retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


Outro dia eu postei o poema baianidade grega, de Goimar Dantas. Fiz a sua leitura numa revista, e dele me encantei tanto que quis reparti-lo com demais. Quem o leu, leia também o que segue, uma análise — sem academicismo — da composição que faz apreciá-la ainda mais.
Germino da Terra
 
baianidade grega: um poema, uma interpretação possível
por prof. Leo Rícino *
(texto transcrito da revista conhecimento prático literatura no 38)
 
interpretação
O poema, cujo título é curioso e sugestivo, já começa impactante: uma forte comparação. A comparação no caso aqui uma saborosa metáfora é um dos grandes recursos literários. Pode-se dizer que a metáfora está para o texto e o contexto como o soneto está para a forma poética. Ou seja, ambos são de composição e criação dificílimas e, mal empregados, beiram ao ridículo.
  Toda metáfora, como já se está cansado de saber, é rigorosamente subjetiva, fruto de algum lampejo de analogia que se abre no centro sensitivo do seu produtor, resultado de alguma semelhança, na visão desse observador, entre duas coisas. Esse elemento análogo estabelece a ligação entre o comparado e o comparante, e nós, que nada tínhamos a ver com o processo, recebemos um produto altamente valioso de presente: uma metáfora.
  A abertura desse poema nordestino Baianidade Grega já traz uma metáfora pretensiosa, não por parte da autora, mas da comparação da personagem com uma das mais apreciadas obras de arte da humanidade: a Vênus de Milo.
  Essa estátua, possivelmente datada entre 150 e 100 a.C, foi encontrada na cidade de Milo, Grécia, em 1820, e é a mais conhecida escultura da Antiguidade Clássica. Segundo os entendidos, é de beleza praticamente incomparável. Já se vê, pois, a pretensão da comparação! Realmente, a beleza da cena e da baiana de quadris faceiros calaram fundo na autora! Mesmo que a fonte inspiradora do poema seja a imaginação e não uma cena real, pressupõe-se que a beleza daquela brejeira que caminhava em direção ao açude impressionou de tal forma a poetisa que ela, naquele lampejo de analogia a que se referiu acima, cunhou, ou mesmo esculpiu, no seu poema, a metáfora que desperta enorme interesse no leitor.
  Sim, porque, normalmente, leitor de poesia também é sensível a muitos outros tipos de arte, com maior ou menor intensidade. A simples referência à Vênus de Milo já nos provoca a curiosidade sobre qualquer personagem que tenha causado tal impacto!

a visão do semovente
Baianidade Grega é um poema, digamos, dinâmico, imagético. É impossível lê-lo sem visualizar a cena nele descrita. Forma-se uma imagem viva, semovente, e se percebe o caminhar da morena (?) brejeira de quadris faceiros. E o observador deve estar também numa posição demarcada: próximo do açude para onde ela caminha.
  Visualiza-se o deslizar que encanta, aquela trouxa grande na cabeça, braços para baixo, movendo-se com certa harmonia e lentidão, para a frente e os quadris enfeitados com badulaques, miçangas talvez, jogando-se sensualmente para os lados, planta dos pés, uma de cada vez, sempre chapada no solo, no revezamento típico do caminhar, e provocando a intensidade do requebro, a voz solta, com seus graves e agudos (aliás, os opostos estão muito presentes no poema), exteriorizando o contraste (de novo a oposição) entre a felicidade de viver, da auto-estima, da confiança num porvir e na sua própria força, e a realidade que a cerca: sequidão, falta de vida palpitante, expressa, principalmente, por um açude quase seco.

o léxico I — contrastes e mais contrastes
O primeiro contraste está entre o texto e a imagem. O poema, que deveria ser um simples texto (no sentido de palavras escritas), é uma imagem viva. Não se concebe sua leitura sem “ver” o sensual caminhar dessa vênus na busca de seu objetivo. Há também uma oposição entre a estática eterna da estátua e o esplendor de vida demonstrado no andar da brejeira de quadris faceiros.
  Outro par de opostos é o requebro e o equilíbrio. No poema todo se vê (se vê mesmo) o requebrar da brejeira enquanto a trouxa grande de roupa na cabeça se mantém ereta, quase imóvel. Equilíbrio pressupõe alguma coisa numa dada posição fixa (ou quase), o que é também quase impossível sobre outra coisa em movimento, especialmente se a coisa em movimento é o andar humano. Toda a oposição no poema tem sempre a mesma finalidade: destacar a beleza venusina de uma nordestina menina forte e bonita. Viçosa como que a opor a força vital à sequidão do ambiente. Outra oposição.
  Também é de se notar que brejeirice e clássico se opõem. Brejo é rude, natural. O clássico é arte, artificial, trabalhada. Brejeirice é pureza, simplicidade. O clássico é racionalidade pura. A poetisa, no entanto, faz a natureza imitar a arte, transfundindo (e fundindo) metaforicamente as belezas do encantamento de uma visão da natureza viva com o impacto de uma natureza morta.
  Continuando nessa linha de opostos, uma caminhada alegre sob um sol causticante provoca a suadeira, água em abundância num corpo semovente, em oposição à escassez da água do açude. De qualquer forma, pouca ou muita, a água é o símbolo de vida. Na sequidão do ambiente, seu corpo se refresca na água suada e Maria como tantas marias encontra prazer e trabalho na pouca água do açude, para o qual caminha malemolentemente, alegremente, faceiramente, equilibradamente, externando a alegria da vida num cantar de opostos graves e agudos, que, alvissareiros, ecoam açude afora.
  Mas não é só na parte física da brejeira que percebemos essa alegria de viver. A poetisa penetra na personagem e nos mostra que ela é dengosa, supersticiosa e vai toda prosa acreditando, acreditando, acreditando... na vida. Na própria contraface entre a superstição da baiana brejeira e sua metaforização em Vênus, há uma oposição, agora do espírito da autora.
  Mesmo quando não há oposição de fato, há oposição aparente: Maria estava sedenta de amor, sorte e... água. São sedes completamente diferentes, uma rigorosamente física, a de água; outra rigorosamente espiritual, a de sorte; e outra mesclada de físico e espírito, na simbiose buscada na aridez do cenário do sertão com o esbanjar de vida da personagem, almejando o equilíbrio. É a sede de amor. O próprio fato de ela estar sedenta de sorte já mostra sua disposição para a luta, a esperança, principalmente quando se constata que ela é a vida dentro de uma realidade semimorta. “Água”, “suor”, “molhada”, representam os baluartes contra a sequidão do ambiente.
  Em outras palavras, fica-se com a sensação de que o requebro é a tentativa desesperada de unir os opostos. Aquele jogo para a esquerda (um lado) e para a direita (o seu oposto) é harmonizado pela coluna (o equilíbrio) que controla seus movimentos e garante a sua subsistência. Na união e na aceitação dos opostos estaria a certeza da perenidade.

o léxico II: sentido e sonoridade
  Antonio Candido, ao analisar, com a profundidade de sempre, o poema Meu sonho, de Álvares de Azevedo, dentre as várias hipóteses de interpretação, nos mostra que existe a possibilidade de ver nele um sentido de sexualidade, ou, mais precisamente, a relação Amor e Morte, bem cara aos românticos. E comprova essa visão com elementos pertinentes, como o cavalo como símbolo de virilidade, a espada como símbolo do masculino e a bainha como símbolo do feminino. O melhor é ler a interpretação, que está no livro Na Sala de Aula, Editora Ática, 2002, a partir da página 38.
  Se pudéssemos escolher uma marca para Baianidade Grega, com certeza seria a da sensualidade. A sensualidade escorre do primeiro ao último verso. A composição, numa estrofe só de 25 versos, já representa a sensualidade de um caminhar cheio de requebros, de dengo, de faceirices. E a imagem de um caminhar provocante, no sentido de como o homem olha uma mulher que antes desliza do que pisa o solo e joga seu corpo harmoniosamente, esquerda, direita, destacando o seu todo. Ou seja, naquele corpo está toda a pujança da vida e de sua continuidade na concretização consequente da sensualidade.
  E a poetisa não poderia ter sido mais feliz na junção dos campos lexical e semântico. O sentido da sensualidade que gera vida é garantido pelo uso de palavras adequadas. E isso jorra ao longo da maioria dos 25 versos, em palavras e expressões como:
contorno suave
quadris faceiros
requebrando
molhada
dengosa
vem toda prosa
lenta
malemolência
sedenta... de amor
forte
nordestina
menina
Maria, Bonita
  Todas, dentro do contexto em que estão inseridas, despertam o imaginário masculino na apreciação da sensualidade emanada da cena.
  Sem a preocupação da descrição, a autora vai-nos passando detalhes da beleza física da personagem e de sua certeza no ser apreciada e desejada. Começa com um contorno suave, destacando a delicadeza das linhas harmoniosas que compõem o corpo da baiana brejeira, intensificado pelos badulaques (tem de haver ali alguns enfeites, um cinto que seja, sob pena de não se justificar plenamente a existência e a própria sensualidade do adjetivo faceiros) que realçam os quadris faceiros no seu movimento de requebro. Sensualidade pura! E essa impressão ganha ênfase com algumas expressões de palavras fortemente provocantes, sempre dentro do contexto do poema:
toda cheia de prosa
lenta
malemolência
sedenta de... amor.
  Dir-se-ia que é uma deusa verdadeiramente terrena mostrando seus atributos, seus anseios! Parece haver uma espécie de junção de corpos na nasalação ofegante das palavras lenta, malemolência (essa literalmente, na batida da oclusiva /M/ com a lateralidade da constritiva /L/, expressando o movimento típico do “eterno diálogo de Adão e Eva”, com um final que se escorre numa espécie de orgasmo: MaLeMoLê..n..c..i..a!) e sedenta de... amor com a explosão de luz, força, vigor, virilidade da expressão toda cheia de prosa. É um verdadeiro canto de sereia na própria escassez de vida do ambiente.

um parêntese: utopia X ufania = telúrico
Se quisermos ir mais longe, é só notar também que há uma distribuição curiosa das palavras-chave ao longo do poema. Vênus de Milo seria a cabeça, uma beleza clássica, com rosto suave no seu contorno (essa expressão tanto pode representar o corpo todo como os traços suaves do rosto). Aí vêm os quadris faceiros, mas cujos traços são marcados por algumas palavras como dengosa, lenta e malemolência, que passam a sensualidade acrescida da alegria dos graves e agudos de sua voz lírica nata. Mas tudo isso tem uma base: trata-se de uma brasileira forte. Mais que isso, de uma nordestina mulher no seu corpo de menina (com o sentido de garota, mulher jovem). Mais ainda, trata-se de Maria Bonita, talvez a mulher mais marcante de toda a história desse Nordeste brasileiro.
  Em outras palavras, é como a mulher nordestina é vista pela mulher nordestina. A autora é potiguar e vê no Nordeste um todo. Baianidade Grega é, simultaneamente, utópico e ufanista. Exalta a mulher, coloca-a acima das mazelas do ambiente, superior na jactância do caminhar acima de qualquer suspeita, sóbrio e senhor de si, seguro de si e de suas projeções. Mas não exalta qualquer mulher, exalta a mulher nordestina.
  Por que me ufano do meu Nordeste fica respondido nessa exaltação à mulher nordestina, colocada num topo e, apesar de toda a realidade material indesmentível ainda hoje, protegida contra outras crenças. Crenças de que haja dor, miséria, pobreza, de que o inóspito predomine. É o lado telúrico da autora falando mais alto. Ainda bem, pois só assim fomos agraciados com os versos e a versão desse delicioso Baianidade Grega.

o léxico III — a força da sonoridade
Como se o mostrado acima não bastasse, os próprios recursos sonoros do poema também exalam sensualidade. Há uma mistura de nasalação com oralização, a primeira expondo o fluir, os sussurros da ardência do corpo na exposição de seus desejos pela vida; a segunda expondo a força da própria vida na juventude, na determinação, na empáfia desafiadora do caminhar para a certeza. Vogais abertas como o A e o Ó são a expressão dessa força, às vezes realçada pela insinuação da nasalação, como na palavra dengosa. Mas a mesma força podemos destacar na junção do nasal com o oral em Contorno suave. Mas em suada, molhada, água, sorte, forte e bonita há uma efervescência de vida representada na clareza e na abertura das vogais.

figuras de estilo
O título do poema Baianidade Grega é uma metáfora, seguida no primeiro verso com outra metáfora — Vênus de Milo —, que funciona como uma espécie de complemento ou justificação da anterior. Essas são as duas figuras do texto, mais denotativo do que conotativo. A conotação, no entanto, está em toda a imagem.
  Depois, o poema se desenvolve em elipses, principalmente no final, e seus versos são rápidos, curtos, quase telegráficos, representando o caminhar malemolente e sensual de Maria, metonímia que engloba as nordestinas. E é fácil perceber o potencial dessa Maria, na referência que é a um símbolo feminino da região, Maria Bonita, a força máxima, aquela que, com seu amor, dobrou o “mal”, dobrou a “brutalidade”, superou entraves e dominou Lampião, o maior cangaceiro nordestino.
  É claro que, sendo a apoteose dos opostos, o texto é antitético, quase paradoxal em certo sentido: Vênus de Milo é uma estátua, sem braços, olhos para baixo, bela como obra, mas que é um paradoxo com o caminhar requebrado, braços em movimento, olhar para a frente e para o infinito.
  A metáfora nasceu da soma da impressão de duas belezas opostas, mas que causaram o mesmo impacto. Está, pois, a metáfora nas sensações que duas belezas distintas causaram na poetisa, causando a junção de suas imagens.
Como se disse, o poema, pela disposição dos versos, passa mesmo a imagem viva do semovente da protagonista. As palavras como que brotam da admiração da poetisa e da comunhão que a invade ao apreciar a sua gente. Sensibilidade projetada na sensualidade.

comentário final
Essa é uma interpretação dentre tantas que cada leitor poderá fazer desse semovente poema nordestino. Compartilhei a minha forma de vê-lo e senti-lo com os leitores da Conhecimento Prático Literatura, com o intuito de encorajar os professores de literatura que ousem fazer suas próprias interpretações de tantos poemas que estão aí à espera de leituras, releituras, visões pessoais e ávidos por causar as mais variadas sensações em cada leitor.
  A leitura, principalmente, de crônicas e poemas contemporâneos, como este que analisei aqui, pode ajudar no trabalho heroico dos professores de Literatura de manter a leitura sempre em alta. Povo que lê tem muito mais possibilidades de futuro. Parabéns, professor de literatura, por essa sua importante contribuição ao país.

conheça a autora
Goimar Dantas de Souza [potiguar] é jornalista, roteirista, escritora e mestra em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Sua dissertação analisou o sagrado e o profano nas poéticas de Adélia Prado e Hilda Hilst. É autora da biografia Cortez A Saga de um Sonhador, com Teresa Sales, e do infantil Quem Tem Medo de Papangu?, ambos publicados pela Cortez Editora, dentre outros. Atualmente se dedica à escrita de novos livros infantis e trabalha na pesquisa e redação da obra Rotas Literárias de São Paulo, a ser lançada pela Editora Senac São Paulo. Também mantém o blog http://poesia-potiguar.blogspot.com.

* Prof. Leo Rícino é Mestre em Comunicação e Letras e professor da Fecap — Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado, instrutor da Universidade Corporativa Ernst & Young. Ministra também cursos no Sindicato dos Professores de São Paulo. E autor de vários artigos para a Conhecimento Prático Língua Portuguesa.

 
Prof. Leo Rícino
Enviado por Germino da Terra em 29/09/2011
Alterado em 01/10/2011
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