retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


Rasgos de verdade, por Maria Lucia de Barros Camargo no Prosa & Verso, d’O Globo, 2 de junho de 2012.
Ana Cristina Cesar completaria 60 anos neste dia 2 de junho, e sua poesia prolife­ra na voz de outros poetas, nas antolo­gias de poesia brasileira contemporâ­nea, nas traduções, no teatro e no cinema, nas reedições de seus livros. A fortuna crítica, em franca expan­são, com estudos e livros a ela de­dicados, além dos artigos publica­dos em revistas e jornais. Tudo isso reforça um consenso: a poesia de Ana Cristina Cesar é uma das mais fortes e intrigantes dicções poéticas brasileiras das últimas décadas.
  Talvez não possamos ainda ava­liar com clareza todos os fatores que atuam nessa grande repercussão: como medir os efeitos da morte trá­gica em 1983, associada ao cuidado editorial da publicação póstuma (com destaque para a onipresente fotobiografia), na construção dessa personagem com ares de mito, a lin­da, jovem e loira poeta-suicida Ana Cristina, que muitas vezes é lida a partir de sinais autobiográficos ou da sensual feminilidade que sua obra exala? Mas os leitores de Ana C. não se deixam seduzir apenas pela tragédia pessoal, e sim pela palavra ambígua, pelo ar de intimidade mis­teriosa, pelos segredos apenas apa­rentemente confessados, ou pelas confissões plenas de dissimulação.
  Quando lemos Ana Cristina Cesar estamos em um campo textual que se tece nos limites entre a confissão da intimidade e a literatura, num jo­go de múltiplos ocultamentos. Esta escrita em tom confessional, de quem parece estar revelando recôn­ditos segredos, não deixou de ser destacada pela crítica. Caio Fernando Abreu, ao apresentar a poeta na contracapa da 1ª edição de “A teus teus pés”, de 1982, já preparava o leitor para o que se pode ver ao olhar pelo buraco dessa fechadura: uma intimidade, porém literária, ficcional.
 
Poética paradoxal, que mata a autoria e exacerba o eu
 
  A caracterização desse espaço literário como particular como um espaço ficcional, estetizado, é encontrada no próprio texto de Ana Cristina: “Em vez dos rasgos de Verdade em­barcar no olhar estetizante”, diz, em “Luvas de pelica”, a voz de um eu que deixa de lado a verdade com “V” maiúsculo e reitera a obliquidade desse olhar: “Opto pelo olhar este­tizante, com epígrafe de mulher mo­derna desconhecida. [...] Chega de saudade, segredo, impromptu, che­ga de presente deslizando, chega de passado em video-tape [...]. Traba­lhei o dia inteiro e agora me retiro, agora repouso minhas cartas e tra­duções de muitas origens, me espe­ra uma esfera mais real que a sonha­da, mais direta, dardos e raios à mi­nha volta, Adeus! Lembra minhas palavras uma a uma. Eu poderei vol­tar. Te amo, e parto, eu incorpóreo, triunfante, morto”. Em uma carta da­tada de 27 de agosto de 1980, e ainda inédita, ela escreve a seu pai, e fala de “Luvas de pelica”: “estou fazendo um livrinho que por enquanto tem o nome absurdo de ‘Edição Autoriza­da do Caderno de Viagem de Querida’. Vai ser outro problema familiar, bem impublicável mas todo PROSA mesmo, ou poesia disfarçada de prosa, ou diário com ritmo obsess­ivo na cabeça.” Como se vê, em vez e o texto ser afetado pela vida, ou representar a vida, é a vida que se prevê afetada pelo texto, e o olhar estetizante não apenas se confirma como sugere que todos os textos de­vam ser lidos obliquamente.
  Leio na opção pelo olhar esteti­zante uma síntese da paradoxal poé­tica de Ana C., que transfigura a no­ção de real e afirma, em tom irônico, morte do eu, ao mesmo tempo em que o eu parece se exacerbar. As pa­lavras “minhas palavras uma a uma” são produto de um “cora­ção cleptomaníaco”, feitas das muitas vozes migrantes, das “traduções e muitas origens”, de um excesso de referências que, desreferenciali­zadas, separam a voz que diz “eu” do nome na capa do livro. Por outro lado, se o jogo de negação da autoria é tão marcado pela presença de um eu, podemos inverter a jogada e ler aí também a opção por rasgos de verdade no olhar estetizante.
  Perseguindo algumas dessas vo­zes na poesia de Ana Cristina, en­contramos, por exemplo, Bandeira (talvez a mais frequente), Mário de Andrade, Jorge de Lima, Baudelaire, Mallarmé, Drummond, que dividem o espaço com Vinícius-Tom-João, Caetano, Roberto Carlos, Janete Clair, Charlie’s Angels, e muitos ou­tros. Nos poemas, que se constroem de “restos” distintos entre si e apro­priados com diversos graus de dis­farce, constata-se que a citação não constitui nem etapa de aprendiza­gem por imitação, nem influência mal resolvida, nem a intertextualida­de que caracteriza toda a literatura, e nem, muito menos, plágio. Sabe­mos muito bem que boa literatura se faz de literatura e que sem a gaveta de guardados, ou sem a tradição, não há talento individual. Ana Cris­tina exacerba esse procedimento e faz dele o instrumento de sua cons­trução poética, a sua máscara, os seus disfarces, a sua verdade.
  As escolhas de Ana C. sugerem ainda um projeto estético e crítico. Como projeto estético trata-se de assumir os fantasmas modernos, a tra­dição ao mesmo tempo desejável e recusável: “Abomino Baudelaire querido, mas procuro na vitrina um modelo brutal”. Apenas com e con­tra essa tradição é possível escrever para, ao mesmo tempo, homenagear e dessacralizar, ato de pura profana­ção, projeto estético desprovido do mito da originalidade, da angústia da influência, que pensa a poesia como reelaboração, ou, para usar uma expressão de Ana C. (que também está em Poe), “literatura é reinvenção”. Como projeto crítico, ao mesmo tempo em que se alinha aos novos poetas de sua geração, exerce a crítica a essa mesma geração com seus simulacros de diários íntimos e de correspondência que recusam o es­pontaneísmo e a banalidade. Em uma anotação manuscrita numa fo­lha solta nos arquivos, uma inacaba­da listagem de “técnicas de distan­ciamento” dá uma receita precisa: “contra a angústia da banalidade, a leitura e a reescritura”. Em outros termos, pode-se dizer que Ana C., a partir da eleição do que ou de quem reescreve, rearma a “tradição válida” para a poesia brasileira e vai se recolocar, inclusive, diante do paideuma fixado pelo experimentalismo concretista, ao mesmo tempo em que se afasta do estereótipo da “poesia marginal”, do poeta distante da biblioteca: Ana Cristina incorpora fortemente a biblioteca, a leitura produtiva, mas não só. Remorsos de vampiro? Puro fingimento.
  Talvez por tudo isso a poesia de Ana Cristina Cesar tenha-se tornado um ícone da poesia contemporânea, extrapolando a década que a viu publicar seus primeiros livros, para chegar com toda a força de sua singularidade ao dia em que completaria 60 anos, sob o “signo de gêmeos, disposição ambígua”. Parabéns a você, Ana C..

Maria Lucia de Barros Camargo é professora de Teoria Literária da UFSC e autora de Atrás dos olhos pardos: uma leitura da poesia de Ana Cristina Cesar (Chapecó-SC: Argos, 2003)
 
Maria Lucia de Barros Camargo
Enviado por Germino da Terra em 04/06/2012
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