retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


tropeços e trapaças [uma análise dum trecho de Famigerado, em Língua Portuguesa no 30]
conto de Guimarães Rosa explora a tensão de valores no diálogo entre classes sociais distintas
por Beth Brait*
 
Como nos entendemos? Falar e escrever a mesma língua garante exatamente o quê? A existência de uma língua só se concretiza nos embates diários entre falantes, ouvintes, escreventes, leitores. A cada vez que esses sujeitos produzem lin­guagem, oral ou escrita, são por ela atravessados e participam de um evento interativo em que o conflito, a tensão entre valores, é a marca essencial.
  No centenário de nascimento [em 2008] de João Guimarães Rosa (1908-1967), vale lembrar que o escritor expõe essas tensões, sempre vitais, carregadas das especifici­dades de uma situação, de um contexto histórico, cultural, apontando para uma das particularidades da condição humana: entre a vida e a linguagem não há álibi possível.
  Num de seus contos mais divertidos, Rosa elabora, a partir da ambiguidade de uma palavra e do duelo dialó­gico por ela instaurado, uma genuína teoria da linguagem. “Famigerado”, título e objeto do conto, é a segunda narrativa de Primeiras Estórias (1962, José Olympio, 5a ed., 1969, pp. 9-13). Pela perspectiva de um dos interlocutores (personagem, narrador, letrado) e a reconstrução da poética linguagem de um ex-cangaceiro, esse texto encena um caminho que vai da identificação de uma palavra da língua portuguesa à sua condição de arma poderosa, fio de navalha ideologicamente afiado.
  Se a condição histórica de letrado versus iletrado já foi apontada como uma das fortes temáticas da literatura brasileira, “Famigerado” é lugar privilegiado, no qual vemos o movimento de formas linguís­ticas e das funções por elas desempenhadas em ao menos duas interações: a do narrador personagem com o ex-cangaceiro, e a do narrador com seus leitores. A dupla face do evento, oral e escrito, é observada no manejo do léxico, centro do conflito, mas também em várias instâncias, caso de sinais gráficos, interjeições, do imaginário em torno da língua, do saber linguístico, dos universos que impulsionam um diálogo. Cada palavra responde a anteriores, explícitas ou não, provoca novas, mobiliza valores em conflito.
*Beth Brait é livre-docente da PUC-SP e da USP,
autora, entre outros, de Ironia em Perspectiva Polifônica

 
Famigerado
“Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada...” (...)
  — “Vosmecê é que não me conhece. Damázio, dos Siqueiras... Estou vindo da Serra...” (...)
  — “Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado... faz-me-gerado... falmisgeraldo... familhas-gerado...?” (...)
  — “Saiba vosmecê que saí ind’hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro... (...)
  — “Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem tem o legítimo — o livro que aprende as palavras... É gente pra informação torta, por se fingirem de menos ignorâncias... Só se o padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou: eles logo engambelam. A bem. Agora, se me faz mecê, vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe preguntei?”
  Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:
  — Famigerado?
  — “Sim senhor...” — e, alto, repetiu, vezes, o termo, enfim nos vermelhões da raiva, sua voz fora de foco. E já me olhava, interpelador, intimativo — apertava-me. Tinha eu que descobrir a cara. — Famigerado? Habitei preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro ínterim, em indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até então, mumumudos. Mas, Damázio:
  — “Vosmecê declare. Esses aí são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo, pra testemunho...”
  Só tinha de desentalar-me. O homem queria estrito o caroço: o verivérbio.
  — Famigerado é inóxio, é “célebre”, “notório”, “notável”...
  — “Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?”
  — Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos...
  — “Pois... e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?
  — Famigerado? Bem. É “importante”, que merece louvor, respeito...
  — “Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?” (...)
  — Olhe: eu, como o senhor me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser bem famigerado, o mais que pudesse...

Famigerado [a análise]
“Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada...” (...)
Antes desta fala, o narrador descreve a chegada de cavaleiros e o cuidado para avaliar, pelo olhar, qual deveria ser seu comportamento. Considera a vestimenta, as armas e o não cumprimento dos ritos interativos sertanejos (descer do cavalo, tirar o chapéu, entrar), e imagina uma situação de violência. Ma o verbo “preguntar” e o tratamento respeitoso de “vosmecê” revelam a condição sociocultural do visitante e, com “opinião sua explicada”, qualificam o narrador como conselheiro e não adversário.
  — “Vosmecê é que não me conhece. Damázio, dos Siqueiras... Estou vindo da Serra...” (...)
O visitante se apresenta e diz de onde veio. O narrador não se aquieta. Continua alerta, se organizando. Reconhece o ex-cangaceiro e acompanha ainda mais a sua fala, seus gestos, olhares, armando-se para o evento em curso.
  — “Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado... faz-me-gerado... falmisgeraldo... familhas-gerado...?” (...)
A maneira como expressa a pergunta, tateando sequências sonoras, mostra que o visitante não busca o significado de uma palavra. Quer recuperar um plano de expressão que não encontrou respaldo no seu vocabulário, motivando aproximações sonoras cujas significações pareciam apontar para um campo semântico ligado à honra: “família”, “gerado”, “geraldo”. A dúvida linguística revela-se mais ampla: põe em cheque um universo de valores.
  — “Saiba vosmecê que saí ind’hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro... (...)
  — “Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem tem o legítimo — o livro que aprende as palavras... É gente pra informação torta, por se fingirem de menos ignorâncias... Só se o padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou: eles logo engambelam. A bem. Agora, se me faz mecê, vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe preguntei?”
  Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:
  — Famigerado?
A condição de letrado e o domínio da norma culta permitem ao médico, pela instauração da palavra “famigerado”, reverter em parte a situação, percebida como adversa. Para assumir gradativamente a condução do evento, não responde de maneira direta: profere a palavra três vezes em forma de pergunta.
  — “Sim senhor...” — e, alto, repetiu, vezes, o termo, enfim nos vermelhões da raiva, sua voz fora de foco. E já me olhava, interpelador, intimativo — apertava-me. Tinha eu que descobrir a cara. — Famigerado? Habitei preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro ínterim, em indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até então, mumumudos. Mas, Damázio:
A primeira pergunta obtém do outro a repetição, ou seja, a identificação da palavra e, aí sim, o pedido de declaração do significado.
  — “Vosmecê declare. Esses aí são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo, pra testemunho...”
Só tinha de desentalar-me. O homem queria estrito o caroço: o verivérbio.
  — Famigerado é inóxio, é “célebre”, “notório”, “notável”...
Como resposta, o médico dá quatro sinônimos, de campo semântico inacessíveis ao interlocutor, acirrando o embate de valores. Já na primeira resposta, acena ao leitor o jogo de ambiguidades que conduzirá seu procedimento linguístico e manipulatório. Os termos “célebre”, “notório”, “notável”, diferentemente de “inóxio”, então entre aspas, indicando a possibilidade de dupla leitura: qualidades referentes a ações positivas ou negativas. Isso, naturalmente, valendo só para a interação com o leitor.
  — “Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?”
Mantendo o tom respeitoso, pelo pronome de tratamento e pela formulação da frase, quase se desculpando pela ignorância, apresenta termos aos quais associou a palavra, indicando a desconfiança de xingamento, de palavra que, atacando a honra, o faria voltar à condição de matador.
  — Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos...
O duelo linguístico, o jogo interativo, equipara os interlocutores, aumentando a tensão, expondo os valores lançados na arena.
  — “Pois... e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?
Ainda sem entender e mantendo sua condição social e linguística (pobre e falante da linguagem de em dia-de-semana), o ex-cangaceiro exige o sentido afiançado pela honra e pela fé.
  — Famigerado? Bem. É “importante”, que merece louvor, respeito...
Mais uma vez o narrador afirma o caráter positivo da palavra, colocando “importante” entre aspas e, assim, sinalizando a ambiguidade, arma com que se desvencilhará do interlocutor.
  — “Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?” (...)
  — Olhe: eu, como o senhor me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser bem famigerado, o mais que pudesse...
A interjeição modaliza negativamente vantagens e funciona como piscadela para o leitor, qualificado para compreender a manipulação linguística, interativa, vital. A beleza do texto está, aqui, na capacidade de Rosa expor a língua, num detalhe aparentemente jocoso, como movimento de valores, tensão entre diferenças.
Sem saída, o médico-narrador dá o golpe final. Inverte os papéis e joga com a ambiguidade da situação e do termo, arvora para si o desejo de ser famigerado — bem famigerado. Não só se tem uma nova palavra, gerada pelo evento, mas o sentido narrativo imaginado pelo ex-cangaceiro é assumido pelo médico, embora compreendido, finalmente, como positivo por seu interlocutor.

 
Beth Brait
Enviado por Germino da Terra em 02/11/2011
Alterado em 13/12/2014
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