retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


é isso, nada mais que isso, se fosse só isso

“... e em Miguel encontro uma amiga, a Celinha. Conversamos um tanto e zarpo. Passando por Paty a caminho do Paiol Velho, relutei e entrei no bairro Lameirão. Eu fora convidado a ir num bar assistir o tal de Paulinho Traíra tocar. Sentei-me ao balcão do Magia & Carinho onde estavam dois conhecidos, o Manco e a Anti-Cabeça. Devido à hora — quase meia-noite —, lá somente estavam os dois e numa mesa mais três junto ao cara que tocaria, ou tocou, nem sei. Trelendo com a Anti, da mesa percebo um aceno e um sorriso. Não reconhecendo, baixinho pergunto ‘Quem é a...’. ‘Ora, é ela, a mulher de quem em Abrolhos eu te falei e, no dia que você me deu um bolo, em março, qual cupido às três da madruga a levei em seu sítio... Lembra, é a S. M.!’. Eu: ‘Ah, sim, é, lembro. E aí, me achego a ela?...’. ‘Claro, vá sim, anda!’.
  “Conversamos sobre Mario Quintana — a esperança é um urubu pintado de verde e eles passarão... eu passarinho —, embora àquela época ainda paquerasse ficção e poema, eu lia mais ensaios... coisas assim. Bem, combinamos de, no dia seguinte, de irmos ao Rio de Janeiro, à Bienal do Livro.
  “Como naquela cidade eu não teria pouso, ela me oferece o seu apartamento pra pernoitarmos.
  “Dia seguinte, quinze pras dez, na minha Marajó caminho do Paiol Velho à Estância Aleluia e dali, em seu Scort preto, zarpamos ao evento.

Lá perambulamos e S. compra um punhado de livros; eu, um, o recém lançado O buraco na parede, oito contos de Rubem Fonseca. Era meado de agosto, 1995.
  “Cansados da viagem e de batermos perna entre estandes, capinamos. Saindo do Riocentro a caminho do Andaraí, onde mantinha seu covil, ela me convida a beber chope na pracinha do Alto da Tijuca. Papeando, despercebo a inquirição: quanto ganho com apicultura, se depois de separado eu transei, com quem... Respondo — ela sabe manejar perguntas, fazendo parecer despretensiosa trela, me suga.
  “No fim da tarde, despenca uma tormenta e que adentra a noite. Alaga a praça. S. então argumenta que à sua furna teríamos de transpor favela, paus na rua... e sugere passarmos a noite num motel, bem ali ao pé da subida ao Alto, saindo da Barra. Com pouca bufunfa, sem graça contraponho encararmos as sequelas do dilúvio.
  “Em meio aos desvalidos e galhos à rua, fomos.

Banhamo-nos e à sala conversamos. Falamos sobre os livros comprados e bababá. Quando o cansaço impõe repouso, ela pergunta: ‘Você prefere dormir no quarto das crianças ou no meu, na minha cama, comigo?’. E eu: ‘Bem... entende... Pra não te dar trabalho de arrumar cama pra mim, durmo no seu, na sua.’.
  “Na estante da alcova eu pego um livro de poemas do Agostinho Neto; ela um dos que acabara de comprar. Deitados lado a lado, ‘líamos’... quando de minhas mãos ela usurpa o angolano e me sapeca um beijo na boca. Eu, que nem pensava naquilo, retribuí.
  “Trepamos, ué.

A você, a quem conto isso, conto assim, sem porque nem porquê por que foi assim que aconteceu o início de nós dois nos entrelaçarmos por dezesseis anos. Por dezesseis deu-se assim — ‘paixão à primeira vista’. De minha parte, nem tanto. Embora aparentemente tivéssemos os dois ingredientes fundamentais, conversação & tesão, relutei — o primeiro, de pronto degustei; já o segundo, a princípio o acho meio acre. Ela persistiu, foi indo, indo — embora o exagero de desodorante e de perfume me perturbasse — foi até que a mim dulcificou-se. Acabou que tomei gosto.  
  “Claro, nossa relação nunca foi um mar de rosas, longe disso — tivemos desavenças comuns às idiossincrasias de cada um e tudo mais, mas... Mas pensei que assim, como com qualquer par, ali se estancariam e a levaríamos...”
  “Levei até quando, fortuitamente, descortino...
  “— Você já contou isso...
  “—... É, mas foi você quem me perguntou, caramba!...
  “— Perguntei como começaram, só...
  “—... Me deixa seguir! Por acaso, sem nem querer eu a desmascaro: deixo a Alfa na veterinária pra operar um tumor numa das mamas e vou à casa da dotôra S.. A aguardando procuro música no computador e dou com bilhetes dela ao ‘Queridíssimo’ B.. Surpreendido, os li; idiotizado, reli — aparvalhado os copio no meu pendravi. Emputeci!
  “E outra: depois disso, ajuntando pedrinhas eu a desvelo com o Computa, o do pau marrom...
  “— Já contou...
  “—... Sei, hoje suponho que haja paus de variadas cores... Com-ple-ta-men-te — bordão q’ela tanto gosta. Na xereca da vadia já adentrou desde as do arco-íris, cores prediletas do primeiro marido... na beirada daquela cloaca urubu fica só espreitando oportunidade...
  “— Olha, você já falou tanto desses bilhetes que tô curiosa pra ler...
  “— Taí no computador. Vem cá q’eu os abro procê. Lê q’eu te aguardo ao alpendre.

“— Puta merda! Tu tem motivos pra ficar assim, caramba. Porra, e com fonte vermelha — parece coisa de adolescente babaca ou de sirigaita das mais ordinárias! E, porra, pra quem entre seus pares tem fama de literária e escambau, ela escreve mal pra caralho! Além de erros banais de português, ela não conecta cu com bunda! Fechando a cínica ainda debocha de você, diz que ‘volto para o meu amor...’, mas o cara, o Queridíssimo, ele é eterno — que filha da puta! No começo, ri de você e dum que entendi ser o pai dos filhos dela, é isso?!
  “— É, é ele, o outro corno.
  “— Olha, profissionalmente eu tô acostumada a ler textos truncados, dúbios etc., mas esses não deixam dúvida: antes de você, quando casada, era amante do cara; quando contigo, continuou amante; e, pelo que diz, ela sempre será, independente de com quem ela ou ele estejam...
  “— A S. tem é gogó carismático... Ah, isso tem de sobra. Escrevendo, nunca me enganou! Até, sobre estes bilhetes, fiquei na dúvida se era a deficiência em se comunicar por escrito... Mas não: em sua casa eu os li duas vezes, aqui duas. Eu sei ler, por mais mal escrito que a coisa esteja!
  “17 de dezembro — exatamente depois de amanhã! —, faz mês que sei d’eu ser, por ininterruptos dezesseis anos, corno.

Eu a referenciava às ficções literárias e fílmicas, à música, ao que fosse; sentia-nos escoando e desaguando à vida... De tudo lha participava. Pra sairmos da mesmice, ansiava surpreendências...
 “— A vigarista bem que te surpreendeu, hein...
 “—... Sem querer valorar o que me acontece, não conheço, nem em ficção, alguém tão podre quanto ela! Arg, que nojo! Hoje, se cara a cara eu a vir, na fuça dou-lhe um tabefe ou uma cusparada...
  “— Vocês dois, depois disso tudo, vocês nunca estiveram frente a frente, assim, pra acarear, ela nem se prontificou a esclarecer coisa alguma?
  “— E tem lá o que esclarecer!
  “— Ó, de qualquer forma, como advogada-promotora eu a penalizo com uma cusparada. Apenas.
  “— Porra, e nós estamos num tribunal...
  “— A ‘Maria da Penha’ favorece demais as mulheres. Nem meu patrão, que é bem influente e tudo, nem ele conseguiria te tirar da cana. Mino, eu só não entendo como você nunca percebeu nada. Eu que não moro mais aqui há tempos, só vez e outra que venho a trabalho, e agora pra estar contigo, sempre soube de coisa à beça. É abrir os olhos e os ouvidos, cara. Mas, vem cá, tenta relaxar. Menino, aquela cadela não merece o seu tempo...
  “— Cadela, não, cão é que não merece essa comparação, né, Alfa?! Olha, desconfiar desconfiar, nunca desconfiei não. Tinha vez q’eu percebia qualquer coisa estranha — percebia ela se insinuando, mas achava que era maluquice minha e relevava, achava q’ela apenas queria ser desejada e não iria às vias de fato; quanto engano! Eu não poderia supor, longe disso, tamanha calhordice! E a velhaca ainda usa o meu nome como seu ‘dependente’ pra descontar no imposto de renda...
  “— O quê?! Ah, eu quero saber sobre isso. Lá no escritório tem um departamento que lida só com essas coisas...
  “— É... Num sei se devo me alongar. Vê, acho que você, Florinda, com isso visualiza o impasse. Não, não são apenas um dois episódios — nesse ar insufla um tremendo bodum.
  “— Ah!, agora já sei o que é ‘bodum’. Outro dia você me disse...
  “— É isso, nada mais que isso, se fosse só isso.”.
Germino

 
Germino da Terra
Enviado por Germino da Terra em 17/12/2011
Alterado em 05/01/2012
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