retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


Os espelhos deveriam pensar duas vezes antes de refletir
Jean Cocteau

 

persona
— ...
  — Hein? Ah, sim, é... Mas antes deix’eu me aprumar. É que, além do quê, tô triste. Sem entender picas dessa rotação acelerada, tomo outra porrada! Fui à veterinária e ela fala sobre a biópsia do tumor da Alfa: câncer. Um tal de adenocarcinoma... Emocionei. A médica disse que nada tenho a fazer. “Quimioterapia é custoso e debilitaria sua sobrevida. Deixe-a quieta, ela tá bem e quem sabe ainda ficamos com a sua companhia por algum tempo...”. “Quanto?”, pergunto. “A média de vida dum labrador é de doze anos, ela tá com oito, se tudo for indo...”.
  Bem, não, leio quase nada. Outro dia, descendo ao Rio, só outro dia é que retomo E se Obama fosse africano?, os ensaios de Mia Couto que mês passado você me presenteou.
  É, quase nada. Pelo motivo que sabe, de ele não me deixar descansar, rumino e do livro não dou cabo; também, por que alterno a sua leitura com a de Primeiras estórias do Guimarães Rosa. Neste eu dei com um conto, O espelho, e ali me detive. O narrador fala do plano liso do objeto do título, e, além do reflexo dum indivíduo com RG e CPF, de viés vê o da pessoa — humana. Ampliando, com ares de antropólogo a um anônimo descreve os tantos de pele ali habitadas, sua vastidão — a imagem, assim, de variados efeitos, é paradoxo sem mais o fio da meada...
  Bem, eu dizia, quando as curvas da RJ 125 se decompõem, quando o ônibus adentra a quase retilínea Dutra, aí dando pr’eu ler, em O planeta das peúgas rotas abro o moçambicano na intervenção que fez no Encontro sobre Pessoa Humana, na abertura da Conferência no Millenium bim, Maputo, 2008. Desse cara eu nunca havia lido ensaio algum, apenas ficção e, mal, uns textos livres. Ele expõe, dissolve seu olhar duma maneira bem incitante! Dá a pensar...
  Atento ao q’ele diz, penso resolutivo, sem nunca deslembrar do retrospectivo, eu penso, agora, após puxar a descarga e do muito — não tudo — descer à fossa, aguardando o ar refazer-se do bodum, com a ajuda duma profissional psi, auxiliado, eu penso de em mim averiguar o efeito do feito.
  Hoje, indo à consulta, intuí o evidente. O que mais eu sinto é a perda da espontânea autenticidade em creditar noutro, visto que, em meu minguado relacionamento, era a essência. Assim, perdi a graça dum prosear, de ouvir música, assistir filmes, ler... Escrevo coisas tortas, amargurosas. A essas manifestações eu relaciono gente, contato, e aí... A princípio e por princípio, eu acreditava — sem o maniqueísmo “bom” e “mal” —, inicialmente eu tinha o outro como do bem, até que...
  Hoje mesmo, vê, em Miguel, depois de tanto tempo eu cruzei com uma das filhas daquela, que, a princípio, num tem nada a ver com toda essa pendenga. Nos vimos e demo-nos dois beijinhos hipócritas e seguimos, cada qual pro seu canto. Fiz o q’eu tinha a fazer e, outra vez à rua, cruzamo-nos, agora com distantes sorrisos amarelados. Quando a vi, ainda ao longe, me coço pra não dizer o que sei. Titubeei em lhe falar, sem maquilagem. Certamente que da genitora tem versão perfumosa, até tendo a minha “esquisitice” como culposa da tentativa frustrante d’eu e daquela reatarmos.
  A ela eu diria que uma pessoa é única pareada a tantas, são várias dentro duma, variados eus num único legítimo eu, poraí — tudo ali parelho e embaralhado, bonito de se ver. É sim, é isso, assim a refiro, a pessoa. Por outra, eu diria, uma persona é diverso dispersivo, é variadas máscaras convenientes criando espaço alheado da pessoa despessoalizada, e daí atua seus eus, que, transmudando-se, se compõe em não-eu. É sim, é isso, assim a refiro, a persona.
  Fiz-me entender, pois sim? Não?! É, laçar camaleão é complicado pra daná. Sua pele aderente ao meio rasteja cópias de matizes variados onde aonde à superfície deambula.
  Ela, a mãe daquela, ela outro dia me disse por e-mail, inda que, a pisa-mansinho diz que já falou tudo e nada mais tem a dizer. Disse o quê?! Num sofismar capcioso mete os pés pelas mãos e, se não sou eu, o alvo, eu a apontar o desnexo de seu letramento, ela ficaria convicta de ter dito bonito... Ah, mas aí cai em si e, de vez, se cala. Carismática, quaisquer migalhas jogadas aos baba-ovos eles engolem; eu, hoje, não, arg, regurgito. Inda assim eu gostaria de escutá-la, ao vivo.
  Pra quê? Talvez, num sei... talvez pra, à última vez, pra dizer adeus. Só!

 
Germino da Terra
Enviado por Germino da Terra em 26/01/2012
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