retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


O sentido da poesia (entrevista de Ferreira Gullar a André Bernardo na revista Metáfora ano 1 — no 7)

Aos 81 anos, Ferreira Gullar comenta os prêmios Jabuti e Moacyr Scliar, fala de sua poesia, da popularidade de sua obra entre os jovens, da busca constante pela felicidade possível. A quem anseia saber se ele escreverá mais versos, responde: o futuro é incerto
Reconhecido como um dos maiores poetas vi­vos do Brasil, o personagem dessa entrevista nasceu José Ribamar Ferreira. Mas, logo tratou de adotar um nome artístico quando soube que os ver­sos pouco inspirados de um tal de José Ribamar Pereira estavam sendo atribuídos a ele. Desde garo­to, estava convencido do potencial de sua obra. E foi por essa razão que, a partir do sobrenome da mãe, Alzira Ribeiro Goulart, inventou para si um novo nome, Ferreira Gullar.
Ao longo das décadas, a poesia do autor de A luta corporal, Dentro da noite veloz e Poema sujo se confirmou tão inconfundível quanto seu nome. Hoje, aos 81, Ferreira Gullar tem sua obra reco­nhecida dentro e fora do país. O recém-conquistado Prêmio Moacyr Scliar de literatura é o terceiro concedido ao seu mais recente livro, Em alguma parte alguma que levou as categorias Poesia e Livro do Ano no Jabuti de 2011.
A seguir, em entrevista à Metáfora, Ferreira Gullar fala do merecido reconhecimento de seu tra­balho, analisa a relançamento de sua obra pela José Olympio e admite que viver de poesia não é tarefa das mais simples. Costumo dizer, de brincadeira, que poesia não vale nada no mercado porque vende pouco. Mas, é importante porque transforma a dor em alegria e o sofrimento em beleza, afirma.
Em fevereiro, você foi escolhido, entre 152 candidatos, o vencedor do 1º Prêmio Moacyr Scliar de Literatura, antes, em 2011, também ganhou o Jabuti. Qual é a importância que você atribui a este tipo de premiação?
É sempre bom ganhar um prêmio literário. Não vou dizer que não é. Como é bom ganhar dinheiro em função do seu trabalho. Mas a coisa mais importante é o reconhecimento da qualidade do seu traba­lho. Não escrevo para mim. Escrevo para o outro. Na hora que escrevo, escrevo para satisfazer a mi­nha necessidade de expressão. Mas o sentido da arte é dialogar com o outro. Caso contrário, não teria sentido. O reconhecimento do outro é importante, sobretudo quando se trata de um júri categorizado. Mas, para falar a verdade, eu nem sabia que estava concorrendo a esse prêmio [o Moacyr Scliar]. Como sempre acontece, não sou eu quem me inscrevo nes­sas premiações. É a José Olympio que toma a inicia­tiva. De modo que posso garantir que foi uma dupla surpresa agradável.
Ao longo dos anos, sua poesia ganhou os mais diferentes adjetivos: engajada, transgressora, vanguardista. Como você definiria a poesia do Ferreira Gullar?
Essas qualificações correspondem a momentos da minha trajetória artística. A minha experiência como poeta começou de um determinado modo, mas, em função do que eu ia aprendendo e desco­brindo, foi mudando ao longo dos anos. Não posso definir a minha poesia com um adjetivo qualquer. Não quero dizer simplesmente que ela é isso ou aqui­lo. Na verdade, a minha poesia é algo que foi sendo inventada ao longo dos anos. Confesso a você que, das qualificações que você citou, não sei se o termo vanguarda se aplica ao meu trabalho. Se analisar­mos bem, vanguarda é uma atitude supostamente revolucionaria. Essa ideia veio do Manifesto Comu­nista de Marx, de 1848. Assim como os manifestos políticos, os manifestos vanguardistas também pro­metem coisas que não cumprem. É mais demagogia do que outra coisa. E eu nunca fui isso. Nunca fiz manifesto prometendo coisas que não realizei.
Em 1976, Vinícius de Moraes disse que você era o último grande poeta brasileiro. Você concorda com ele? Ou, em sua opinião, há outro último grande poeta brasileiro?
Sou a pessoa menos indicada para falar desse assunto... (risos). Quando alguém emite uma opi­nião dessa natureza, está querendo manifestar, na verdade, o seu entusiasmo pelo que leu, pela poe­sia da pessoa a que se refere. Isso não pode ser en­tendido ao pé da letra. Existem muitos poetas e, dependendo da perspectiva, você pode achar que esse é melhor do que aquele ou que aquele tem mais expressão do que esse e assim por diante. O próprio Drummond, quando falavam que ele era o maior poeta brasileiro, costumava responder: Vocês me­diram com que régua? Qual foi a medida que vocês usaram? (risos)
Este ano, a José Olympio pretende relançar sua obra completa, com novo projeto gráfico. Esse tipo de iniciativa ajuda a apresentar a obra do Ferreira Gullar a uma nova geração de leitores?
Ajuda, sim! Não tenho dúvida de que essa ideia da José Olympio é ótima e que vai ajudar muito na divulgação dos meus livros. Mas o que eu digo sem­pre é: o jovem já gosta da minha poesia. Grande par­te do leitor da minha poesia é gente jovem. Sei disso porque, quando ando na rua, encontro com eles. Às vezes, quando vou fazer uma palestra, boa parte do público que me assiste é de gente jovem. Não sei exa­tamente o porquê disso, mas acho que minha poesia diz algo aos jovens. Talvez seja porque, ao longo dos anos, a minha poesia atravessou várias fases. Alguns jovens podem se interessar mais pela minha poesia de caráter político. Outros, pelo período mais neo-concreto da minha poesia. E assim por diante.
O que você teria a dizer a um jovem que sonha em ganhar a vida como poeta?
Viver de poesia é difícil. Ganhei a minha como jornalista. Costumo dizer, de brincadeira, que poe­sia não vale nada no mercado. Poesia vende muito pouco. Mesmo poetas consagrados como Drum­mond, Bandeira e Pessoa não vendem tanto quanto romancistas como Jorge Amado. A poesia é impor­tante porque vai fundo nas questões. Muitas vezes, dá alegria ao leitor em um momento difícil em que ele se encontra desamparado. Mas não é leitura fácil. Poesia não é divertimento. Você pode ler um bom romance para se distrair. Mas ninguém vai ler poe­sia para se distrair. Até quem gosta de poesia, não lê poesia todos os dias. Por isso, a venda é reduzida. Se o sujeito pensa que vai viver de poesia, não vai.
Em 2010, você lançou Em alguma parte alguma. Até então, seu último livro era Muitas vozes, de 1999. Será que teremos que esperar mais 11 anos para ler um novo livro de poesia do Ferreira Gullar?
Ainda não sei se haverá um próximo livro. Veja bem: o último poema que eu escrevi foi em novem­bro de 2009. Desde então, não escrevi mais nada. Não sei se voltarei a escrever poesia. Espero que sim, mas não sei. Eu não governo a minha poesia. Não sei quando ela vai nascer. Não sou eu que determi­no o nascimento dela. Essa decisão não é voluntária, compreende? A poesia nasce de uma coisa a que eu chamo de espanto. É preciso que algo me espante, surpreenda ou atordoe para eu escrever poesia. Nes­te estado, e só neste estado de espanto, é que o poema consegue nascer. Escrever poesia não é como escre­ver crônica. Ah, hoje eu vou escrever uma crônica sobre o prédio que desabou no Centro do Rio! Vou lá, sento e escrevo. Escrever poema não é tão fácil. Escrevo um hoje. Daqui a um mês, escrevo outro. E assim vai. Se eu não estiver neste estado de espanto, nem adianta tentar porque não vai dar certo.
Você já disse que, no momento, prefere reler a ler. Que autores você tem relido ultimamente?
Sempre que posso, releio (Rainer Maria) Ri­lke. Gosto de reler poemas que já conheço, enten­de? Muitas vezes, esses poemas somem da minha memória e não me dou conta disso. Às vezes, é um Drummond. Outras vezes, um Pessoa. Mais adiante, um T.S. Eliot. Gosto de reler poetas que fa­zem parte da minha história. Esses poetas contri­buíram muito para a minha formação. Ninguém inventa literatura, não é verdade? Se a minha po­esia existe, é porque ela nasceu da leitura desses poetas. Ainda hoje, me lembro da primeira vez em que li o Rilke, Elegias de Duíno. Aquilo para mim foi uma revelação. De certo modo, eu achava que poesia era outra coisa. Mas, daquele dia em dian­te, ganhou outra dimensão. A mesma coisa acon­teceu quando li T.S. Eliot. Tudo isso me ajudou a entender o que é poesia. Você precisa saber o que é para tentar escrever. Você tem que saber onde fica o Piauí, se quiser chegar lá, entende? (risos)
Em sua opinião, o poeta já nasce poeta? Ou qualquer um de nós pode se arriscar a escrever poesia?
Há uma boa dose de técnica na poesia. Disso, não tenho dúvida. Mas, veja bem: técnica é necessária, mas não é suficiente. Não basta saber fazer. Se fosse assim, eu escreveria 10 poemas por dia, não concor­da? Saber fazer não resolve. É aí que entra o espanto. Se algo não me espanta, surpreende ou atordoa, não vou conseguir fazer poesia. Quando você escreve, tem diante de si uma página em branco. E, diante desta página em branco, tudo é possível. Outro dia, senti um forte cheiro de tangerina aqui em casa. Até tentei, mas não consegui escrever nada. No dia se­guinte, comecei a pesquisar sobre o assunto. Dali a alguns dias, eu estava a caminho da praia, quando me ocorreu o primeiro verso: Com raras exceções, os minerais não têm cheiro... O que isso tem a ver com tangerina? (risos) Assim que cheguei em casa, continuei a escrevê-lo. Escrever poesia é uma coisa meio mágica. É uma relação de acaso e necessidade. Fazer poesia é tornar o acaso necessário. E tornar o possível, realidade.
Dois dos temas mais recorrentes em sua obra são silêncio e morte. Do que você mais tem medo?
Se você me perguntar se eu tenho medo da mor­te, vou responder que não. Não quero morrer. Nem vivo pensando nisso. Aliás, não tenho motivos para isso. Aos 81 anos, me considero uma pessoa bastante saudável. Outro dia, fui fazer um check-up e a médi­ca ficou abismada: Mas o senhor não tem colesterol alto, pressão alta, nada disso? O que o senhor come? Respondi: não como! Ela começou a rir. É claro que eu como, mas como muito pouco. A Cláudia (Ahim­sa, poetisa gaúcha), minha companheira, já me ape­lidou de meia porção. Quando vou ao restaurante, só como a metade do prato... (risos) Mas, voltando à pergunta, não tenho medo da morte. Mas também não gosto de filosofar sobre ela porque viver é uma coisa meio sem explicação, sabe? Como é que você vai explicar para alguém a existência do cosmo? Se parar para pensar, você não passa de um grão de poeira perto da imensidão do universo. O que estou fazendo aqui? Não faço a menor ideia. Nem quero saber... (risos) Não acredito em Deus, mas enten­do quem acredita. Deus é a única resposta plausível para explicar a imensidão do universo.
Uma de suas frases mais famosas é Não quero ter razão, quero ser feliz. Você é uma pessoa feliz?
Um dia, marquei com a Claudia para irmos ao cinema. Ai, ela chegou e começamos a conversar. Lá pelas tantas, ela falou alguma coisa, discordei, ela retrucou e começou a discussão... Pouco depois, ela perdeu a paciência, apanhou a bolsa e foi embora, batendo a porta. Nessa, falei: Ué, agora estou cheio de razão e infeliz! Que sentido tem isso? Eu não quero ter razão. Eu quero ser feliz! (risos) Não existe feli­cidade permanente. No geral, eu me considero uma pessoa feliz. Tenho minha companheira, com quem me relaciono muito bem. Tenho filhos e netos, pes­soas que constituem a minha vida afetuosa. Tenho meus amigos, não são muitos, mas são legais. Sou considerado pela minha poesia. Sinal de que o meu trabalho deu certo.
Se você tivesse que escolher um único poema para ser lembrado daqui a 100 anos, qual seria?
Puxa, nunca parei para pensar nisso! (pausa) Gostaria de ser lembrado pelo poema que dá signi­ficado à vida de cada um dos meus leitores. Às ve­zes, um poema toca o coração de uma pessoa e não toca o de outra. Quero que o leitor se lembre de mim pela alegria que a minha poesia transmitiu a ele em um momento de sua vida. Poesia só tem sentido se transforma a dor em alegria e o sofrimento em bele­za. Outro dia, passeando pelo calçadão de Copaca­bana, eu me lembrei do meu filho Marcos (que mor­reu em 1992). Assim que cheguei em casa, escrevi: Os mortos veem a vida pelos olhos dos vivos. É do­ido, não é? Mas é consolador também. Sei que meu filho está vivo dentro de mim. Não quero transmitir o meu desespero a ninguém. Pelo contrário. Quero transformar o sofrimento em alegria.
Ferreira Gullar e André Bernardo
Enviado por Germino da Terra em 11/05/2012
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