retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


Eu gostaria de compartir com demais o lançamento da reedição das obras de Caio Prado Jr.. Desde que me entendo por gente este heterodoxo apreendedor da evolução tupiniquim faz a minha cabeça. Em meados da década de 1970, com A revolução brasileira me iniciei, depois veio A questão agrária no Brasil e fui indo...; apenas regateio suas investidas em Filosofia (Dialética do conhecimento). Afora a teoria em si, o que me encantou foi a abordagem sem teoricismo algum. Pra ir-se a ele, adiante dos mais de dez livros que publicou, indico História e ideal — ensaios sobre Caio Prado Júnior, organizado por Maria Angela D’Incao.
  Caio Prado Jr. e Paulo Freire são, pra mim, emblemas do pensamento brasileiro. Este caminhou mais adiante da Pedagogia: ainda àquela época, à sua maneira destrinchou a então embrionária sociedade mundializante. Ambos uniram o pensar à ação — práxis —, não só interpretaram, mas transformaram!
  Além dos bambambãs citados na elegante resenha abaixo, e que se miram em sua “visão totalizante da problemática brasileira” (história, economia, filosofia, sociologia e geografia), lembro de Florestan Fernandes — embora doutra área, mas de ideia semelhada —, um dos que trouxeram à ativa o comportamento de classes e de camadas sociais; outros três — também doutro campo, a Geografia — são Manoel Correa de Andrade, Milton Santos e Azib Nacib Ab’Sáber.
 
Germino da Terra

a gênese e o legado da obra de Caio Prado Jr.
o clássico “Formação do Brasil contemporâneo” inicia projeto de reedição de um dos principais pensadores do país
por Francisco Carlos Teixeira da Silva*,
em Prosa & Verso d’O Globo, 12 de novembro
 
A Companhia das Letras está começando a reedi­tar algumas das obras do historiador, geógrafo, escritor, político e editor Caio Prado Jr., títulos fundamentais para se compreender o país. O primeiro livro, que acaba de chegar às livrarias, é o clássico “Formação do Brasil contempo­râneo”, de 1942. Para entender­mos bem o papel de Caio Prado (1907-1990) na formação do pensamento brasileiro e a rele­vância de sua obra, devemos — além da leitura atenta da pró­pria obra nos ater com aten­ção ao valioso bônus oferecido pela edição atual: a entrevista com Fernando Novais, profes­sor emérito da USP, que encerra a edição, ao lado de uma nota biográfica de Rubens Recúpero. Todos os livros terão entrevistas de interlocutores de Caio Prado Jr. e fotografias feitas pe­lo próprio autor.
  Novais esclarece a gênese do pensamento de Caio Prado e, mais importante ainda, seu im­pacto sobre duas gerações de historiadores brasileiros. O próprio Novais, com sua obra seminal sobre a “estrutura e a dinâmica do antigo sistema co­lonial” no Brasil; Mafalda Ze­mella, com seus estudos sobre a formação do mercado interno no Brasil; ou a importante obra de Celso Furtado, que relaciona a dinâmica interna da econo­mia brasileira com as flutua­ções e os ciclos do capitalismo, são um diálogo aberto com a obra de Caio Prado.
  Mas isso não é tudo. A obra de Mafalda Zemella abriu uma larga avenida que trilharam de­zenas de jovens historiadores guiados por Maria Yedda Li­nhares, enquanto a obra de Celso Furtado formou uma ge­ração inteira de historiadores e economistas, que teriam uma junção reformista e transfor­madora para o Brasil via Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe). Aí, e no calor dos debates sobre “desenvolvimento e subdesen­volvimento”, autores como Fernando Henrique Cardoso abriram novos caminhos — ainda a partir do pensamento de Caio Prado —, originando o diagnóstico do atraso latino-americano embutido na cha­mada teoria da dependência. Só tal irradiação demonstra a capacidade geradora das inter­pretações de Caio Prado.

Críticas à visão totalizante e filiação ao marxismo
O diagnóstico original de Caio Prado sobre o sentido capitalis­ta da colonização do Brasil, sua dependência e sua imensa desi­gualdade social historicamente estabelecida entre o povo vasto, mestiço e negro, pobre e uma elite próspera e insensível (onde se lê a presença de pen­sadores como Oliveira Vianna e Gilberto Freyre) assentou as li­nhas para um amplo debate so­bre a necessidade incontornável das mudanças estruturais ne­cessárias à sociedade brasileira. Tal debate foi intenso entre 1959 e 1969, até a noite do silêncio abater-se sobre a democracia no país, com a prisão e a cassação de professores como o próprio Caio Prado. A publicação de “A revolução brasileira”, em 1966, deu-lhe o Prêmio Juca Pato de intelectual do ano, confirmando a preeminência do historiador paulista no seio do debate polí­tico e intelectual brasileiro.
  Novais, o mais importante continuador e intérprete de Caio Prado, autor da obra mais referida da academia brasileira e formadora de excelentes pes­quisadores “Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colo­nial (1777-1808)” —, mostra-se de certo modo pessimista sobre a compreensão atual da obra de Caio ao traçar com acuidade as genealogias historiográficas de­correntes de sua obra, na entre­vista anexa ao livro cuja lei­tura cuidadosa recomenda-se aos jovens historiadores.
  Novais afirma, e isto é certo, que a maré da chamada Nova História movimento francês dos anos 1970, baseado em abordagens micro, antitotali­zantes e antissistêmicas —, de recepção quase dominante no Brasil, desconsiderou o âmago explicativo de “Formação do Brasil contemporâneo”, ou se­ja, a tese do “sentido da colo­nização” que Caio Prado atri­bui ao processo capitalista, de­sigual e injusto na construção do Brasil moderno, como te­leológico e presenteísta [não seria panenteísta, ou panteísta?]. Além disso, criticou-se a ausência das fontes, com a abundância de notas de pé de página. Creio que o pessimismo de Novais procede. Ainda adicionaria o viés narrativista, oriundo do imperialismo literário dos anos 1990, de origem america­na, e o desconstrucionismo francês como altamente críti­cos da historiografia clássica.
  Também é rigorosa a observação de que boa parte da crítica volta-se para a militante adesão de Caio Prado ao mar­xismo. A crise do marxismo, depois de 1968, foi, sem dúvi­da, a crise de uma historiogra­fia que buscava nele uma forte inspiração. E aqui não me refi­ro aos manualistas soviéticos e afins, com suas obras fossiliza­das. Refiro-me a historiadores de peso, erudição e capacida­de explicativa ampla e capaz de localizar o indivíduo, o gru­po social ou classe numa longa duração. Ao lado da “crise” de Caio Prado, teríamos a “crise” de historiadores da estatura de Ernst Labrousse Albert Sooboul ou Eric Hobsbawm, além da tentativa de “limpar” o marxis­mo de obras geniais de Mikhail Baskthin ou Carlo Ginzburg.

Estudos atuais do Brasil são aliados às teses de Caio Prado
Contudo, o mais importante é que Caio Prado sobreviveu para além da crise da historiografia marxista. A publicação de artigos instigantes e teorica­mente rigorosos de Ciro Cardo­so, nos anos 1970, e da obra po­lêmica de Jacob Gorender [“O escravismo colonial”], em 1978, deram origem a um imen­so debate historiográfico, que ocupou os auditórios universi­tários por toda a década de 1980. Defensores de um marxis­mo original, ambos voltavam-se contra a teoria da dependência e a ideia da dinâmica sistêmica existente no âmbito do próprio sistema colonial, como percebi­do e formulado por Novais a partir dos “sinais e pistas” con­tidos na obra de Caio Prado.
  Creio que o silêncio de Novais sobre isto deve-se, em parte, à humildade latente por trás de vasta erudição ao lado de uma certa fadiga com o destino do debate acadêmico atual. Contudo, a manutenção do debate e a atualidade do pensa­mento de Caio Prado deveram-se, ainda nos anos 1970 e 80, ao sucesso da própria obra de No­vais. A partir daí teria havido o declínio? Ainda assim não creio. É certo que a micro-história e o narrativismo impuseram-se de forma arrasadora, formando his­toriadores especialistas em de­talhes, sem qualquer visão de conjunto, dito “totalizante” co­mo se fosse “totalitário”. Contu­do, mesmo os estudos “micro” continuaram se dando no âmbi­to do antigo sistema colonial.
  Por outro lado, e eis aqui mi­nha segunda discordância com o pessimismo de Novais, os grandes historiadores do Brasil Colônia contemporâneos co­mo Laura Mello e Souza, João Fragoso, Ronaldo Vainfas e Ma­nolo Florentino trabalham no âmbito de um quadro explicati­vo que entende o Brasil como parte de um “antigo regime”, composto a partir de uma dinâ­mica comum entre colônia e metrópole. Enfim, num diagnós­tico mediado pelos avatares tro­picais, com seus limites e apro­priações, permitindo a circula­ção e a impregnação de ideias e de instituições europeias no lar­go processo que fez o Brasil ser para o bem e para o mal, pa­ra a dor e a delícia, como diria Caetano o Brasil. Assim, a ex­plicação atual do Brasil não es­tá longe das teses centrais de Caio Prado e de suas aplicações por Fernando Novais. De qual­quer forma, não fosse a obra de Caio Prado, sua atuação corajo­sa pela justiça social e pela de­mocracia no Brasil já valeria sua manutenção no rol dos bra­sileiros com o “coração no lugar certo do peito”.
 
*FRANCISCO CARLOS TEIXEIRA DA SILVA
é professor Titular de História Moderna e Contemporânea/UFRJ
 
Francisco Carlos Teixeira da Silva e
Enviado por Germino da Terra em 14/11/2011
Alterado em 16/11/2011
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