. Quando um grupo de velhas vizinhas se reunia para beber algumas cervejas em paz, ele mergulhava nas canecas, metamorfoseado em caranguejo co­zido, e quando uma delas se dispunha a tomar um gole, ele saltava-lhe sobre os lábios e entornava-lhe a bebida pelo queixo abaixo. Depois, quando a mesma velha senhora se preparava para sentar-se, a fim de contar às amigas alguma estória triste e melancólica, Puck puxava debaixo dela o banquinho de três pernas fazendo-a ir ao chão, enquanto as outras velhas mexeriqueiras rolavam de rir e juravam não se lembrar de ocasiões mais divertidas.
  — Puck, vem cá disse Oberon ao alegre e noctívago geniozinho. Traze-me aquela flor que as moças chamam de “amor-perfeito”. Quando se põe um pouco do filtro dessa flor­zinha vermelha sobre as pálpebras de pessoas adormecidas, elas, ao despertarem, se apaixonam pela primeira coisa que veem. Vou colocar algumas gotas do filtro nas pálpebras da minha Titânia, quando ela estiver dormindo, e ela, ao acordar, se apai­xonará pelo primeiro ser em que puser os olhos, seja um leão, um urso ou um macaco intrometido; antes de retirar o encan­to de seus olhos o que poderei fazer com outro sortilégio que conheço ela me entregará o garoto.
  Puck, que gostava imensamente de travessuras, ficou en­tusiasmado com a ideia do seu senhor e correu em busca da flor. Enquanto esperava a volta do geniozinho, Oberon viu De­métrio e Helena entrarem na floresta. Ouviu que o rapaz cen­surava a moça por havê-lo seguido, e depois de muitas palavras ásperas, da parte dele, e das delicadas explicações de Helena, lembrando-o de seu antigo amor e das declarações que lhe fizera, viu que ele a deixava, como dissera, à mercê das feras selvagens, e que ela corria em seu encalço o mais rápido que podia.
  O rei das fadas, que apreciava os amantes fiéis, sentiu grande compaixão da moça, e como Lisandro dissera que cos­tumavam passear na agradável floresta, ao luar, era possível que Oberon tivesse visto Helena nos tempos felizes em que De­métrio a amava. De qualquer forma, quando Puck chegou com a florzinha vermelha, o rei das fadas lhe disse:
  — Separa uma parte da flor. Está aqui uma bela jovem ateniense desprezada pelo rapaz a quem ama. Se o encontrares adormecido, deposita sobre suas pálpebras um pouco do filtro amoroso, mas faze-o num momento em que ela se encontre por perto, para que, ao despertar, ele a veja em primeiro lugar. Reconhecerás o rapaz pelo traje à moda de Atenas.
  Puck prometeu agir com muita habilidade, e Oberon, sem que Titânia o visse, dirigiu-se ao caramanchão da rainha das fadas onde ela se preparava para repousar. O caramanchão fica­va numa encosta, onde cresciam tomilhos, primaveras e violetas, sob um dossel de madressilvas, e também rosas silvestres e almiscaradas; ali, Titânia costumava dormir uma parte da noite. A sua colcha era uma pele de serpente, que, embora diminuta, bastava para envolver uma fada.
Oberon encontrou-a determinando às fadas o que deviam fazer enquanto ela dormia.
  — Algumas dizia Sua Majestade matarão os vermes nos botões de rosa, outras caçarão morcegos, para de suas asas fabricarmos os casaquinhos de meus pequenos duendes, outras manterão longe de mim a coruja barulhenta, que pia durante toda a noite. Mas, vamos, cantem primeiro, para me fazer dormir.
  As fadas puseram-se a cantar:
Para longe, ouriços-caixeiros!
Oh! afastem-se serpentes rajadas!
Lagartixas e vermes rasteiros,
Deixem quieta a Rainha das Fadas.
Rouxinol tua doce melodia
Seja para ela acalanto,
Que perto dela não cheguem
Desgraça e maléfico encanto.
Nana, nina, nana
Nana, nina, nana
Boa noite, boa noite
Até que surja o dia!
  Tendo a rainha adormecido depois dessa linda balada, as fadas saíram para cumprir as diversas tarefas que ela lhes havia designado. Oberon aproximou-se então de sua esposa e, caute­losamente, verteu em suas pálpebras algumas gotas do filtro mágico, dizendo:
“O que vires ao despertar,
Sempre haverás de amar.”
  Voltemos, porém, a Hérmia, que naquela noite fugia da casa paterna, a fim de evitar a morte a que estava condenada, pela recusa em casar-se com Demétrio.
  Quando a moça entrou na floresta, encontrou o amado Lisandro, que a esperava para conduzi-la à casa de sua tia. Antes de terem atravessado metade do bosque, porém, Hérmia estava tão fatigada que Lisandro, muito solícito para com a amada que provara seu amor com risco da própria vida persuadiu-a a repousar até o amanhecer, no macio tapete da relva. Deitou-se ele também, a alguma distância, e em breve adormeceram. Ali foram encontrados pelo geniozinho Puck, que, vendo um belo rapaz adormecido, trajado à moda de Ate­nas, e uma bela jovem que dormia perto dele, pensou tratar-se da jovem ateniense e de seu infiel amado, a quem Oberon lhe ordenara que procurasse. Conjeturou, naturalmente, que como os dois estavam sozinhos, ela seria o primeiro ser avistado por ele, quando acordasse. Assim, sem perda de tempo, colocou so­bre as pálpebras do rapaz um pouco do filtro da florzinha pur­púrea. Aconteceu, porém, que Helena veio a passar por ali, e em vez de Hérmia, foi nela que primeiro pousaram os olhos de Lisandro, ao despertar. E, fato estranho, tão poderoso era o filtro mágico, que o seu amor por Hérmia desapareceu total­mente, e ele se apaixonou por Helena.
  Se ele houvesse visto Hérmia primeiro, o engano de Puck não teria tido importância, pois quanto mais a amasse, melhor; triste sorte foi, porém, para Lisandro, ser forçado a esquecer sua fiel Hérmia, por um sortilégio de amor, e correr atrás de outra moça, deixando a verdadeira amada adormecida, à noite, sozinha num bosque.
  Assim se deu a desgraça: Helena, conforme se sabe, es­forçava-se por alcançar Demétrio, que a abandonara com tanta rudeza. Não pudera, porém, segui-lo de perto por muito tempo, pois os homens sempre correm mais que as mulheres. Em bre­ve, perdera Demétrio de vista. Caminhando triste e sozinha, che­gara ao lugar onde Lisandro dormia.
  — Ah! exclamara. Eis Lisandro, deitado no chão! Estará morto ou apenas dormindo?
  Aproximara-se e, tocando-o de leve, dissera:
  — Lisandro, se estás vivo, desperta.
  Então o moço abriu os olhos (o filtro começando a pro­duzir efeito) e pôs-se a falar à donzela em termos que expres­savam amor e admiração. Dissera ser ela superior a Hérmia, tal como a pomba supera o corvo em beleza; que por seu amor seria capaz de lançar-se ao fogo; e muitas outras juras apai­xonadas.
  Helena, sabendo que Lisandro amava sua amiga Hérmia e se comprometera solenemente a desposá-la, encoleriza-se ou­vindo-o falar daquela maneira, pois pensava que estivesse zom­bando dela.
  — Oh! — exclamou. Por que nasci para ser escarneci­da e desdenhada por todos? Já não basta, jovem, que eu não mais receba um terno olhar, uma doce palavra de Demétrio? Ainda finges fazer-me a corte desta forma desdenhosa! Oh! Li­sandro, eu te julgava mais generoso.
  Havendo assim expressado a sua cólera, Helena afastou-se, e Lisandro seguiu-a, inteiramente esquecido de sua amada Hérmia, que ainda dormia.
  Ao despertar, Hérmia sentiu medo, por ver-se sozinha, e pôs-se a andar pela floresta, sem saber o que fora feito de Li­sandro nem onde devia procurá-lo. Enquanto isso, Demétrio, não conseguindo encontrar Helena e seu rival Lisandro, e sen­tindo-se fatigado pela busca infrutífera, foi visto por Oberon quando se deitava e adormecia profundamente. O rei sabia, por algumas perguntas que fizera a Puck, que o geniozinho apli­cara a poção encantada nos olhos da pessoa errada; agora, en­contrando a pessoa certa, tocou-lhe as pálpebras com o filtro amoroso. Demétrio acordou imediatamente, e a primeira pessoa que viu foi Helena. Exatamente como Lisandro agira antes, começou a fazer-lhe declarações de amor. E foi então que Li­sandro, seguido por Hérmia (pois, em virtude do desastrado engano de Puck, agora era a vez de Hérmia correr atrás de seu amado), apareceu. Os dois jovens puseram-se, simultaneamente, a fazer a corte a Helena, ambos sob a influência do mesmo e poderoso encanto.
  Helena, atônita, pensou que Demétrio, Lisandro e sua ex­-amiga tinham combinado zombar dela.
  Hérmia estava tão surpresa quanto Helena, pois não com­preendia por que Lisandro e Demétrio, que antes a amavam, estavam agora ambos apaixonados por Helena. Para ela, aquilo não tinha graça nenhuma.
  As duas moças, outrora as melhores amigas, iniciaram violenta discussão.
  — Como és má, Hérmia! dizia Helena. Mandaste Lisandro zombar de mim, fazendo-me elogios zombeteiros; e teu outro pretendente, Demétrio, que antes me repelia, agora me chama de deusa, ninfa, mulher preciosa e celestial. Ele não falaria assim a quem detesta, se não o houvesses impelido a troçar de mim. Esqueceste a nossa antiga amizade, a nossa amizade dos tempos de escola? Quantas vezes não entoamos juntas, sentadas na mesma almofada, uma mesma canção, bor­dando com nossas agulhas flores iguais, com o mesmo desenho, tal como crescemos juntas, como duas cerejas quase unidas no mesmo talo? Hérmia, não devias fazer isso. Não é digno de uma moça como tu juntar-se a homens para zombar de tua pobre amiga!
  — Tuas palavras exaltadas me espantam respondeu Hérmia. Parece-me mais que és tu quem me desdenhas, e não eu a ti.
  — Sim, continua tornou Helena. Finges um ar sério, mas zombas quando volto as costas; piscas os olhos para um e para o outro e continuas com as zombarias, mas se tivesses compaixão, graça e educação, não me tratarias assim.
  Enquanto Helena e Hérmia trocavam essas palavras ás­peras, Demétrio e Lisandro as deixaram, para disputar na floresta o amor de Helena.
  As duas moças, percebendo que os jovens não estavam mais ali, recomeçaram a vaguear pela floresta, cada qual em busca de seu amado.
  Tão logo saíram, o rei das fadas, que estivera ouvindo a discussão, ao lado do pequeno Puck, perguntou-lhe:
  — Foi por distração, ou fizeste de propósito?
  — Acredita, rei das sombras, que foi um engano. Não me disseste que identificasse o homem por seu traje ateniense? Seja como for, não lamento o que aconteceu, pois acho essa briga muito divertida.
  — Viste tornou Oberon que Demétrio e Lisandro saíram em busca de um local apropriado para lutar. Ordeno-te que estendas sobre as trevas da noite um espesso nevoeiro, e faças com que os dois apaixonados adversários se percam no escuro, de modo que não consigam encontrar-se. Imita as suas vozes, provoca-os com motejos cruéis a te acompanharem, fa­zendo com que cada qual pense que é o rival que fala. Continua a provocá-los, até que se fatiguem e não possam mais dar um passo. Quando caírem adormecidos, derrama sobre as pálpebras de Lisandro o filtro desta outra flor, pois ao despertar ele es­quecerá seu novo amor por Helena e voltará à antiga paixão por Hérmia; então as duas jovens serão igualmente felizes, cada uma com o homem a quem ama. E pensarão que tudo não passou de um sonho desagradável. Vamos, depressa, Puck, enquanto vou ver que doce amor minha Titânia encontrou.
  Titânia dormia ainda e Oberon, vendo perto dela um cam­ponês que se perdera na floresta e também adormecera, disse:
  — Este sujeito será o fiel amor de Titânia.
  Assim dizendo, enfiou na cabeça do homem uma cabeça de burro, que se ajustou tão bem ao camponês como se fosse natural. Embora o rei das fadas houvesse colocado a cabeça com muita cautela, o homem despertou e, sem saber o que Oberon lhe fizera, dirigiu-se ao caramanchão onde dormia a rainha das fadas.
  — Oh! Que anjo é esse que vejo! exclamou Titânia, abrindo os olhos; o encanto da pequena flor vermelha começava a produzir efeito. Serás tão inteligente quanto és belo?
  — Sim, senhora disse o campônio. Minha inteligên­cia é bastante para encontrar a saída da floresta, e sou sufi­cientemente esperto para me arranjar sozinho.
  — Não queiras sair da floresta tornou Titânia, a apai­xonada rainha. Sou um espírito nada vulgar e te amo. Vem comigo e dar-te-ei fadas para te servirem.
Chamou quatro de suas fadas: Flor de Ervilha, Teia de Aranha, Falena e Semente de Mostarda.
  — Servi esse amável senhor ordenou a rainha. Sal­tai durante seus passeios, fazei piruetas diante dele, alimentai-o com uvas e damascos, e roubai para ele os favos de mel das abelhas.
  — Vem, senta-te junto a mim disse ao homem. Deixa-me acariciar tuas amáveis faces peludas, meu belo asno, deixa-me beijar tuas belas e grandes orelhas, alegria de minha vida!
  — Onde está Flor de Ervilha? perguntou o aldeão, sem dar grande atenção à corte que lhe fazia a rainha das fadas, porém muito orgulhoso de suas novas servas.
  — Aqui, senhor disse a pequena Flor de Ervilha.
  — Coça a minha cabeça. Onde está Teia de Aranha?
  — Aqui, senhor respondeu Teia de Aranha.
  — Boa Teia de Aranha disse o campônio mata aquela abelha pousada sobre o cardo e traze-me o favo de mel. Não te apresses muito e tem cuidado para não quebrar o favo. Não desejaria que ficasses inundada de mel. Onde está Semente de Mostarda?
  — Aqui, senhor, que desejas?
  — Nada disse o aldeão. Boa Semente de Mostarda, ajuda Flor de Ervilha a me coçar. Preciso ir ao barbeiro. Pa­rece-me que estou com a barba muito grande.
  Meu doce amor exclamou a rainha —, que desejas para comer? Tenho uma fada aventureira, que irá à despensa do esquilo e trará algumas nozes fresquinhas.
  Preferia um punhado de ervilhas secas disse o ho­mem, que com a cabeça de burro adquirira também um ape­tite de asno. Mas, rogo-te, não deixes que a tua gente me perturbe, pois quero dormir.
  — Dorme então disse a rainha. Vou embalar-te em meus braços. Oh! Quanto te amo! Sou louca por ti.
  Quando o rei das fadas viu o campônio dormindo nos bra­ços da sua rainha, adiantou-se, apresentou-se a ela e censurou-a por estar concedendo seus favores a um asno. Isso Titânia não poderia negar, pois o aldeão dormia em seus braços, com a ca­beça de burro coroada de flores.
  Tendo-a atormentado durante algum tempo, o rei pediu no­vamente o garoto que ela adotara, e Titânia, envergonhada por ter sido encontrada pelo marido em companhia do novo favo­rito, não ousou recusar.
  Havendo obtido o rapazinho que há tanto tempo desejava para pajem, Oberon penalizou-se por ver Titânia na triste si­tuação em que a colocara, para divertir-se, com seu ardil. Der­ramou um pouco do filtro de outra flor nos olhos da rainha, e ela recobrando de imediato a razão, admirou-se da sua paixão súbita, dizendo que agora a simples vista de tão estranho mons­tro a enchia de horror.
  Oberou tirou também a cabeça de burro que pusera no aldeão, e deixou-o continuar no sono, com sua própria cabeça de labrego.
  O rei das fadas e Titânia estavam agora perfeitamente reconciliados, e ele lhe contou a história da disputa entre os amantes, e a briga da meia-noite. Ela concordou em acompa­nhá-lo, para verem o fim daquelas aventuras.
  Encontraram os dois casais à pequena distância um do outro, dormindo sobre um relvado; Puck, para reparar seu en­gano anterior, conseguira, com a maior presteza, trazer os qua­tro de volta ao mesmo lugar, sem que nenhum deles soubesse. E tivera o cuidado de remover o sortilégio dos olhos de Lisan­dro, com o antídoto que Oberon lhe dera.
  Hérmia foi a primeira a despertar e, encontrando seu que­rido Lisandro, que julgara perdido, tão perto dela, olhava-o, admirando-se de sua estranha inconstância. Ao abrir os olhos, Lisandro viu a sua querida Hérmia e recuperou a razão, anu­viada pelo sortilégio, e também o seu antigo amor. Começaram então a comentar as aventuras da noite, duvidando que tudo houvesse realmente acontecido; julgavam-se vítimas do mesmo sonho absurdo.
  Helena e Demétrio também haviam despertado e ela, a irritação acalmada por um sono suave, ouviu contente as juras de amor que Demétrio continuava a fazer-lhe e que, para sua alegre surpresa, eram sinceras.
  As belas noctívagas, não mais rivais, de novo amigas sin­ceras, esquecidas as palavras ásperas que haviam trocado, fala­ram calmamente sobre o que convinha fazer naquela situação. Concordaram sem demora em que Demétrio, tendo desistido de suas pretensões ao amor de Hérmia, procuraria fazer com que o pai dela revogasse a cruel sentença de morte. O jovem se dispunha a voltar a Atenas para realizar esse generoso desígnio, quando tiveram a surpresa de ver Egeu, que vinha em busca da filha fugitiva.
  Compreendendo que Demétrio não pretendia casar com sua filha, o velho não mais se opôs ao casamento com Lisandro, mas pediu que fosse realizado dentro de quatro dias, a contar daquele, justamente o dia em que, pela sentença imposta, Hérmia devia perder a vida. Helena, alegremente, combinou desposar seu amado e agora fiel Demétrio no mesmo dia.
  O rei e a rainha das fadas, invisíveis espectadores da re­conciliação, vendo o feliz desfecho da estória dos amantes, gra­ças aos bons ofícios de Oberon, resolveram celebrar as próxi­mas núpcias com festas e divertimentos em todo o seu reino encantado.
  E agora, se alguém se sentiu ofendido com esta história das fadas e das suas travessuras, julgando-a incrível e estranha, basta apenas pensar que esteve dormindo, e que todas essas aventuras não passaram de visões aparecidas em sonhos. Es­pero, porém, que nenhum dos leitores seja intolerante a ponto de zangar-se com um belo e inofensivo Sonho de Uma Noite dc Verão.
 
Shakespeare, Charles e Mary Lamb
Enviado por Germino da Terra em 27/09/2012
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras