retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


a varanda do frangipani (10º capítulo), de Mia Couto

quinto dia nos Viventes
Izidine vagueou todo esse dia com a imagem da feiticeira ratazanando-lhe o juízo. Lhe impressionara a extrema magreza dela. Os outros diziam que Nãozinha se alimentava apenas de sal. Trazia água do mar e despejava-a em cavidades das rochas.
  Deixava a água secar e depois lambia o fundo dessas cavidades.
  A manhã estava húmida, tinha chovido durante toda a noite.
  As nuvens se abriram enquanto ele escutara a feiticeira.
Simples coincidência? O polícia deambulou pelo pátio até ser atraído pelos gritos dos velhos. Aproximou-se. Os asilados rodopiavam à volta da árvore do frangipani. Caetano Navaia se trepadeirava pelo tronco e colhia pequenos bichos felpudos ue, depois, entregava aos outros velhos. Naquela altura do ano, sempre que chove os troncos cobrem-se de lagartas, as matumanas. Os velhos comiam essas lagartas. Até Izidine conhecia aquele hábito. A enfermeira se juntou a ele para assistir ao espectáculo. O polícia mostrava, com gosto, que também conhecia aquele costume.
  — Não são as mesmas lagartas, corrigiu ela.
  — Se não são as mesmas, são parecidas.
  — Isso pensa você. Pergunte-lhes o que eles sonham depois de comerem estas matumanas.
  — Diga-me você.
  — Eles vão-lhe dizer que as borboletas lhes saem pelos olhos enquanto dormem.
  Diziam mais: que os insectos cresciam dentro deles, constituídos em borboletas carnudas, feitas da carne deles. Enquanto as borboletas lhes escapavam pelos olhos, eles iam ficando magros, vazios, até lhes restarem só os ossos.
  Rindo-se, concluíam: Não somos nós que comemos os bichos. São eles que nos comem a nós. Deliravam à custa dos sucos leitosos das matumanas.
  — Espero que haja algum que não coma matumanas. Senão você não vai ter ninguém para hoje lhe dar um depoimento.
  — Quem sabe até ficam com a língua mais solta. Nunca ouviu falar do soro da verdade?
  Marta Gimo sorriu e se desculpou. Tinha que ir aos seus assuntos. O polícia acenou um adeus e chegou-se à árvore.
  Entendia juntar-se aos velhos na apanha das lagartas. Quem sabe, assim, lucrava mais confiança neles? Mas quando se preparava para apanhar a primeira matumana uma voz lhe ordenou que parasse.
  — Você não pode chegar perto...
  — Porquê?
  — Porque não pode...
  Obedeceu, contrariado. Os velhos não o aceitavam. O polícia não conseguia nem chegar perto. Como podia esperar que eles se abrissem e lhe contassem a verdade? A constatação, ainda que óbvia. o deixou abatido. E arrecadou-se no quarto, interdito ao mundo. Até que Nhonhoso veio ter com ele, ao fim da tarde.
Bateu à porta e, antes mesmo que houvesse autorização, entrou e se deu assento.
  — Nós não lhe confiamos, inspector.
  — Mas porquê.? Só por eu ser polícia?
  Ele encolheu os ombros. E proferiu frases vagas, tudo dito a meios-tons. Que se passavam coisas no asilo, que o país se tinha tornado num lugar perigoso para quem procura verdades. E depois, existiam outras Razões que eles, os mais velhos, já haviam pesado.
  — Será que, para vocês, eu não sou um homem bom?
  — Você não é bom nem mau. Você simplesmente inexiste.
  — Como inexisto?
  — Você fez circuncisão?
  O inspector desconseguiu responder. Estava atónito. Então era aquilo? Ou seria simples pretexto, mais uma maneira de lhe atirarem poeira? Fosse o que fosse ele deveria saber contornar aquela inesperada barreira. E se aprontou a ser sujeitado a cerimónias.
  — Vão-me circuncisar?
  O velho riu. Ele já era demasiado adulto. Mas cerimónia, sim, havia que ser feita. Era condição para ingresso na família, a tribo dos mais crescidos. E seria aquela noite mesmo, se ele assim o desejasse; Izidine aceitou. O polícia estava desesperado, vendo o tempo se areiar entre os dedos. E se selou acordo. Nhonhoso saiu a avisar os restantes para que preparassem o ritual.
  Passadas umas horas batiam à porta. Entraram Nhonhoso, Mourão, Navaia. Ordenaram ao polícia que se desroupasse.
  — Afinal vão-me cortar?, perguntou aflito. Sente-se aqui no meio.
  Nhonhoso puxou de uma roupa de Marta. Seguraram o polícia pela cintura e lhe enfiaram um vestido pelo pescoço. O polícia se olhava, incrédulo, fardado de mulher.
  — Nesta festa, você faz conta que é mulher.
  Começaram os cantos, os tambores, as danças. Nhonhoso o incitava a que dançasse e cantasse, tudo em versão feminina.
  Izidine representou o melhor que soube. Os velhos riram-se a fartar. Depois saíram e o polícia os acompanhou até ao quintal. Cansado, se deitou no passeio, sujeito aos frescos do fim da tarde. Fechou os olhos para, logo, os reabrir. Passos de um alguém o despertaram. Era Marta. Postou-se de pé, estranhando as vestes do polícia. Izidine se sentou, esfregou as mãos no rosto, limpou-se de vergonhas. E contou o sucedido.
  Ela se despregou em risada.
  — Eles gozaram às suas custas. E à custa de meu vestido.
  — Desculpe, Marta.
  — Venha comigo. Está uma noite bonita para duas mulheres passearem.
  Caminharam até ao frangipani. Marta apontou luzes que se acendiam na praia, bem junto ao mar.
  — São archotes. Os velhos acendem-nos para apanhar lagostas.
  Aquelas luzes ficavam a flutuar nas ondas e eram brilhos avermelhando as espumas. Marta parecia inclinada a poesias.
  Disse que a luz é mais leve que a água, seus reflexos ficam boiando como peixes lunares, algas de fogo.
  — São assim também as memórias destes velhos, flutuando mais leves que o tempo.
  Um volume estranho no vestido chamou a atenção do inspector. Retirou o chumaçudo objecto: era uma outra escama.
  Mostrou-a à enfermeira.
  — Sabe o que é isto?
  — Isso, caro Inspector...
  — Me chame de Izidine.
  — Isto, Izidine, é uma escama de pangolim, o halakavuma...
  — Ah, já sei. Esse que desce das nuvens para anunciar notícias do futuro?
  — Afinal, você não esqueceu a tradição. Vamos ver se esqueceu outras coisas...
  E lhe passou a mão pelo rosto, desceu-lhe carícias pelo peito. Desabotoava-lhe o vestido? Seu gesto o convidou a mais se aproximar. Parecia que ela lhe queria entregar um segredo.
  Colocou-lhe os lábios sobre o ouvido mas, em lugar de palavra, ela imitou o mar numa concha. Depois, com o braço, levou a que ele se deitasse.
  — Os velhos não estão a ver-nos?
  Marta sorriu, rolando para que ele ficasse sobre o seu corpo. Izidine a quis proteger colocando as mãos por baixo dela. Mas ela dispensou essa deferência:
  — Use melhor as mãos, eu estou bem almofadada.
  O polícia tinha experimentado tais doçuras? E eu, Ermelindo Mucanga, incorpado no amante, vi-me, de repente, escoar-me daquelas Visões. A verdade é que, em Marta Gimo, eu acedia ao estado de paixão. E um “passa-noite” está interdito de se envolver em assunto dos vivos. Por isso, me deixei tombar em vazio, apagado de mim e do mundo. Tudo escureceu até que revi Izidine se erguendo, se afastando da enfermeira. O polícia esticou os braços, ajeitou o vestido. Olhou, ao fundo, a praia: já não havia archotes na praia.
  — Os velhos já não estão lá, na praia.
  — Não. Agora estão lá.
  Marta apontou, no céu, as estrelas. O polícia se perdeu nos astros luzinhando no alto, imaginando serem archotes em mãos de velhos. E se preguiçou nesse silêncio até que ela perguntou:
  — Sabe o que eu mais odiava nesse mulato?
  — Em quem?
  — Nele, em Excelêncio.
  — O que era?
  — Quando morreu Salufo Tuco pedimos que levassem o corpo para que fosse enterrado em Maputo. Uma vez mais esse mulato negou.
  Marta via o helicóptero sair e entrar, entrar e sair.
  Traziam caixas e iam vazios. Várias vezes ela pediu que levassem doentes. Excelêncio sempre recusou.
  — Afinal, eles tinham medo.
  — Medo? Medo de quê?
  — Tinham medo que nós os denunciássemos lá para fora...
  O inspector, súbito, se interessou. Talvez demasiado.
  Acendeu a lanterna sobre o rosto dela. Queria saber quem eram esses “eles”. E que denúncias seriam aquelas. A enfermeira desviou-se do foco:
  — Você nunca vai entender. O que se está a passar aqui é um golpe de Estado.
  — Um golpe de Estado?
  — Sim, é isso que o deveria preocupar, senhor polícia.
  — Mas aqui na fortaleza, um golpe? Izidine se riu, estupefeito. Francamente, Marta...
  — Não é só aqui na fortaleza. É no país inteiro. Sim, é um golpe contra o antigamente.
  Uma vez mais, Marta Gimo o apanhava em contra-mão. Desta vez, o polícia evitou milandear. Ela que falasse. E, realmente, falou:
  — Há que guardar este passado. Senão o país fica sem chão.
  — Eu aceito tudo, Marta. Quero saber apenas quem matou Vasto Excelêncio. Só isso.
  Se fechou a conversa. O inspector se aprontava para regressar ao quarto quando foi parado pelas gargalhadas de Marta. A enfermeira se divertia ao vê-lo, grave e assumido, envergando trajes de mulher. Ele abanou os braços, rodou sobre si mesmo. Encenou uma vénia. Marta se aproximou para lhe dar as despedidas. Desembrulhou uns papéis e lhos fez passar:
  — Leia isto.
  — O que é isto?
  — Uma carta. Leia-a.
  — Uma carta de quem?
  — De Ernestina.
 
Mia Couto
Enviado por Germino da Terra em 30/03/2012
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras