retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


A visão interior, por José Castello (sobre o conto “O cego Estrelinho”, de Mia Couto, em “Estórias abensonhadas”) — prosa & verso d’O Globo, 24/3/12.

Uma amiga me envia dois ver­sos de Fernando Pessoa, que a salvaram durante uma noi­te de insônia. Dizem os ver­sos: “Porque eu sou do tamanho do que vejo/ e não do tamanho de minha altura”. A parte amputada do poema me atropela. Os versos me chegam inferno das coincidências no mo­mento em que leio as “Estórias aben­sonhadas”, de Mia Couto (Compa­nhia das Letras). Mais exatamente: no momento em que me delicio com “O cego Estrelinho”, uma das mais co­moventes narrativas do livro.
  Sempre acreditei que as coisas não nos chegam à toa. Sim, o acaso está aí a nos dar sustos; mas uma ló­gica secreta e talvez perdida para sempre o move. Fala Pessoa da importância da visão, ideia que de­veria diminuir os cegos. Mostra-nos Mia Couto que é exatamente o con­trário: a ausência da visão pode en­grandecê-los. Tudo depende do que fazemos com o que nos falta. Ao ta­manho da falta corresponde a cora­gem para inventar.
  O cego Estrelinho tem um guia, o jovem Gigito, que, enquanto o ampa­ra, lhe inventa um mundo inexistente. Narra para Estrelinho não o mundo que enxerga, mas o mundo que fan­tasia. A beleza desse mundo sustenta o cego: ela o empurra para frente e o faz andar. Já não sabe viver sem as palavras do guia, que não só embele­zam, mas reinventam sua existência.
  “A mão do guia era, afinal, o manus­crito da mentira”, narra Mia Couto. “Gigito Efraim estava como nunca es­teve S. Tomé: via para não crer”. Ao inventar outro mundo em substitui­ção ao real, o guia Gigito recria, no meu ato, a existência de Estrelinho. O cego aprende a ver o que não existe. São imagens tão fortes que, mesmo embrulhadas em palavras, o levam a acreditar que enxerga. “A ideação de­le era tal que mesmo o cego, por ve­zes, acreditava ver”. Poder devastador da mentira: rasgar os mantos surrados da realidade e expor, entre seus rasgões, delicados tesouros.
  O guia encoraja seu cego: “Desbengale-se”. Livrar-se da bengala, caminhar com as próprias pernas amparado só por uma bengala imaginária passa a ser a estratégia de Estrelinho para viver. Imitando Pessoa também ele escolhe o tamanho do que consegue ver. Se vê grande, mundo cresce. Viesse a duvidar das palavras de seu guia e a contentar-se com a escuridão, o mundo encolheria. Tudo depende do posto de observação. Se você observa as coisas sempre do mesmo lugar, nada chega a ver.
  A vida está sempre a desarrumar a fantasia. Um dia, o guia Gigito é con­vocado à guerra. Preocupado com o destino do cego Estrelinho, deixa a irmã lnfelizmina em seu lugar. O no­me da moça aponta sua excessiva fé nas coisas. Ela acredita que as coi­sas têm o tamanho da sua altura. Aposta na objetividade como me­dida do existir. Leva a realidade a sério de­mais: só relata a Estre­linho o que realmente vê. Na dúvida, em vez de inventar, silencia.
Derrubado pelos gol­pes do real, Estrelinho entristece. Mais que isso: passa a sofrer de uma segunda cegueira. “Agora, só agora, sou cego que não vê”. Ainda tenta reinventar a presen­ça distante de Gigito. Luta para acre­ditar mais nas palavras que sonha do que nas palavras que ouve. A estra­tégia não funciona: imerso na repeti­ção, o cego já não tem forças para crer em suas próprias fantasias. Ain­da precisa de uma voz (de Gigito, o sonhador) que as avalize. E não há voz alguma.
  “Desanimado, Estreli­nho ficou presenciando inimagens”. Descobre-se, por exemplo, em uma “desluada noite”. Sem palavras, o mundo se desfaz. O escuro co­meça a oprimi-lo. “A so­lidão lhe doía”. Sem a voz do outro, suas fan­tasias já não prestam, desmancha-se. No lugar das imagens, agora tem só buracos negros.
  Infelizmina não sabe inventar. O senso de realidade a adoece. Em consequência, o mundo do cego Estreli­nho se desilumina. Sua luz se apaga sua estrela, o rapaz Gigito, não tem substituto. Agora só pode contar con­sigo mesmo. A escuridão só se atenua com uma paixão inesperada por Infelizmina. Sabedoria cega da carne.
  Habita essa divisão, entre uma fan­tasia morta e uma paixão cega, quan­do lhe chega a notícia de que o bom Gigito morreu na frente de batalha. Agora não é só o escuro que o opri­me: mesmo fiel aos fatos, também ln­felizmina, ainda mais triste, emudece. E sem palavras, como se pode viver? Sem palavras, como é possível dese­nhar o que na inocência da ceguei­ra acreditamos ver?
  Subitamente, as posições se inver­tem: o cego Estrelinho se torna, ago­ra, o guia de lnfelizmina. Como faz is­so? Não com a visão que não tem, mas com o sonho que descobre den­tro de si. “Venha, eu vou-lhe mostrar o caminho!”, ele a incita. Só porque, mesmo cego, volta a acreditar em suas invenções, ele passa a ter, outra vez, o tamanho do que vê. Do que po­de ver, mesmo sem ver. Do que só ele vê e mais ninguém.
  Que fazia Gigito, senão mentir? Tra­çava figuras onde não havia, a rigor, figura alguma. Delimitava molduras onde tudo não passava de um borrão. Na verdade, o rapaz olhava para den­tro, e não para fora. E é esse olhar que se contorce que o cego Estreli­nho, mais tarde, transmitirá a sua amada. A tristeza não é outra coisa senão o excesso de realidade. A fé ex­cessiva no real asfixia.
  Se você (Pessoa) só crê no tamanho registrado pela fita métrica, a vida se empobrece. Se você limita seu olhar aos recortes costumeiros, torna-se in­feliz. Estrelinho só passa a ver quando entende que, mesmo sem a voz de Gi­gito, ele é capaz de fantasiar. Mais ain­da: quando descobre que, também ele, e ainda que cego, pode transmitir sua (des)visão. Ainda que se trate de uma visão líquida, algo que desfaz a realidade para alargá-la.
  Ao fechar o livro de Mia Couto, só consigo pensar na literatura. Ela não nos confronta apenas com as pala­vras, mas com as fantasias (relatos murmurados) que carregamos dentro de nós. Volta-me, então, um aforismo do francês Joseph Joubert, que sem­pre me fascinou: “Fecha os olhos e ve­rás”. Já ali, em Joubert, a voz do poeta se esboça. Já ali Pessoa, muito antes de si, se ergue. A origem da poesia é um segredo distante. Mia Couto o agarra com a coragem de um cego.
 
José Castello
Enviado por Germino da Terra em 06/04/2012
Alterado em 06/04/2012
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