retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


 a gente cresce no amor e na dor

Domingo calorento, demais. Quentíssimo. Entardecendo eles foram beber chope à beira da Lagoa. Conversavam sobre a véspera, a visita a um amigo do homem q’ela não via há muito, quando sua filha liga pedindo pra apanhá-la na casa de seus pais, levá-la pra dela. Oito e meia. A mulher quis ficar, continuou tomando a fresca do lugar e uns chopes a mais, olhando o espelho d’água. Ele foi a Copacabana e logo voltou à Rodrigo de Freitas.
  Retornando a encontra ao celular, chorando. “Quê que foi, quê que aconteceu?”, lhe pergun­tou. Mais ligações recebidas; mais discadas. “Aconteceu uma tragédia: o Binha... morreu. Aquele menino, o namorado da minha sobrinha, mor­reu!”. “Como?” “Acidente estúpido de carro... em Miguel Pereira.”
  O celular não para. Suas filhas, chocadas, tentam entender com a mãe o porquê de um garoto duns 18-19 anos, por que assim morre? A mulher ficou ali falando ao celular; ele, quando requerido, faz alguns comentários; as meninas do outro lado da linha, tristíssimas, querendo voltar a Miguel... Tudo confuso.
  Em uma mesa grande, atrás deles, um grupo canta Parabéns pra você.... Ironia. Enquanto um se vai, outro comemora mais um ano por ficar. Pra quem conhecia o que se foi, o mundo se esvai, de repente... Ao mesmo tempo, suas vidas crescem, a mulher diz: “Ariel, olha filha, a gente só cresce no amor ou na dor.”. “Ou em ambos conjugados, sem o ‘ou’”, ele acres­centa.
  O homem não se condoeu com a morte do rapaz, dele per se conhecia muito pouco. Nunca conversaram, apenas se cumprimentaram algumas vezes. Sentiu, sim, a dor de quem ficou, de sua namorada, menina ainda, ela é quem sofre sem entender patavina! Os pais do garoto, seus amigos... todos sentem a dor, sofrem a ausência abrupta.
  Outro dia mesmo, no sábado, o homem e a mulher conversavam sobre isso, sobre quem vai e quem fica. Quem sofre mais: “É claro que quem fica! Quem foi, foi, não sente picas; quem fica, fica com o pesar da perda. Não é q’eu não acredite em encarnação, desencar­nação, essas coisas — simplesmente não as entendo. Não ignoro essa maneira de pensar; apenas sou ignorante nesse assunto” — ele se compadece do não ser, da morte viva.
  Pouco tempo atrás, ensimesmado o homem se acendia e se apagava, fora um vaga-lume ambu­lante, um auto-apagão intermitente — se deseja­va ir de vez, frequentemente —, e comiserava-se de si mesmo. Não mais. Pensa em seus filhos, eles é que iriam ficar, aguentar o tranco.
  Domingo, nunca entendeu do por de esse dia ser assim triste, até angustiante. Por quê? Sabe que muitas pessoas o sentem dessa forma mas não dizem, não dizem o sentirem assim. É fácil dizer “esse dia é esquisito, soturno, escabroso...” quando acontece uma tragédia; mas aquele homem o sente sempre um dia lotado de incômodos surpreendentes, como este. “O pior da estranheza é desentendê-la”, angustioso o homem remói-se.
  Nunca entendeu os domingos.
  O de hoje, dia 3 de abril de 2005, este ficará nas lembranças entristecidas e estarrecidas de muitos jovens como o domingo do Binha. Na deles — do homem e da mulher —, em suas reminiscências.
  Sente tanto por todos, os sobreviventes.

 
Germino da Terra
Enviado por Germino da Terra em 19/09/2011
Alterado em 19/09/2011
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