retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


Orgulho, de Rubem Fonseca (do livro O buraco na parede, publicado pela Companhia das Letras — editora schwarcz ltda. —, 1995)
Em várias ocasiões ele ouvira dizer que pela mente do indi­víduo que está morrendo afogado desfilam em vertiginosa rapidez os principais acontecimentos da sua vida e sempre achara absurda essa afirmativa, até que um dia ocorreu que ele estava morrendo, e enquanto morria se lembrou de coisas esquecidas, da notícia do jornal segundo a qual na sua infância pobre ele usava um sapato furado, sem meias, e pintava o dedão do pé para disfarçar o furo, mas ele sempre usara meias e sapatos sem furos, meias que sua mãe cerzia cuidadosamente, e lembrou-se do ovo de madeira mui­to liso e macio que ela enfiava nas meias e cerzia, cerzindo todos os anos da sua infância, e lembrou-se de que desde criança não gostava de beber água e se bebesse um copo cheio ficava sem ar e por isso permanecia o dia inteiro sem beber uma gota de líqui­do pois não tinha dinheiro para sucos e refrigerantes, e que as ve­zes escondido da mãe fazia refresco de pasta de dentes Kolynos, mas nem sempre tinham pasta de dentes em casa, e no momento em que morria também se lembrou de todas as mulheres que amou, ou quase todas, e também do chão de tacos de madeira ver­melha de uma casa onde morara, porém angustiado não conse­guiu recordar que casa era aquela, e também do relógio de bolso ordinário que quebrou no primeiro dia em que usou, e também do casaco de flanela azul, e da dor que o fizera rastejar no chão, e do médico dizendo que ele precisava fazer uma radiografia das vias urinárias, e quanto mais a morte o cercava mais as lembran­ças antigas se misturavam com as recentes, ele chegando atrasado ao consultório do médico que estava vestido para sair, havia até mesmo dispensado a enfermeira, e o médico apressado, ansioso como alguém que vai encontrar uma namorada muito dese­jada, mandando ele tirar o paletó, arregaçar as mangas da camisa e deitar numa cama de metal, explicando que afinal a radiografia não seria muito demorada, era só injetar o contraste e bater as cha­pas, e o médico se curvou sobre a cama para aplicar o contraste na veia do braço e ele sentiu o cheiro delicado do seu perfume e pôde notar a sua gravata de bolinhas, e não demorou muito tem­po para que sentisse a laringe se fechar impedindo-o de respirar e ele tentou alertar o médico mas não conseguiu emitir som al­gum e as recordações vieram todas à sua mente, a notícia do jor­nal, o casaco azul, o chão de madeira, as mulheres, o ovo liso de madeira da mãe, enquanto o médico num canto do consultório falava ao telefone em voz baixa, e como sabia que estava morren­do bateu na cama de metal com força, o médico assustou-se e logo muito nervoso revirava as gavetas dos armários, praguejando, culpando a enfermeira e dizendo para ele ficar calmo, que ia lhe dar uma injeção antialérgica mas não achava o maldito remédio e ele pensou estou morrendo sufocado, vida e morte correndo lado a lado, e consciente de que sua morte era iminente e inevitá­vel, lembrou-se das palavras de um poema, eu devo morrer mas isso é tudo o que farei pela Morte, pois ele sempre se recusara a ter o coração apertado por ela, e naquele momento em que mor­ria não ia deixar que ela tomasse conta da sua alma, pois o máximo que a Morte teria dele seria o morto, e assim pensou na vida, nas mulheres que conhecera, na mãe cerzindo as meias, no ovo liso de madeira, na notícia do jornal, e bateu com força na mesa de metal, bam! bam! bam! estou pensando nas mulheres que amei, bam! bam! bam! pensando na minha mãe, e nesse momento o mé­dico, sem saber o que fazer, atormentado e sobressaltado pelos ruidosos golpes que ele desferia na cama de metal, olhou-o com grande comiseração e tristeza, e ele gritou novamente bam! bam!, que perdoava o médico, bam, bam!, que perdoava todo mundo, enquanto sua mente percorria velozmente as reminiscências da vida, e o médico, agora entregue a sua impotência, desesperado e confuso, tirou-lhe os sapatos, e ele levantou a cabeça e notou seus pés vestidos com meias pretas, e viu na meia do pé direito um furo que deixava aparecer um pedaço do dedo grande, e lembrou-se de como sua mãe era orgulhosa e de que ele também era muito orgulhoso e que isso sempre fora a sua ruína e a sua salvação, e pensou não vou ficar aqui morto com um buraco na meia, não vai ser essa a imagem final que vou deixar para o mun­do, e contraiu todos os músculos do corpo, entortou-se na cama como um escorpião ardendo no fogo e num esforço brutal conse­guiu fazer o ar penetrar pela sua laringe com um ruído estarrecedor, e o ar sendo expelido dos seus pulmões fez um ruído ainda mais bestial e apavorante, e ele escapou da Morte e não pensou em mais nada. O médico, sentado numa cadeira, limpou o suor do rosto. Ele se levantou da cama de metal e calçou os sapatos.
 
Rubem Fonseca
Enviado por Germino da Terra em 22/03/2012
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras