retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


o buraco na parede, de Rubem Fonseca (conto que dá título ao volume publicado pela Companhia das Letras — editora schwarcz ltda. —, 1995) — parte II

  No dia seguinte Tânia me encontrou de manhã, ao terminar seu banho de sol, quando eu estava entrando no banheiro.
  O que está olhando? Está me achando bonita? Dormi só doas horas esta noite.
  Sim.
  O que você acha mais bonito? Meu rosto ou meu corpo?
  Os dois.
  Deu uma gargalhada, pôs a mão no peito. Nem por um ins­tante passou-lhe pela mente a ideia de que eu estava apenas di­zendo o que ela queria ouvir. Com seus cabelos vermelhos e eriçados parecia uma mulher de desenho animado ligada numa tomada de alta-tensão. Eu também percebia com a mesma fria indelicadeza que antes me fizera examinar-lhe os joanetes dos de­dos —, agora com vergonhosa curiosidade malsã, a bolsa debai­xo dos seus olhos. Tentei não ver os cabelos eletrônicos, mas não consegui, cruelmente atraído por eles. O que era verdadeiro em Tânia? Os seios pontudos?
  Minhas qualidades de observador perceptivo cessaram quando tinha sete anos. Toda a minha capacidade de ordenar e registrar o mundo foi encerrada depois dos sete primeiros anos de minha vida, antes de ter mudado da casa branca no alto da colina. Depois que mudei da casa branca e cresci e vim para meu exílio, nesse tempo todo apenas acumulei lembranças descartáveis, sem significado, im­possíveis de serem revividas. O que emergia do poço fundo da mi­nha mente era uma reminiscência que eu sabia ser a frase de um livro que li com menos de sete anos. Botinas de botão.
  Ao sair do banheiro, cuja porta ficava em frente à cozinha — eu não tinha um roupão colorido como o de Armando, ou mes­mo cinzento como o do doutor Raimundo, e costumava vestir-me rapidamente dentro do banheiro pois não queria ocupá-lo duran­te muito tempo, era o único que havia na casa; o outro banheiro, que servia à empregada no tempo em que dona Adriana tinha em­pregada, sofrera um defeito nos encanamentos e virara depósito de trastes velhos —, notei Tânia sentada em frente a uma xícara de café. Chorava. Fiquei chocado. Nunca pensei que ela fosse ca­paz de chorar. Senti-me um pouco culpado, não sei bem por quê. Ela não me viu passar em direção ao cubículo, debruçada sobre a xícara, a cabeça apoiada nas duas mãos.
  Entrei no cubículo, deixei a toalha aberta sobre a cama para secar, peguei os papéis com as coisas que estava escrevendo. Na sala dei um encontrão em Pia, os papéis caíram da minha mão e ela se curvou para me ajudar a apanhá-los. Meu olfato era muito sensível, mas não consegui sentir odor algum se desprendendo de Pia, seu corpo parecia ser totalmente inodoro.
  Você escreve?, disse ela, percebendo que os papéis estavam cobertos com as minhas garatujas.
  Escrevo. Coisas. Poemas.
  Você vai ganhar algum dinheiro com isso?
  Não. Dinheiro não é importante.
  Gostaria de pensar assim. Mas é muito infantil, achar que di­nheiro não é importante. Se soubesse escrever escreveria uma no­vela para a televisão.
  Odeio televisão.
  Eu também não gosto, mas não odeio. Quando um programa é chato eu deixo de ver.
  Pia me deu os papéis, que novamente escaparam da minha mão. Curvei-me para apanhá-los, e vi a menina afastar-se, sem fa­zer barulho, parecia não ter peso algum. Só olhei para os pés de­la. As coisas se armavam em volta de mim como um cipoal de plan­tas carnívoras, mas eu ainda não sabia disso.
  Na Biblioteca fiquei um tempo enorme procurando um livro para ler. Como tinha tantos livros para escolher, às vezes ficava na dúvida. Pesquisei assuntos no computador, vendo o que havia para ser consumido, como se fosse o menu de um restaurante. Ler era melhor do que comer. Ler era melhor do que andar. Ler era melhor do que criar sonhos inconscientes, ler era criar sonhos conscientes. Ser surdo era melhor do que ser cego. Ser cego era melhor do que ser paralítico? Ensinei um rapaz estudante de cur­so noturno a encontrar um livro que o colégio mandara pesqui­sar, ele não entendia os comandos do computador. Eu gostava de ajudar as pessoas, gostava de mexer no computador, se tivesse di­nheiro comprava um computador. Bem que gostaria de trabalhar na Biblioteca, seria o homem mais feliz do mundo se pudesse tra­balhar ali.
  Então ouvi aquela conversa grotesca entre Tânia e Armando. Estava deitado no meu cubículo e por qualquer raro motivo a te­levisão não estava ligada. Apenas os dois estavam na sala.
  Eu fazia umas camisas com os dizeres Fuck you. Ganhei um dinheirão.
  Gargalhada de Tânia. Quem usava essas camisas?
  Tossi alto, pigarreei, para alertá-los da minha presença no cubículo.
  Estudantes, jovens bancários que querem ficar na moda, men­sageiros, crioulos funkeiros, comerciários, sujeitos que mandam os outros se foderem sem perceber que quem está fodido são eles. Mas ultimamente tenho usado mensagens mais sutis, mais engaja­das. Por exemplo: Viva a viadiagem: os viados não fazem filhos.
  Alguns fazem.
  Gargalhadas, gargalhadas.
  Qual é a mensagem desta?
  É moderna. É a que mais vende agora.
  Ficar ouvindo como um espião o diálogo indecente dos dois me deixou muito inconfortável. Abri a porta.
  Você estava aí? Ouviu o que a gente dizia?
  Ahn... não.
  Ainda bem, não é, Armando? Ele ia ficar chocado.
  Entrei no meu cubículo.
  Ouvi Tânia dizer: Este rapaz é muito esquisito.
  Novas vozes. Dona Adriana e o doutor Raimundo haviam entrado na sala. Pia também? Não se ouvia a voz dela, mas Pia sempre ficava calada. Tânia: Eu contei para vocês a história do bai­larino? Esse bailarino me perguntou um dia se eu sabia por que todos os homens se apaixonam pelas sereias. Vocês sabem?
  Porque as sereias cantam bonito, a voz de dona Adriana.
Porque as sereias são entes mágicos, o advogado.
  Para não ouvir o que diziam deitei-me com as palmas das mãos bem apertadas sobre os ouvidos. Reuni forças para ficar um lon­go tempo nessa posição, vendo na parede a maldita paisagem com barco e pescador. Os homens se apaixonam pelas sereias porque elas não têm vagina, são asseadas e impenetráveis, e assim pode­mos ter com elas um vínculo imaculado. Pureza, limpeza, inex­pugnabilidade, esse o segredo das sereias.
  Naquela noite sonhei com Pia. Os colegas de colégio mexiam com ela, por causa do seu nome. Cantavam em coro, no recreio, uma música com estas palavras: debaixo da pia tem um pinto/ pinga a pia, pia o pinto/ pia o pinto/ pinga a pia. Ela não tinha uma única amiga, no meu sonho.
Ao acordar decidi retirar o quadro do pescador da parede. Nada me obrigava a ficar olhando para aquilo. Na verdade entra­va mais fundo no vórtice do meu infortúnio ao tirar o quadro da parede. A partir daquele instante, não havia mais como escapar da minha desgraça.
  Ao remover o quadro descobri um pequeno buraco na pare­de. Olhando pelo buraco vi a banheira com o chuveiro e uma parte do vaso sanitário. Pensei em avisar dona Adriana imediatamente. Peguei o quadro do pescador, abri a porta do cubículo e vi Pia passando pela sala, envolta no seu roupão atoalhado azul. Seu cor­po debaixo do tecido se movimentava como um animal preso den­tro de um saco. Voltei imediatamente para meu cubículo. Sentei na cama. Depois me levantei e olhei pelo buraco na parede. Pia tomava banho, a água escorria pelos bicos róseos dos pequenos seios, os cabelos molhados grudavam-se na sua cabeça como uma touca, o jato do chuveiro sobre o rosto fazia seus lábios parece­rem mais azuis.
  A noite inteira fiquei acordado pensando no corpo de Pia. Como era possível ter lábios violeta e aréolas do peito cor-de-rosa? Eu amava aquela menina. No dia seguinte não fui ler na Bibliote­ca, não saí do quarto, permaneci de prontidão esperando ela apa­recer. Eram seis horas da tarde quando a vi entrar no banheiro, de roupão, saboneteira e toalha. Olhei pelo buraco. Ela tirou o roupão e sentou no vaso sanitário. Fechei os olhos, esperei, espe­rei um tempo enorme antes de olhar novamente. Pia já estava em pé, dentro da banheira, o chuveiro aberto. Pude ver melhor a for­ma dos seus peitos, os halos rosados diminutos como petits-pois. Ela colocou o pé sobre a borda da banheira para ensaboar a perna e a entrada do abismo revelou-se, coberta por negros pelos, que ela ensaboou apressadamente. Depois enfiou os dedos com sabão entre as duas nádegas. Lavava as axilas quando me afastei do meu posto de observação.
Sentei na cama. Estava errado, agia de maneira torpe, espio­nando a mulher que eu amava. Coloquei o quadro de volta na parede.
  Durante dois dias resisti. Voltava da Biblioteca antes das cin­co horas da tarde, a hora que Pia tomava banho, olhava o quadro na parede mas não mexia nele.
Mas no terceiro dia notei Pia indo para o banheiro, vestida com o roupão. Corri para meu cubículo, tirei o quadro da parede e olhei. Pia sentara-se no vaso sanitário e examinava as unhas, pla­cidamente. Eu nunca a vira tão tranquila. Apanhou papel higiêni­co e eu tirei os olhos do buraco.
  Quatro dias sem olhar pelo buraco na parede, mas sempre voltando antes das cinco da Biblioteca. Quando o relógio se apro­ximava das cinco eu pegava um papel em branco e escrevia furio­samente. Mas naquele dia olhei pelo buraco e lá estava Pia. Não tirei os olhos. Observei Pia se limpando com papel higiênico, con­templei seu corpo sendo molhado, o sabão sendo passado pelo corpo, ela se enxugando com a toalha. Peguei novamente o ca­derno de poesia e escrevi, escrevi sobre o corpo de Pia. Pergun­tava a mim mesmo que parte do corpo de Pia mais me atraía. Os seios empinados de bicos rosados? A barriga com sua leve ondu­lação, o umbigo pequeno e raso? As coxas redondas e musculo­sas? As nádegas altas, firmes, os hemisférios separados ainda que fazendo parte da mesma maciça entidade? O rosto, o queixo, a boca cheia de dentes brancos e certinhos, os lábios azuis, os olhos negros, os cabelos negros?
  No dia seguinte constatei qual parte do corpo de Pia mais me atraía. Ao espiá-la tomando banho, ao olhar atentamente cada parte do seu corpo — agora a bunda, que palavra horrível essa, pensei, meu corpo ardendo, agora o rosto, agora os seios, eu me mastur­bava, agora a barriga, o púbis, as coxas, a bunda, surpreendia-me com tantos músculos no seu corpo, e olhava o rosto, o rosto — era o rosto, o rosto de Pia o que mais me excitava. Meu corpo estremeceu e dei um gemido forte, afastei-me da parede, sobres­saltado, sentei-me na cama. Notei a parede manchada com meu sêmen, senti-me sujo. Limpei-me, e à parede, com um lenço.
  Passei aquela noite acordado. No dia seguinte bateram no ta­bique. Tânia. Vai embora, eu disse. Ela sussurrou, devia estar com a boca colada na madeira, eu sei o que você está fazendo tranca­do aí dentro.
  Abri a porta.
  Estamos sozinhos, saíram todos, disse Tânia quando abri a porta.
  Por favor, eu disse.
  Sabe quem morou neste lugar, antes de você? O Armando. Ele me contou que fez um buraco na parede para me ver toman­do banho. O safado.
  Por favor...
  E agora você faz o mesmo. Não conto nada para ninguém se você vier até meu quarto. Pode vir, o Cardoso está viajando.
  Fui para o quarto dela. Tânia fechou a porta.
  Você não precisa olhar por aquele buraco para me ver nua.
  Tânia tirou o vestido. Quer que tire tudo?
  Inteiramente nua, me abraçou. Senti o seu peito de encontro a mim.
  Está nervoso? Quando me olha pelo buraco você não fica as­sim desanimado, fica? Anda, quero ver isso duro.
Você não fala nada a ninguém sobre o buraco na parede?
Depende de você. Anda, tira essa roupa, você me viu nua e está me vendo nua, tenho os mesmos direitos.
  Veste a sua roupa, eu pedi, faço o que você mandar, se você puser seu vestido.
  Você está maluco.
  Queria ver apenas os joelhos dela, não queria ver seu corpo nu.
  Tânia colocou o vestido.
  Senta e deixa eu ver os seus joelhos.
  Você é tarado?
  Gosto dos seus joelhos.
  Tânia sentou-se na cama. Está bom assim? Agora fica aqui per­to de mim, deixa eu ver o efeito dos meus joelhos. Abriu a bra­guilha da minha calça. O que é isso? Na sua idade?
  Estou nervoso.
  Eu acabo logo com o seu nervosismo, disse Tânia, esfregan­do meu pênis. Pensei em Pia. Pensei no rosto de Pia.
  Vem, deita aqui comigo, deixa que eu faço tudo.
  Ela fez tudo, enquanto eu, com os olhos fechados, pensava em Pia.
  Na segunda vez vai ser melhor, quando a gente se acostumar um com o outro. Não diga nada ao Armando. Na próxima vez nós dois vamos tirar a roupa, está bem? Minha vida estava se compli­cando vertiginosamente. Há algo pior do que ir para a cama com uma mulher por quem não se sente amor? Fazer uma coisa dessas não tem sempre um preço terrível a pagar? Devia ter me mudado daquela casa, mas, em vez disso, me enredava ainda mais. Sentia, nebulosamente, que minha fornicação com Tânia era mais uma vinheta funesta, uma rubrica fatal na trama que eu mesmo tecia. Mas só constato isso agora, aqui no banco da estação rodoviária.

  Um dia ao voltar para casa encontrei Armando na sala. Ele não me deixou entrar no cubículo.
  Quero falar com você, vamos dar uma volta.
  Só abriu a boca quando chegamos nos Arcos da Lapa. Falou em tom paternal. Suas falas eram sempre prolixas.
  Enquanto você estiver apenas olhando pelo buraco eu não me incomodo. Tânia não se incomoda, eu não me incomodo. Mas aquela mulher tem dono, eu sou o dono, entendeu? Fique tocando suas punhetinhas e não se meta com ela, está bem? Os católicos, eu sou católico, quer dizer, virei católico para enfrentar o evangelismo protestante do meu pai, e gostei. Você é católico, a Tânia é católica. Nós somos mais tolerantes do que os protestan­tes, pelo menos no Brasil, onde ainda somos a maioria. Mas você fica só nas punhetinhas, está bem?
  Não sei do que você está falando.
  Eu abri aquele buraco na parede, rapaz.
  Não sei do que...
  Você conhece o episódio de Onan na Bíblia católica? A Bí­blia é um livro cheio de crimes, torpezas, violências, aberrações, iniquidades, traições, ardis usados para enganar e obter vantagens, prevaricações de todos os tipos, e a história de Onan, e de uma forma mais ampla também a história de Judá, seu pai, está cheia de tais acontecimentos execráveis. O Senhor, conforme a Bíblia católica, o Senhor já havia ferido de morte a Her, primogênito de Judá, pois Her era um péssimo homem. Mas a Bíblia protestante do meu pai, sendo mais cruel, não dizia que o Senhor ferira de morte a Her, mas sim que o Senhor o matara. Voltando à nossa história. Então Judá disse ao seu segundo filho, Onan: casa com a mulher do teu irmão, e coabita com ela, a fim de suscitares fi­lhos a teu irmão. Porém Onan impedia que a mulher concebesse, sabendo que os filhos que nascessem desse matrimônio não seriam seus, usariam o nome do irmão. Para puni-lo pelo seu compor­tamento, o Senhor matou Onan. Na Bíblia do meu pai, o pastor gramático, o Senhor não é eufemístico, ele mata. Onan foi ferido de morte porque fazia uma coisa detestável. Sabe o que ele fazia, não sabe?
  Não, não sei.
  Você não sabe o que é onanismo?
  Sei.
  Então. Onanismo é o que Onan fazia. O mesmo que você faz olhando Tânia tomar banho, pelo buraco na parede. Bem, é pos­sível que aquilo que Onan praticava não fosse masturbação, fosse o coitus interruptus, a Bíblia fala em impedir que a mulher conce­besse... Enfim, Onan não fazia filhos e na nossa religião gozou tem que fazer filho.
  Entramos num botequim.
  Por que você está me dizendo tudo isso?, perguntei.
Judá era um patife. A Bíblia tem vários Judás, esse é filho de Jacó e Léia. Fundador de uma das tribos de Israel. Todo fundador é um patife em busca de glória e imortalidade. Você devia ler a Bíblia.
  Por que você está me dizendo tudo isso?
  Porque eu sei que você é um bom menino. E quero mostrar a você que não sou tolo, você acha que todo mundo lá na pensão é imbecil, menos você que é um gênio porque frequenta a Biblio­teca. É verdade, são todos imbecis, uns mais e outros menos. To­dos menos eu.
  Pia não é imbecil.
  Ninguém aprende nada nos livros. Aprende nas esquinas das ruas, e falta esquina para você. Resumindo: além de mais sabido, sou mais forte e mais mau do que você.
  Você está me ameaçando?
  Você não vê novela mas essa pergunta é de novela. Então lá vai uma resposta de novela: eu não ameaço, eu comunico o que vou fazer. Vou quebrar os seus dentes se você chegar perto da Tânia.
  Vou pensar no seu assunto.
  E isso não é um eufemismo, rapaz.
  Fui para a Biblioteca. Com os livros sobre a mesa consegui pensar com mais lucidez. Eu não me assustava com as ameaças de Armando. Mas, de qualquer forma, não estava disposto a sofrer riscos por causa de Tânia. Não seria difícil evitá-la. Eu conhecia os horários dela. Quando Cardoso estava em casa, Tânia ficava vendo televisão com ele. Quando o marido viajava ela saía todas as noites, provavelmente com Armando. Foi isso que pensei e pla­nejei, em vez de aproveitar aquela deixa e preparar a minha saída de cena. Grande esperteza.
  Quando cheguei em casa Tânia já havia saído. Dona Adriana, Pia e o doutor Raimundo viam televisão na sala.
  Vai passar um bom filme daqui a pouco, você não quer ver?, disse Pia.
  Dentro do vestido, o corpo dela, posto em sossego, tinha mesmo latejamento de quando estava dentro do roupão.
  Vai demorar muito?
  Duas horas, ou menos.
  Sentei-me um pouco atrás dela, de maneira que pudesse observá-la, enquanto fingia ver o filme. Eu a via de perfil, detida­mente, pela primeira vez. Ela enrodilhara descuidadamente os ca­belos num coque e uma mecha de cabelo negro se desprendera e descera pelo seu pescoço muito branco. Eu não sabia a idade dela. Dezesseis anos? Eu estava espionando uma menina de dezesseis anos? Sabia que minha conduta, em todos aqueles atos, era desprezível, mas continuava olhando-a furtivamente, como um rato. Já vira aquele perfil antes, e acreditara, até então, que uma mulher de verdade, com aquele perfil, não podia existir.
  Assim que o filme terminou decidi recolher-me ao cubículo. Tânia podia chegar a qualquer momento e eu não queria me en­contrar com ela. Dona Adriana pediu a Pia que fosse apanhar um copo com água para ela tomar o barbitúrico. Se não tomar minha pílula eu não durmo, disse ela. Segui Pia até a cozinha.
  Estava olhando seu perfil, é igual ao de outra mulher que conheci.
  É mesmo? Quem é?
  Não é uma mulher de verdade.
  Como assim?
  Ela está num camafeu de ônix branco e preto da minha mãe.
  Camafeu? Camafeu não é uma mulher feia?
  Essa era muito bonita. Minha mãe nunca usava o camafeu e para vê-lo eu tinha de retirá-lo da sua caixa de jóias. Eu acreditava que não poderia existir uma mulher tão bonita assim no mundo.
  Pia ouviu isso e nada disse. Senti-me ridículo. Fui para o meu cubículo. Ridículo, abjeto, imbecil, infame, reles. Eu era isso tu­do. Perdera Pia para sempre, com aquela história cretina do ca­mafeu, antes mesmo de conquistá-la.
  A televisão foi desligada. A luz da sala foi apagada. Não sentia sono e preparei-me para ficar a noite inteira acordado. Levei um susto quando bateram de leve no tabique.
  Você está acordado?
  Era Tânia. Não respondi. A luz da sala foi acesa e iluminou meu cubículo.
  Por que você não responde?, sussurrou Tânia. Havia trepado numa cadeira e me olhava por cima do tabique. Abre a porta.
  Abri a porta.
  Ela entrou. Estou com saudades de você, hoje vamos ficar nus, disse, enquanto tirava a roupa.
  Você é maluca?
  Tira a roupa.
  Você está maluca.
  Tira a roupa senão eu grito.
  O Armando...
  Encheu a cara. Ele sempre enche a cara, é um alcoólatra, vo­cê sabia? Neste momento está emborcado na cama, vestido, com sapatos e tudo, ressonando.
Ela mesma arrancou a minha roupa, uma cueca e uma cami­seta de meia, era assim que eu dormia, nunca tive pijama. Depois enfiou-se comigo na cama. Tânia tinha razão. A segunda vez foi melhor do que a primeira. Ridículo, abjeto, imbecil, infame, reles.
  Agora vai embora, murmurei.
  Deixa eu ficar abraçadinha com você mais um pouco.
  Não.
  Não se preocupe com o Armando. Vamos fazer de novo.
  Fizemos novamente.
  Deixa eu ficar um pouco aqui.
  Não. Vai embora.
  Amanhã, à mesma hora, murmurou, antes de ir embora.
  Cada vez eu me enterrava mais naquele pantanal que a minha vida se tornara. O pior é que estava gostando de ser um devasso. Devia estar compungido com o que fizera, mas senti apenas sono e dormi.
  Na noite seguinte, e na outra, e na outra, Tânia foi para meu cubículo. Fornicávamos em silêncio, prendendo a respiração.
  Então aconteceu. É sempre assim, nas tragédias, o mundo de­saba de repente.
Cheguei da Biblioteca e estavam todos reunidos na sala, com exceção do seu Cardoso, que ainda não voltara da viagem.
  Chegou o jovem canalha, disse Armando. E me deu um soco na boca, jogando-me ao chão.
Pia segurou Armando, que após o soco me dava um ponta­pé. Pára com isso, ela gritou.
  Nunca pensei que você fosse tão sujo assim, disse dona Adriana.
  Não sei do que se trata, isso tudo é um equívoco...
  Sabe sim. O buraco na parede. Eu entrei no seu quarto e vi o buraco que o senhor fez na parede. Essa indecência, na minha casa. Sabe quantos anos Pia tem? Ainda não fez dezessete anos.
  O senhor empacote as suas coisas e vá embora.
  Tânia não dizia uma palavra. O doutor Raimundo não dizia uma palavra.
  Entrei no cubículo, fiz a minha mala. Não tive coragem de olhar para ninguém. Desculpe, disse, quando passei perto de Pia. Eu estava morrendo de vergonha.
  Vai embora, moleque nojento, mas ainda vou te encontrar para terminar o serviço, disse Armando.
Peguei um ônibus para a estação rodoviária. Era o único lu­gar onde um desabrigado com uma mala podia se refugiar. Achei um banco, onde me sentei e fiquei até de manhã, pensando. Ar­mando, conforme prometera, quebrara os meus dentes, não to­dos, mas um deles, um incisivo, e eu passava a língua no dente quebrado enquanto pensava. Armando devia ter sabido dos meus encontros com Tânia e me denunciara para dona Adriana, que nun­ca entrava no meu cubículo e se entrasse não veria o buraco na parede, veria o quadro.
  Guardei a mala no depósito da rodoviária. Inconscientemen­te dirigi-me para a Biblioteca. Não consegui nenhum dos livros que pedi, estavam todos em estado precário, disse o atendente. Um mau sinal.
Quando saía da Biblioteca tive uma surpresa que me deixou paralisado. Pia subia as escadas. Veio ao meu encontro.
  Calculei que devia estar aqui. Preciso falar com você. Você me diz a verdade se eu te fizer uma pergunta?
  Digo.
  Afinal quem é que você espiava pelo buraco na parede?
  Como assim?
  Ouvi uma discussão do Armando com a Tânia em que ele di­zia que você espiava ela tomar banho. O Armando também dizia que você teve intimidades com a Tânia. Quem é que você espiava?
  Você. Mesmo sabendo que o que fiz é imperdoável, eu peço desculpas. Eu te amo.
  Você foi para a cama com aquela mulher?
  Não... Não fui.
  Por que demorou a responder?
  Eu não demorei a responder.
  Demorou sim.
  Eu não fui para a cama com a Tânia.
  O nome verdadeiro dela não é Tânia, é Deoclides. E ela nun­ca foi bailarina do Municipal. Por que você não reagiu quando Ar­mando bateu em você?
  Eu estava muito envergonhado. Obrigado por me defender naquele dia.
  Onde é que você está morando?
  Ainda estou procurando um lugar.
  Onde você vai agora?
  Eu ia andar um pouco.
  Quer ir ao cinema?
  Você não está aborrecida comigo?
  Se estivesse aborrecida eu te convidava para ir ao cinema?
  Fomos ao cinema. Sentamos rígidos, nem nossos cotovelos se tocavam.
  Por que você não disse que me amava?
  Não sei.
  Eu também te amo.
  Então senti a mão de Pia acariciando a parte mais secreta do meu corpo. Isso me surpreendeu mais do que o pedido que me fez em seguida.
  Sou virgem e quero perder minha virgindade com você. Mas você terá de fazer uma coisa para mim.
  Eu faço.
  Qualquer coisa?
  O que for.
  Jura que faz o que eu vou te pedir?
  Sim, juro.
  E que não me fará perguntas.
  Não faço perguntas, juro.
  Eu quero que você mate a minha mãe.
  Olhei, na penumbra do cinema, o seu perfil de camafeu.
  Esta chave é da casa da Nadja, no andar de baixo. Eles se mu­daram e a casa está vazia. Vou me encontrar lá com você esta noite.
  Pia levantou-se e foi embora.
  Aguardei a noite chegar, imaginando a maneira de matar do­na Adriana. Depois fui para a rua do Resende. De longe observei o sobrado. O que tinha que ser feito, tinha que ser feito. As esca­das rangeram quando subi na ponta dos pés, temeroso que alguém me visse. Abri com cuidado a porta do primeiro andar. Penetrei na casa vazia e fiquei em pé junto à porta entreaberta, no escuro, sentindo as batidas do meu coração.
  Ouvi sons de passos leves e furtivos descendo as escadas. Pia entrou. Vamos para os fundos, ela murmurou, segurando minha mão. Em meio às trevas tiramos nossas roupas, cobrimos com elas o chão e nos deitamos. Não tenha receio, seja bruto, ela disse.
  Não quero contar detalhes. Nossas roupas, que forravam o chão, se encheram de sangue, sangue que consagrava nosso amor, e era o grilhão do nosso pacto.
  Vestimo-nos em silêncio.
  A pílula já fez efeito e ela está dormindo. A Tânia foi viajar com o marido e o Armando chegou da rua bêbado. Vou deixar a porta aberta.
  Pia abraçou-me com força e sumiu no escuro, sem fazer ruído. Ela não havia mencionado o doutor Raimundo. Mas se ele es­tivesse acordado Pia me teria dito.
Esperei, esperei. Subi as escadas. Logo que entrei ouvi o som da televisão. Caminhei pelo corredor na ponta dos pés até a sala.
  O doutor Raimundo dormia, sentado na poltrona da sala. Deixei a televisão ligada. Se a desligasse, ele acordaria.
  A porta do quarto de dona Adriana estava aberta. No quarto havia duas camas. Numa delas, dona Adriana, com a luz do abajur acesa, dormia de barriga para cima, respirando pela boca. Da ou­tra cama Pia observava meus movimentos, os olhos negros arre­galados. Fui até ela. Vira o rosto para a parede, eu disse.
  Com cuidado levantei a cabeça de dona Adriana, retirei o tra­vesseiro, segurei-o com as duas mãos e comprimi-o sobre o seu rosto. O corpo privado de ar foi sacudido por violentas convul­sões, ela tentava se livrar da asfixia, debatia-se com energia ines­perada numa velha doente, feria com as unhas os meus braços. Tive que subir na cama e sentar sobre a sua barriga, para poder dominá-la. Demorou muito tempo até que dona Adriana deixasse de lutar. Depois, exausto, deitei meu corpo sobre o dela, sempre pressionando-lhe o rosto com o travesseiro.
  Molhado de suor, saí lentamente de cima do cadáver. Ajoelhei-me ao lado da cama de Pia. Você está bem?, sussurrei.
  Ela estava de costas e virou o rosto para mim. O camafeu.
  Estou bem. Pode ir. Vou te procurar depois, na Biblioteca, ela disse, e voltou a olhar para a parede.
  Agora estou aqui, no banco da estação rodoviária. Penso em Pia. Não penso no que vai acontecer, penso no que aconteceu e aconteceu tanta coisa que parece que não vai acontecer mais na­da. Espero a manhã chegar, para ir à Biblioteca. Botinas de botão.
Rubem Fonseca
Enviado por Germino da Terra em 17/02/2012
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