retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


o buraco na parede, de Rubem Fonseca (conto que dá título ao volume publicado pela Companhia das Letras — editora schwarcz ltda. —, 1995) — parte I
Nunca pensei que um dia me pediriam para matar uma pes­soa, mas isso aconteceu ontem. Até dois dias atrás eu alugava um cubículo num sobrado velho no centro da cidade, mas fui despe­jado de lá. Agora estou aqui na estação rodoviária, sentado num banco, fingindo que espero um ônibus.
  Meu cubículo era um canto da sala onde os inquilinos viam televisão, isolado por um tabique de madeira envernizada de pouco mais de dois metros de altura. O pé direito da sala devia ter mais de quatro metros; um espaço grande entre o tabique e o teto permitia a entrada de ar mas também tornava possível a alguém, trepado numa cadeira, me espiar dormindo na cama estreita. Eu tinha horror que me observassem dormindo. Ao deitar, quando sentia uma coceira no rosto, sinal de que o sono estava chegan­do, eu cobria a minha cabeça com o lençol.
  Na sala, o aparelho de televisão era ligado todas as noites. Mui­tas vezes eu me levantava de madrugada para acordar o doutor Raimundo, que ressonava na poltrona, a televisão acesa. Eu con­seguia ficar na cama lendo, e também era capaz de sonhar em meio aos ruídos que vinham da sala. Sonhava com botinas femininas de botão. Sonhava com essas botinas desde o dia em que lera num romance, ainda criança, quando morava na casa branca do alto da colina, a frase botinas de botão. E tinha sempre, ao lembrar essa frase, uma espécie de vivência da minha infância, uma recor­dação pungente que com certeza não era baseada numa imagem pois nunca vira uma única botina feminina de botão, nem mesmo em fotografia. E depois de adulto essa lembrança — que sugere também um lugar, eu sinto que botinas de botão são um lugar — aparece tão forte que me faz sentir um peso inefável em meu co­ração, a mesma tristeza fugaz que eu costumava sofrer quando ti­nha sete anos, antes de me mudar da casa branca. Às vezes tento fazer surgir essa emoção, como neste momento aqui na rodoviá­ria, mas ela não aparece quando eu quero. Entrego-me então à re­memoração dos acontecimentos que me colocaram na situação sinistra em que me encontro. Recordo tudo como se fosse uma peça de teatro na qual eu fosse um dos atores. Assim, sofro menos.
  Eu estava desempregado e ia ler na Biblioteca Nacional todos os dias. Seguia pela Mem de até o largo da Lapa e pegava a rua do Passeio. Eu podia descer pela Evaristo da Veiga, que desembocava na 13 de Maio ao lado do Teatro Municipal, mas preferia a rua do Passeio, que era mais movimentada, tinha mais gente para ver. Da rua do Passeio chegava à praça Mahatma Gandhi, e então praça Flo­riano, andava um pouco e lá estava a Biblioteca, o prédio mais boni­to da cidade. Ficava na Biblioteca o dia inteiro; tomava uma xícara de café-com-leite na lanchonete. À noite, no caminho de casa, comia um sanduíche, de pernil ou mortadela. Isso matava a minha fome.
  Dona Adriana, a mãe de Pia, alugava quartos para cavalheiros de fino trato em sua casa, um sobrado na rua do Resende, uma parte decadente da cidade. Eu morava no sobrado havia dois me­ses. Mais quatro hóspedes residiam na casa. O advogado de porta de xadrez aposentado, doutor Raimundo, ocupava o pequeno quarto da frente, que tinha uma sacada de ferro onde ele se posta­va ao entardecer para olhar o movimento na rua. Os quartos com janelas que abriam para um vão interno coberto por uma clara­boia eram habitados por Tânia e o marido José Cardoso, repre­sentante comercial, e por Armando, vendedor de uma fábrica de camisas de malha com mensagens impressas. Dona Adriana e a fi­lha Pia residiam no quarto da frente. O andar térreo era ocupado por una loja de ferragens. A porta da rua do sobrado abria para um pequeno vestíbulo onde estavam os medidores de consumo de luz e gás do prédio. Subia-se por uma escada de madeira ladea­da por dois corrimões periclitantes, passava-se pelo primeiro an­dar e depois uma escada mais estreita levava à porta do segundo piso, com um painel de vidro fosco. Por um corredor chegava-se à sala de jantar, depois ao banheiro e à cozinha, que os hóspedes podiam usar em horários predeterminados. As paredes do banheiro e da cozinha estavam em mau estado de conservação, precisando ser emboçadas e pintadas, mas dona Adriana dizia não ter dinhei­ro para isso. Havia ainda, nos fundos, uma pequena área aberta, onde os moradores quaravam roupa em chapas corrugadas de zin­co. Ali Tânia tomava banho de sol entre oito e nove horas da ma­nhã. Antes de ir para a Biblioteca eu ia espreitar Tânia no terraço. Ela tomava banho de sol de olhos fechados. Espiá-la assim, furti­vamente, me parecia uma coisa indigna.
  Agora, aqui sentado no banco da estação rodoviária, fico i­maginando quando foi que as coisas começaram a dar errado. Acho que foi no dia em que Tânia, deitada tomando banho de sol, abriu os olhos, me viu, e sentou-se na esteira. A cena foi assim:
  Eu estou procurando...
  Procurando o quê?
  O meu livro.
  Que livro? Você é muito bobo. Pensa que não sei que você vem todo dia me espiar aqui no terraço quando estou tomando meu banho medicinal de sol? Eu te vejo por entre as pestanas, pa­rado como um dois de paus, olhando para mim.
  Tenho que ir.
  A Biblioteca não vai fechar. Hoje nós vamos almoçar juntos, vou fazer para você um almoço gostoso e saudável. Te chamo quando estiver pronto. Vá para seu quarto ler.
  Tânia voltou a deitar-se na esteira. Suas pestanas eram longas e espessas. A boca estava pintada de batom vermelho.
  Lembro-me de todas as cenas, a fala, a movimentação das pes­soas. Fiquei no meu cubículo, com um livro na mão. Afinal Tânia bateu na minha porta.
  Demorei porque a cozinha estava ocupada por dona Adriana fritando costeletas de porco, depois não sabem por que batem as botas com infarto do miocárdio. Vamos almoçar no meu quarto. Anda, entra, está com medo? Não vou te morder. Deixa eu acender a vela, sempre acendo uma vela para comer, aprendi isso com um bailarino alemão que dançou comigo o pas de deux da Bela Adormecida. Tenho velas de todas as cores.
O quarto dela era grande, devia ser o maior da casa. Além da mesa redonda com duas cadeiras, tinha uma cama larga, um armá­rio de roupa, um cabide, uma penteadeira, uma cômoda e um pe­queno sofá. Tânia vestira uma saia muito curta, e os sapatos altos faziam suas pernas ficarem ainda mais compridas. Não está bonito este prato? Eu combino as cores, a cenoura vermelha, vamos chamar de vermelho, eu sei que cenoura é cor de cenoura, o verde-vibrante da alface, o verde-pálido do pepino, o roxo-escuro da berinjela, o amarelo da abóbora e o branco da soja, tudo isso não dá um con­junto harmonioso? Me deu um rápido beijo no rosto. Agora vamos comer, se isto é bom de ver é melhor ainda para comer.
  Foi a primeira vez em que senti saudades do meu sanduíche de mortadela, mas comi tudo aquilo como ela mandava, o mais difícil foi a soja.
  Lembre-se, a cenoura tem que ser comida inteira, você ape­nas lava e passa uma escova nela e depois come segurando na mão, assim. E Tânia deu dentadas barulhentas na cenoura. E eu dei den­tadas barulhentas na cenoura.
  Não está se sentindo leve? Ela sentou-se no sofá. Suas coxas musculosas apareceram por inteiro.
  Estava uma delícia, respondi.
  Você podia almoçar sempre comigo em vez de comer porca­rias na rua. Detesto almoçar sozinha e o Cardoso nunca almoça em casa.
  Estava uma delícia, repeti.
  E depois do almoço sempre descanso um pouco. Deito, mas não durmo, apenas fecho os olhos, os olhos gastam, você sabia? Temos que poupar os nossos olhos. Eu deito na cama e fecho os olhos.
  Deitou-se, de olhos fechados. O que você preferia? Ficar ce­go ou ficar surdo?, perguntou, de olhos fechados.
  Ficar surdo. Tenho que ir embora.
  Fazer o quê? Ela abriu os olhos.
  Tenho um encontro na Biblioteca.
  Alguma garota?
  Não. Não.
  Você tem mesmo que ir?
  Se eu tenho que ir? Tenho, vou encontrar um amigo que dis­se que vai me arranjar um emprego.
  Voltou a sentar-se no sofá. Um emprego de quê? Auxiliar de escrita? Quem é esse amigo? Você me disse que não tem amigos.
  Um conhecido. Tenho mesmo que ir. Estava uma delícia.
  Lembro de mim descendo apressado e confuso a Mem de Sá. Sem saber o que estava acontecendo e fazendo-me perguntas. Se deitasse ao seu lado na cama, como Tânia reagiria? Era isso o que ela queria? Que deitássemos juntos na cama? Ela era uma mulher casada, se o marido chegasse e nos visse eu merecia ser morto por ele. Depois de algum tempo na Biblioteca a minha angústia pas­sou. Fui para a seção de iconografia ver mapas, desenhos, pinturas.
  Passei o dia e parte da noite na Biblioteca. Depois sentei num banco da praça Marechal Floriano, contei meu dinheiro e vi que não dava para ir ao cinema. Eu tinha uma caderneta de poupança, mas o dinheiro estava acabando e eu tinha de economizar. A única coisa que podia fazer àquela hora sem ter que gastar dinheiro era ficar olhando as pessoas que passavam.
  Agora estou aqui, no banco da rodoviária, cercado de outros viajantes estremunhados segurando malas e embrulhos, novamente olhando as pessoas passarem e pensando na vida. Se eu não tivesse ido morar no sobrado de dona Adriana a minha vida seria outra? Mas fui morar lá porque quis e não saí de lá na hora certa porque não quis. E me apaixonei por Pia porque quis? Não sei responder a isso.
  Naquele dia fiquei até tarde na praça, olhando as pessoas. Fe­lizmente, quando voltei para casa, na sala de TV só estavam dona Adriana e o doutor Raimundo. Entrei no meu cubículo, enchi os ouvidos de algodão, cobri a cabeça com o lençol. Demorei muito tempo para dormir.
No dia seguinte fui ver Tânia tomando banho de sol. Na tra­gédia grega os personagens também agem assim, sentem que es­tão se enfiando numa voragem e continuam agindo do mesmo jei­to. Eu amava Pia e ia espiar Tânia tomar banho de sol. Armando estava sentado na esteira ao lado dela, de terno e gravata. Falavam baixinho como se estivessem trocando segredos. E também riam, e se tocavam com as mãos no meio das risadas. Em certo momen­to, quando Armando dizia algo ainda mais secreto, pois sua boca roçava a orelha de Tânia, ele olhou para os lados, certamente pa­ra certificar-se de que ninguém presenciava aquela cena, e me viu, e disse em voz alta, aproxime-se dos bons.
  Estou saindo, só vim aqui fora ver como está o tempo.
  O tempo está bom, disse Tânia, aquilo ali é o sol.
  Eu também estou indo, disse Armando.
  Me alcançou no corredor.
  Você está infeliz?
  Estou com cara de infeliz?
  Está.
  Minha cara é assim mesmo.
  Tirou uma moeda de ouro do bolso. Está vendo esta moeda? Toma. Pega ela.
  Peguei.
  Sabe que moeda é esta?
  Li: Georgius v D.G. Britt:Rex F.D.Ind:Imp. Do outro lado ape­nas a efígie de São Jorge a cavalo empunhando uma espada, na cabeça um elmo do qual se desprendia um tecido esvoaçante. E o dragão, evidentemente.
Tenho duas. Roubei do meu pai.
  Desceu comigo as escadas. Sim, eu estava infeliz, mas não ia fazer confidências. Não faço confidências, não tenho necessida­de disso, guardo as coisas comigo. Mas Armando, naquele dia, fez uma grande cena, com uma longa fala. Ouço a sua voz empostada como se ele estivesse aqui ao meu lado na rodoviária.
  Você vai para a Biblioteca? Também estou indo para lá. Vou lhe contar uma coisa ligada a esta moeda que nunca contei para ninguém.
  Enquanto caminhávamos pela rua, ele destrinçou seu enre­do. O pai dele, um professor de português que se tornara pastor protestante, obrigava-o a ler a Bíblia diariamente e a estudar gra­mática. Essas exigências o fizeram fugir de casa quando criança. Antes de fugir disse à mãe que estava roubando as libras de ouro que o pai tinha numa gaveta. Ela o perdoara. As mães perdoam os filhos, os filhos é que não perdoam as mães. Não que meu cri­me fosse muito grave, continuou Armando, um sacerdote não deve manter escondidas, entre seus livros sagrados, libras esterlinas de ouro, mesmo que tenha sido antes um professor de gramática. Escrevi uma carta pedindo perdão a ele. Durante algum tempo ele acreditara que eu também me tornaria pastor e o substituiria em seu ministério. Eu o decepcionei duplamente.
  Mas meu pai também me decepcionou — prosseguiu Arman­do —, além de ter as libras de ouro escondidas, ele bebia sem que minha mãe e o seu rebanho soubessem. Trancava-se diariamente num quarto sem uso que seria da empregada que não tínhamos, dizendo que ia meditar e estudar os textos sagrados. Minha mãe supunha que ele estava estudando a Bíblia e eu supunha que ele estava estudando a Bíblia e o rebanho supunha que ele estava es­tudando a Bíblia, mas na verdade ele estava se embebedando. Embebedava-se todos os dias a partir das cinco horas da tarde e fingia que meditava e estudava a Bíblia até de madrugada, quando a sua embriaguez passava. Quando contei para minha mãe que havia roubado as libras esterlinas tive vontade de dizer-lhe que meu pai não lia a Bíblia diariamente, que ele apenas se escondia e se embriagava, mas não disse. Coitado. Talvez os prazeres de­vam ser gozados dessa maneira secreta e para os homens de Deus a hipocrisia seja um imperativo. Que sei eu? De qualquer forma as suas prédicas eram eloquentes e bem articuladas e deixavam os fiéis atentos e motivados. E não posso esquecer onde esses fiéis o ouviam. Na praça pública. Meu pai nem mesmo tinha uma igre­ja para fazer seus sermões, perorava nessas praças tristes e miserá­veis dos subúrbios, para ouvintes atentos, é verdade, mas apenas meia dúzia de gatos pingados. Certa ocasião eu o acompanhei. Ele chegou na praça, colocou no chão o pequeno alto-falante que fa­zia a sua bonita voz ficar roufenha e aguda, e começou a falar de Cristo, pecado e redenção. E nesse dia apenas três, três pessoas ficaram até o fim ouvindo o que meu pai tinha a dizer, mas nem por um momento ele perdeu a sua eloquência, e o pior e que não creio que daqueles três pobres-diabos um só tenha se convertido, pois todos eram crentes, meu pai havia jogado fora seu latinó­rio. Nunca contei isso para ninguém. Vamos tomar um cafezinho.
  Tomamos café.
  Sabe por que sou um fracasso?
  Você é um fracasso?
  Sou. E você também. Naquela casa somos todos uns fracassa­dos. Mas eu sei que sou um fracasso, podia ser professor da faculdade, podia ser advogado, não de porta de xadrez como o Rai­mundo, mas estou vendendo camisas com slogans imbecis, sou um fracasso e estou cagando pra isso. Você é um fracassado e so­fre. O que você acha da Tânia?
  É simpática. O marido é simpático. Todos são simpáticos lá em casa.
  Que resposta falsa.
  Obrigado pelo cafezinho, tenho que correr, estou atrasado.
  Espera, deixa eu pagar.
  Obrigado. Estou com pressa.
  Eu não gostava daquele sujeito. Não gostava das coisas que estavam acontecendo.
  Andei pelas ruas. Fui até a porta da Biblioteca, mas não en­trei. Voltei para casa. Tânia despedia-se do marido no corredor. Afinal, o que me atraía nela? Quando vi Tânia pela primeira vez ela estava sentada numa poltrona assistindo a televisão. Na verda­de notei principalmente seus joelhos. Ela vestia uma saia larga de tecido fino e, absorta, enfiara a mão entre as pernas. Lembro da cena: o corpo dela curvado para a frente, as mãos metidas entre os joelhos, num movimento que parecia de espontâneo abando­no, mas que era estudado, sei agora, fazia parte do ato que ela re­presentava. Fui atraído pelas articulações de um par de pernas. Além de azarado, eu era uma testemunha inepta.
  Seu Cardoso, o marido, carregava uma enorme mala de amos­tras e uma outra menor de roupas. Ia viajar. Tânia deu um beijo nele dizendo, juízo, hein.
Peguei uma das malas. Deixa que eu ajudo. Sentia-me em dé­bito com seu Cardoso por desejar os joelhos da mulher dele.
  Desci as escadas, carregando a mala.
  Muito obrigado, disse seu Cardoso quando chegamos à rua, você é a pessoa mais bem-educada desta casa. Vou pegar um táxi para a rodoviária.
Esperei o táxi chegar. Quando voltei, Tânia estava em pé, no corredor, com duas cenouras cruas na mão.
  Quer uma cenoura?
  Não, obrigado.
  Deu uma dentada barulhenta na cenoura. Hoje à noite tem uma festa no Clube dos Democráticos. Quer ir comigo? Você precisa ver pessoas, muita leitura faz mal. Já foi a um baile? Outra dentada.
  Um baile? Sim, fui a um baile.
  Foi nada, você não me engana. Está resolvido. Onze horas.
  Fiquei deitado no meu cubículo. Alguma coisa de grave estava acontecendo comigo.
  Tânia bateu na porta. Tinha pintado os cabelos de vermelho.
  Que tal?
  O quê?
  Meu cabelo.
  Respondi que o cabelo estava bom, mas não tive coragem de olhar para sua cabeça muito tempo.
  Não quero que diga que está bom. Diga que está bonito.
  Está bonito.
  Estou bonita?
  A senhora está bonita.
  De vez em quando gosto de ser uma ruiva. Sempre que meu marido viaja, pinto os cabelos. Pintei as unhas dos pés e das mãos. Eu me sinto bem, quando faço as unhas dos pés. As unhas das mãos também, porém menos.
Tirou o sapato. Exibiu um pé de dedos retorcidos cheios de joanetes raspados. Não está lindo?
  Desviei os olhos. Sim.
  Segurando os sapatos na mão, deu alguns passos de dança.
  O Clube dos Democráticos ficava perto da nossa casa, basta­va caminhar um pouco pela Gomes Freire para chegar à rua Ria­chuelo. O baile estava cheio de gente pulando no salão. Ainda fal­tava muito para o Carnaval mas aquele era um clube carnavalesco e as pessoas pulavam e cantavam, principalmente as mulheres. Nunca tinha ido a um baile na minha vida. Senti pena das mulhe­res, suadas, pulando e saracoteando e gritando. Os homens causaram-me algum desprezo.
  Que cara é essa?
  Isto tudo me parece um pouco vulgar.
  Se é vulgar para você que era auxiliar de escrita numa firma de autopeças, imagina para mim que fui primeira bailarina do Municipal e dancei O lago dos cisnes para o príncipe de Gales quando ele veio ao Brasil. Eu te contei o dia em que dancei para o príncipe de Gales?
  Acho que sim.
  Foi emocionante.
  Abraçou-me, espetou-me os peitos.
  Vamos dançar.
  Não sei.
  Não tem nada que saber. É só pular.
  Não sei cantar a música.
  Apertou-me com mais força, enfiou-me por entre as pernas uma das suas coxas.
  Deixa de ser esquisito.
  Livrei-me do abraço. Estava perturbado, não sabia bem o que sentia por ela.
  Então vamos tomar uma cerveja.
  Não bebo.
  Cerveja é a mesma coisa que água.
  Quero ir embora. A senhora fica. Se quiser venho apanhá-la. Só dizer a hora.
  Não precisa. Bobo. E pára de me chamar de senhora.
  Tânia fez uma pirueta desajeitada de bailarina clássica e em­barafustou pelo salão adentro a cantar e a pular.
  Não me lembro de mais nada do baile. Recordo uma cena, depois do baile, que, aparentemente, não tem o menor interesse para o que estou relatando: cheguei em casa e encontrei Nadja, a moça que morava no primeiro andar, se despedindo de uns ami­gos. Disse-me que seu pai comprara um apartamento no bairro de Fátima e que iam se mudar nos próximos dias, as obras do no­vo apartamento, reformas da cozinha e do banheiro, estavam quase concluídas. O bairro de Fátima fazia parte da vizinhança mas era considerado uma área mais nobre, pois tinha alguns prédios de apartamentos novos.
  Subi o último lance das escadas. Dona Adriana e o doutor Rai­mundo viam televisão. Essa novela é uma porcaria, vou tomar minha pílula e deitar, ouvi dona Adriana dizer quando entrei no cubículo. Ela tomava um barbitúrico todas as noites e acordava tarde. Quanto aos ruídos, as novelas eram melhores do que os pro­gramas de auditório, esses incomodavam muito mais com gritos em coro, mas nas novelas as pessoas gritavam sozinhas, ou no máximo umas com as outras. Fiquei a olhar o quadro com uma pai­sagem, dependurado na parede. Uma reprodução velha, feia, mos­trando um barco na areia tendo ao lado um sujeito fantasiado de pescador. Eu detestava qualquer paisagem, mar, montanha, flo­restas. Diziam que os mineiros eram atraídos pelo Rio por causa do mar, mas eu estava na cidade havia bastante tempo e ainda não fora ver o mar nem pretendia fazer disso uma ocasião especial. Eu precisava arranjar uma outra coisa para colocar na parede. Con­forme os ruídos da sala, a televisão devia estar mostrando um filme.
Rubem Fonseca
Enviado por Germino da Terra em 17/02/2012
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