retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


o dono do cão do homem, de Mia Couto, em O fio das missangas

Conto-vos como fui traído não pela minha amada, mas pelo meu cão. Deixado assim sem palavra, sem consolo. Devia haver um hotel para os donos de cães abandonados pelos bichos. Com ligas de amigos e associações de protecção e senhoras benfazejas, ajustando consciência em leilões de caridade. Não se trata de concluir sobre a geral ingratidão canina. Apenas um aviso aos outros dedicados e fiéis donos de bichos.
 Sou um qualquer da vulgar raça humana, sem comprovado pedigree e, se tiver cabimento em jornal, será nas páginas de anúncios desclassificados. Já o meu cão, ao contrário, é de apurada raça, classe comprovada em certificado de nascença. O bicho é bastante congénito, cheio de hereditariedade. Retriever, filho de retriever, neto de bisneto. Na pura linha dos ancestrais, como os reis em descendência genealógica. Mais caricato é o nome com que já vinha baptizado. Esse nome, de tão humano, quase me humilha: Bonifácio. Nome de bicho? Vou ali e não venho.
  Aos fins da tarde, eu o levava a passear. Isto é: ele me arrastava na trela. Bonifácio é que escolhia os atalhos, as paragens, a velocidade. E houve vezes que, para não dar inconveniências, eu me rebaixei a ponto de lhe recolher o fedorento coco. Prestei tal deferência aos meus próprios filhos? Depois de toda esta mordomia, as pessoas atentavam apenas nele:
  — Belo exemplar, lindo bicho — diziam.
 Quando me notavam era por acidente e acréscimo. Eu, humildemente eu, na outra extremidade da trela. Eu, o atrelado, de simples raça humana, sem prova de pureza. O meu cão, senhor e dono, estava acima dos verbos animais. Não cheirava: aspirava os sofisticados odores nas árvores. Não urinava. Se aliviava com dignidade, mais a fio de aprumo. E se sujava a rua, não era ele o imundo: as vergonhas eram-me endereçadas a mim e só a mim.
  A minha disposição ia agravando à medida dessas injustiças a ponto de eu já rosnar quando atrelava o Bonifácio. Essa contrariedade devia traduzir-se em meu rosto quando, certa vez, me perguntaram:
  — Morde?
 Respondi que não, estivessem à vontade e se aproximassem do bicho.
  — Não me referia ao cão, mas a si.
  Foi o primeiro alerta. Me assaltou o receio: um dia me obrigariam a usar açaimo. E apresentar certidão de vacina.
  Passei a evitar sair com o bicho. Apenas quando a cidade se desabitava, e já nem os nocturnos uivos ecoavam pelos becos, é que eu ousava passear o Bonifácio. Pois foi numa dessas vezes que ele, obediente à sua natureza canina, desfechou umas tantas dentadas num gato. Aquilo deu alarido e pedidos de responsabilidade. E foi a mim que se dirigiram, nervosos:
  — Está vacinado?
  — Quem, eu? — inquiri, já desvalido.
  Não houve mais réplica, nem tira-teimas. Ser dono de gato tem maiores vantagens: a pessoa se convence que ou o bicho é virtual ou existe apenas em horas próprias. Mas, dentro de mim, não descacimbava a dúvida: desconfiavam que tivesse sido eu a morder? Eu já estava perdido, inválido para direitos humanos. Como se podia suspeitar que, entre eu e o Bonifácio, seria eu o mordedor? Bem sei que a boca humana alberga os ditos dentes caninos. E no focinho de Bonifácio morava um sorriso de imaculada inocência.
  Para fecho do caso do felino, tive que acarretar todas as culpas e indenizações. E Bonifácio, em alegre displicência, pronto para outros ataques a gatos inocentes e civis. Aquilo foi o transbordar. O melhor amigo do cão é o homem? Pois eu, por amor de mim, decidi fugir de casa, deixar para trás tudo, vizinhos, amigos, os gastos e os ganhos de uma vida inteira. E nem me dei mal, tal era o alívio de não ter que me manter doméstico e domesticado. Feliz, me alojei em toca bruta, numa arrecadação vaga no jardim público. Desfrutando autêntica vida de cão. Ali me deitavam uns restos. Às vezes, com mais sorte, uns doggy-bags. Saudoso da minha pessoal existência de pessoa? É que pensar já nem era verbo para mim. Homem que ladra não morde, eu ladrava e a caravana passava.
  Até que uma destas tardes, meu cão, o tal de Bonifácio, surgiu no horizonte do relvado. Vinha-se arrastando pelo parque, tristonho como um Outono. Quando me viu, a cauda quase se lhe desatou, em violentas pendulações. Correu em minha direcção e, saltitonto, me lambuzou. Ele parecia tão contente que, por momentos, meu coração vacilou e meus olhos se inundaram. Ao chegar-se, mais próximo, vi que trazia uma trela na boca. Agitou-a como que sugerindo para eu o conduzir, uma vez mais, pelos cheirosos caminhos.
  — Oh, como é esperto! — comentaram os presentes, comovidos.
 — Fui eu que o ensinei — comentei, todo ufano.
 — Referíamo-nos a si, meu caro.
 Foi o culminar, a gota transbordante. Nem me faltava falar, era o que eu deveria ter acrescido. Mas não falei, nem ladrei. E é sem fala que deixo o meu lamentoso destino. Só a última pergunta: haverá um concurso para homens adestrados? Não me respondam a mim. Quem quer saber é o Bonifácio, meu antigo dono e senhor. É isso que eu leio em seus olhos sempre que ele passa, alto e altivo, pelo parque onde eu vou trocando pulgas com outros canídeos, meus colegas de infortúnio.
 
Mia Couto
Enviado por Germino da Terra em 05/12/2011
Alterado em 05/12/2011
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