retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


treinando

— Caraca, amei o seu “coaching”! Além de gostar de ler em sua companhia a carta — a de verdade — à Maria Lúcia, gostei mais ainda ao lê-la ficcionada no retalhos. Tô adorando perceber a realidade virar ficção. E o fundo musical, hein, quem é?...
  — Nação Zumbi compôs Baião instrumental. É ótimo! Mas percebe se num é o contrário, que a surpreendência seja a viravolta da ficção à realidade, sem perfumá-la. Sabe d’O primo Basílio, Madame Bovary, sabe da Capitu, aquela mesma, de Dom Casmurro, esses romances, entre tantas outras ficções que inaugurando o modernismo se enredando na adulterinidade, eles transpassaram o real à ficção; sem falar do curto rosiano em Desenredo, este bem mais pra cá, cuja Vilíria — que já fora Livíria, Rivília ou Irlívia —, que com um segundo amante a danada trai o primeiro e o marido... você sabe desses casos? Hoje é hoje, no pós-moderno vale-tudo — somos a pluralidade, qualquer merda vale! Assim é o real, mimetiza-se a ficção...
  — Iiih! Sei, sei e nem sei se sei — tem vez que você fala demais, bate na mesma tecla, nossa! Eu gosto é de saber você transformando fatos banais em Literatura. Só!
  — Num será por que escrevendo trivializo, além da conta, a Literatura, tentando, assim, alcançar alguma literariedade?! Pô, e os acontecidos nem são tão banais assim. Num é qualquer um que, desconhecendo onde é envolto, é chifrado por dilatados anos...
  — Nossa, como fala! Agora mesmo eu vou enviar e-mail à Maria Júlia. Se aquiete.
  Mas antes é preciso q’eu te esclareça que coach não tem nada a ver com os galhos que te ornam. E eu por mim nem tô aí pra eles. Naquela conversa aqui em casa, na festa, você testemunhou que galhos — e até fizeram graça com os seus —, que todos nós, num tempo ou noutro, envolvidos numa ou noutra relação amorosa, ornamos galhada...
  — Eu hein, minimizar a minha dor com a desgraça alheia! E é melhor dizer: em nós nos impõem adorno. Ninguém se ajunta a outrem sabendo que será semelhado ao alce, que vai ornamentar dois grandes cornos espalmados; se souber e ainda assim liga-se a outro, é merecedor, é um tremendo, um belo, um autêntico exemplar de cervo... E de servo!
  — A ideia do coach é sugerir que você possa, em pouco tempo, dar um rumo em sua vida, pra que se reequilibre pelo caminho que deseja.
  — É, e tá foda! Aquela sirigaita, você sabe q’ela, com sua notória dificuldade no beabá, com as concordâncias nominais e verbais... a posuda ainda se metida a letrar músicas do seu amigo Paulinho Traíra?! É muito do besta! Também, praquele tocador de merda, analfabeto...
  — Ah, carácole, deixa ela pra lá! Vire essa página! Aproveita esses óculos novos, muda o seu olhar, olhe pra você agora, à frente, pomba!
  Além disso, pensa aí: no instante, em qual vereda você quer adentrar? Pense na visita que fez àquele sítio, o...
  — Araxá.
  — ... É, aquele que é assim e assado, que tem isso e aquilo, tudo natural — cê sabe, eu sou natureba e bato palmas à iniciativa do sujeito. Pensa, pensa também em...
  — Poxa, quando te falei sobre aquele lugar, daquele cara tão falante e bacana, eu ‘tava bem empolgado — tinha acabado de chegar de lá. Aí você me diz que queria me falar, mas estava no escritório, atribulada, q’eu te aguardasse. Mas...
  — Eh-eh, peraí...
  — Calma, não, não te cobro nada, não. Tá, tô aqui quieto, no aguardo.
  Eu encuco de que você mesma poderia ir-me coaching. Aliás, só de me escutar, você já tá me treinando...

 
Germino da Terra
Enviado por Germino da Terra em 16/03/2012
Alterado em 19/03/2012
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