retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


Oscilando entre os
domínios do estilo e do
enredo, muitas narrativas
alternam o ato de narrar
com a arte de entrelaçar
histórias simultâneas
 
nas teias da história, por Braulio Tavares, em língua portuguesa no 72
 
Muitos escritores se remexem, desconfortá­veis, quando escutam alguém dizer que a função da literatura é contar uma histó­ria. Todas as vanguardas literárias dos últimos 150 anos atacaram esse posto avançado da tradição. A história da prosa ocidental tem sido uma alternân­cia no poder entre os adeptos do Estilo e os adeptos do Enredo, entre a literatura como a arte de escrever bem não importa o quê, e a literatura como a arte de contar uma boa história, não importa como.
  A arte de contar histórias, segundo seus adep­tos, é uma das mais antigas e mais essenciais; se­gundo seus detratores é uma das mais antiquadas e mais rudimentares. Em muitos idiomas os críticos criam uma divisão de águas muito clara dizendo que fu­lano é um escritor (writer, écrivain) e sicrano é um me­ro contador de histórias (storyteller, raconteur). Em tor­no dessas palavras flutua a ideia de que o primeiro sabe trabalhar as palavras com sofisticação, sendo capaz de exprimir verbalmente seus estados de alma mais sutis. E que o outro é um mero enumerador de peripécias, ca­paz de imaginar situações interessantes mas sem muita profundidade; e que em vez de escrever livros bem po­deria ganhar a vida contando essas histórias ao micro­fone de uma rádio, ou coisa parecida.
  O que é uma história? É uma série de eventos liga­dos entre si numa sucessão temporal, ligados pela ideia de que cada um deles sucedeu depois dos outros. Um ho­mem acorda. Depois, levanta da ca­ma. Depois, pega o carro e vai para o escritório. Depois, recebe um telefo­nema chamando-o para um encontro no parque. Depois, é sequestrado no parque e jogado no porta-malas de um carro. Depois, acorda amarrado a uma cama de ferro num quarto va­zio. E por aí vai, como numa escada em que cada vez que pisamos num degrau outro degrau surge magicamente diante dos nossos pés.
  O enredo vai além da história, e inclui todos os diferentes tipos de en­trelaçamento entre várias histórias, pois o romance ocidental cresceu la­teralmente, em espessura, a ponto de ter várias histórias acontecendo de forma mais ou menos simultânea, e o narrador tem mil possibilidades de cortar de uma para outra (produzin­do suspense), de fazer com que uma interfira na outra, etc.
  Usam-se muito, na teoria da nar­rativa, os conceitos de fábula e de trama. A fábula é a história que está sendo contada, os fatos que ocorre­ram com os personagens e que o au­tor está querendo nos relatar; a tra­ma é o que ele efetivamente conta, as cenas que ele de fato mostra, e co­mo escolhe mostrá-las (grande par­te da fábula fica apenas subentendi­da). A mesma fábula pode ser conta­da de diversas maneiras, em infinitas tramas. A história de Cristo é conta­da nos quatro Evangelhos em quatro tramas diferentes. Cada historiador que narra a batalha de Waterloo ou o Grito da Independência tem em mãos a mesma fábula, mas cada um faz um recorte diferente, escolhendo a trama que lhe convém.
 
“Sem graça”
 
E. M. Forster, em seu clássico As­pectos do Romance (1927), tem um divertido capítulo sobre a “história”, incluindo aí a fábula e a trama. Fors­ter era um bom criador de histórias. Seus romances forneceram fábulas ao cinema, por exemplo, para a criação de tramas (=roteiros) baseadas em romances como Passagem para a Ín­dia, Uma Janela para o Amor, Re­torno a Howard’s End e outros. Mas era ao mesmo tempo um estilista so­fisticado, que via na literatura algo mais que um simples relato de peri­pécias. Diz ele, com ironia e bom hu­mor: “Uma história é o mais inferior e o mais simples dos organismos lite­rários, e ao mesmo tempo é o fator comum mais elevado que une todos os organismos complexos que cha­mamos de romances. Quando isola­mos uma história assim dos aspectos mais nobres por entre os quais ela se move (...), ela apresenta uma aparência que é ao mesmo tempo desagradável e sem graça.”* Forster compa­ra a história à espinha dorsal de um romance, ou melhor, a uma solitária (o parasita intestinal), “porque tanto seu começo quanto seu fim são arbi­trários”. E de fato, uma história nar­rada puramente pelo seu valor de his­tória, pelo interesse em seu começo-meio-e-fim, não é muito diferente de uma sucessão infindável de segmen­tos justapostos pelo “e depois...”.
 
Releitura
 
Daí a importância do modo de narrar. O enredo (ou trama) é a re­velação gradual de uma fábula que só entendemos pela primeira vez quan­do encerramos o livro, e só entende­mos por completo quando o lemos de novo. Na releitura, cada episódio do começo e do meio, revisto agora, sur­ge iluminado por tudo que vem de­pois e que só agora conhecemos. Por exemplo, o romance de mistério re­almente bom produz uma surpresa com a revelação final de quem foi o assassino, mas pode ser relido com prazer ao repassarmos a história in­teira (sabendo agora qual é a fábula contada) e percebemos como o au­tor produziu uma trama apontando para várias fábulas possíveis (vários culpados possíveis) e ao mesmo tem­po usou de jogo limpo, mostrando (mas de maneira descuidada, aparen­temente casual) todos os indícios da fábula que está contando mas que só compreenderemos no final.
Braulio Tavares é compositor, autor de Contando Histórias em Versos (Editora 34, 2005) btavares13@terra.com.br
 
*Em minha edição (Editora Globo, 2005) de Aspectos do romance, de Edward Morgan Forster (1879-1970), na tradução de Sergio Alcides o capítulo inaugural, “A estória”, lá, à página 55, este trecho aqui citado tá assim: [a sequência de fatos narrados] “Trata-se do organismo literário mais primitivo e mais elementar. No entanto, é o máximo divisor comum de todos esses organismos sumamente complexos que conhecemos como romances.
  “Quando isolamos assim a estória de outros aspectos mais nobres através dos quais ela se movimenta, e a seguramos a fórceps — contorcido e interminável, o verme nu do tempo —, ela tem uma aparência tão desagradável quanto maçante.”.
  E ainda, à pg. 56, o autor acrescenta: “... De modo que a vida diária, seja como for, compõe-se, na prática, de duas vidas — a vida no tempo e a vida por valores — e a nossa conduta revela uma dupla inscrição. ‘Fiquei com ela só por cinco minutos, mas valeu a pena.’ Eis, numa única frase, as duas inscrições. E o que a estória faz é narrar a vida no tempo. E o que o romance como um todo faz — se for um bom romance — é incluir também a vida por valores...”
  No capítulo “Padrão e ritmo” (pg. 159), como Luiz Ruffato na apresentação salienta, Forster diz que o padrão nasce principalmente do enredo: “e o acompanhar como a luz nas nuvens, permanecendo visível depois que ela passa. Às vezes, o formato do livro é a beleza, tomando-se o livro como um todo, em sua unidade, e nosso exame seria mais fácil se fosse assim. Às vezes, porém, não é. Quando não for, vou chamá-lo de ritmo.”.

 
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  Sem intenção de contrapor — quem sou eu! —, mas variegando, transcrevo o que outro dia, em entrevista, o autor de Histórias falsas, Gonçalo M. Tavares (1970-), disse: “Não gosto da história que é apenas um narrar. A literatura é mais do que uma história pu­ra e simples. Ao mesmo tem­po, não vejo uma distinção en­tre narrativa e reflexão. O pró­prio pensamento tem uma se­quência, uma narrativa. Se pe­garmos uma ideia e a desen­volvermos, se a pensarmos como um personagem, essa ideia-personagem vai se alte­rando: ela nasce, cresce, tor­na-se madura, tem um adver­sário o contra-argumento —, há um combate com outras ideias, há vencedores e derro­tados... Quer dizer, há um per­curso narrativo. O que acharia interessante é que as pessoas vissem as ideias como narrati­vas, e as histórias também co­mo ideias. Não temos muito essa tradição no Ocidente, de pensar através de histórias, mas no Oriente é muito típico que cursos de filosofias sejam dados por meio do contar de histórias. Para o ocidental, as ideias estão associadas a con­ceitos, mas muitas vezes os orientais apresentam os conceitos com narrativas. O que me agrada, pessoalmente, é que a certa altura as coisas estejam misturadas, como natu­ralmente são” [grifos meus, Germino da Terra].
 
Braulio Tavares
Enviado por Germino da Terra em 30/10/2011
Alterado em 11/11/2011
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