retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


A varanda do frangipani (6º capítulo), de Mia Couto

terceiro dia nos viventes

Era o meu terceiro dia na fortaleza. Izidine se afundava em hesitação. Os depoimentos dos velhos o lançavam por pistas que pareciam falsas mas que ele não podia ignorar. aqueles idosos eram testemunhas essenciais mas era de Marta Gimo que devia obter as suculentas informações. A enfermeira, contudo, resistia com subtileza. Escusava-se a marcar encontros. Dizia ter que trabalhar. Mas, pelos vistos, não se ocupava nos afazeres de enfermagem. Passava horas brincando com a velharia, rindo e cavaqueando. Falava diversas línguas e o polícia não fazia ideia do que eles diziam. De uma coisa tinha a certeza: era dele que Marta e os velhos riam e faziam abuso.
  Naquela tarde, o polícia se aproximou de Marta. Ela estava sentada junto de Navaia. Desta vez, parecia que ela exercia, de facto, a sua profissão.
  — Sente-se. Estou tratando de Navaia.
  O velho-criança arregaçara as calças exibindo suas pernas magras. Marta explicou que tinha havido casos de lepra no asilo. Ela agora certificava se não havia reincidência.
  Navaia Caetano comentava sobre a magreza das suas pernas.
  — É o tempo, dona enfermeira. O tempo é um fumo, nos vai secando as carnes.
  Marta Gimo sorriu, paciente. Chegou-se mais para junto do velho e descobriu-lhe as costas para lhe procurar algum sinal de doença. Navaia não parecia estar à vontade:
  — Não me cheire, enfermeira.
  — E porquê não?
  — É que, de mim, está sair um cheiro de vela apagada, um bafo de coisa morta.
Com uma das mãos fez parar a enfermeira para ele próprio revistar as pernas. Agarrou qualquer coisa e espremeu-a entre os dedos:
  — Está a ver essa pulga, enfermeira?
  — Não vejo nada.
  — Essa pulga não é minha. Não é minha, eu conheço as minhas pulgas.
  A enfermeira sorriu e ordenou que endireitasse as calças.
  — Você anda a comer o quê, Navaia?
  — Migalhices dessas que me deixam por aí.
  — Não me venha com essa história da coruja, Navaia. Essa história é para contar aqui ao inspector, não a mim.
  Depois, Marta lhe deu uma palmada nas costas.
  — Pronto, vai lá, agora preciso falar com o inspector.
  Navaia se retirou com lentidão: a curiosidade o prendia àquele lugar. Voltou atrás ainda duas vezes fingindo que procurava seu arco. Finalmente, quando ficaram a sós Marta estendeu a mão ao polícia:
  — Antes que me esqueça! Me pediram para lhe entregar isto.
  Deitou um pequeno objecto na palma da mão direita. Era uma escama, bem igual àquelas que apareceram no quarto.
  — Quem lhe deu isto, enfermeira?
  — Já me esqueci, inspector.
  Falava com um sorriso irónico. Soletrava a palavra “inspector” como se de um insulto se tratasse. Izidine fingiu ignorar o tom sarcástico. E foi directo ao assunto:
  — Encontrei uma espingarda, ontem, junto às rochas.
  — Uma espingarda? Isso não é possível. O senhor deve-se ter enganado...
  O inspector desatinou-se. E gritou com a enfermeira: que ela não tinha nenhuma vontade de ajudar. Que ela escondia qualquer coisa. E que isso era punível por lei.
  — Escute, senhor inspector: o crime que está sendo cometido aqui não é esse que o senhor anda à procura.
  — O que quer dizer com isso?
  — Olhe para estes velhos, inspector. Eles todos estão morrendo.
  — Faz parte do destino de qualquer um de nós.
  — Mas não assim, o senhor entende? Estes velhos não são apenas pessoas.
  — São o quê, então?
  — São guardiões de um mundo. É todo esse mundo que está sendo morto.
  — Desculpe, mas isso, para mim, é filosofia. Eu sou um simples polícia...
  — O verdadeiro crime que está a ser cometido aqui é que estão a matar o antigamente...
  — Continuo sem entender.
  — Estão a matar as últimas raízes que poderão impedir que fiquemos como o senhor...
  — Como eu?
  — Sim, senhor inspector. Gente sem história, gente que existe por imitação.
  — Conversa. A verdade é que o tempo muda, esses velhos são uma geração do passado.
  — Mas estes velhos estão morrendo dentro de nós.
  E batendo no peito, a enfermeira sublinhou:
  — É aqui dentro que eles estão morrendo.
  Marta Gimo levantou-se e virou costas. Izidine se arrependeu de retoricar com a mulher. Marta era uma fonte de informação que ele devia explorar. Não era ajuizado afugentá-la por razões de desconversa. Não lhe restavam senão mais três dias. Não podia desperdiçar tempo. Muito menos poderia perder ligação com aquela que, cada vez mais, surgia como a única ponte para desvendar o caso da morte de Excelêncio.
  Naquela noite, quando já se preparava para dormir, ouviu gritos de mulher. Correu pelos becos da noite. Os gritos vinham do quarto de Marta. Era ela que gritava. O polícia repentinou-se pelo quarto dela adentro, pistola em punho.
  Estava escuro, não se percebia contra quem a enfermeira se debatia. Izidine acudiu a resguardá-la, interpondo-se contra o invisível adversário. Marta caiu enquanto, em vão, o policial procurava o intruso. De súbito, Marta Gimo desatou a rir.
  Enrolada sobre si mesma, sufocada pelo riso, ela abriu a porta e saiu para o luar. A combinação revelava o corpo à transparência.
  — Mas quem era, perguntou Izidine.
  — Era um morcego!
 A sua voz se entremeava com as gargalhadas. Izidine  Naíta não encontrou forças nem sequer para sorrir. Olhou-se, em jeito de espelho: pistoleiro, de cuecas. Marta aproximou-se e passou-lhe a mão pelo cabelo.
  — Está ver? Ficámos sujos com pêlo de morcego.
  Riu-se, atirando a cabeça para trás. Pediu-lhe que pousasse a arma.
  — Sabe o que deveríamos fazer agora?
  — O que devíamos fazer?
  — Sim, se fôssemos seguidores da tradição, sabe o que fazíamos?
  — Não faço ideia. Devíamos, sei lá, tomar banho?
  — Devíamos fazer amor.
  Sem saber o que dizer, o polícia sorriu. Na atrapalhação ele apressou a despedida. Atrás dele ainda escutou as últimas palavras da enfermeira.
  — É pena o senhor não ser um seguidor da tradição. É pena, não acha?
 
Mia Couto
Enviado por Germino da Terra em 18/03/2012
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