retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


 a Alfa, a pit bull e o Jumento

  — São os seus vizinhos, aquele grandão e aquela baixinha? Você se dá com eles?
  — São, são os meus desvizinhos...
  — Como assim, “desvizinhos”? Ou são ou não são, ora.
  — Ó, eu não quero falar sobre isso...
  — Ué, por quê? Quê que há?
  — Ó, já que insiste, e este mês é importante em relação a isso, vou te contar uma história, história sobre a Alfa, a pit bull e o Jumento... Mas q’eu conte até o final, hein...
  — Tá, vai!
  — Tem um livro poraí ensinando a quem o lê, ensina a falar de livros não lidos e, sobretudo, sobre tudo o mais. Vê bem o que te falo, parece que num didatismo repassa como categoricamente falar de ignorâncias, do que se desconhece; ensina como, ao passar olhos nas recensões banais — as piores, as de revistas semanais ou mensais padronizadas —, como daí se capta as palavras-chave e seus expedientes dispersos no ar; e assim “tão bem fundamentado”, dessa maneira conceitua-se sobre isso e aquilo, tudo, adéqua o decoreba a se inserir nos meios sociais, quaisquer, com fidalguia envereda-se em variadas tribos; ainda mais: o próprio centrado é convencido que a fraude não é fraude, mas a mais pura sábia autenticidade.
  Tamanha quimera — o sólido se desmanchando...
  Bem... nem não o folheei, mas aproveito o mote desta cheia hipócrita e também deduzo através de resenhas sobre o mesmo... rumino que conheço uns assim — tão de perto —, e são terríveis! No instante eu falo dum contato-decepção avizinhado, percebo este que nem sabe ornejar “Não, num sei, me diz, quê que é?....”. É sobre literatura, música, filme, política, economia, jurisprudência, agricultura, minhocultura, escambau — sobre um punhado, um manancial de lida ele sabe e não pergunta nada, nem o mais simples desconhecimento. Tem saber enciclopédico! Posudo qual protagonista canastrão de filme de quinta, com o dialeto portenho dilui seu carisma e pormenorizando discorre a tolos boquiabertos a reunião das partes que formam o todo, e de quebra bedelha arredor — quando bebe umas cevadas então, e é quase sempre, nossa!
  Fico só olhando... desassuntado. Eu hein! Meneio a cabeça num guentando, me esforço em aprender a me segurar sério ou a sorrir antes de toda vez que não consigo não explodir; me contenho e meio maiêutico lhe mostro por a + b, partejo-o perceber que come pelas beiradas o que cozeu em banho-maria. Mas mesmo embotado peremptório ele desdenha, muito embora à noitinha, quando sua consciência repousa no crepúsculo, sei, encuca: Qué rayo, será, sí, más una vez desenmascarado?!...
  Isso é quase igual a este temporal que agora tá caindo, vê Florinda: os não atinados imaginam que com essa torrente tudo melhora, flori, que a terra é aguada e as plantas vingam rebrotadas... Que nada! Na secura que tá tem de cair uma chuvinha maneira, bem suave e prolongada, que revigore. São Pedro tem de emborcar o tacho com lentidão pra q’ela de devagar adentre a terra e cesse sua sede. Vem essa aí cheia de sofreguidão e a rasga, apenas lava e encharca, nela só penetra pingo d’água.
  E ainda acham que sou belicoso em relação a este Jerico. Se sou, eu hein, estou é pouco armado! Vê, naquela tardinha de segunda-feira eu tive a seguridad que tengo uno vecino canalla, sí.
  Pra cê vê, enrolo em contar o ocorrido repuxado por que ainda nem não consigo me expressar sobre — o corpo e a cabeça indignada estão moídos —, e apenas digo que foi entre minha linda e doce e dócil labrador, a Alfa, com a feroz pit bull do vizinho de frente, é, e com o que me faz rumo, o Jumento que mora no que foi de meus pais: presenciada a pancadaria entre os caninos e eu no meio tentando apartar, mais uma vez este demonstra todo o seu lado centrado em si mesmo — protagonista.
  — Porra, Mino...
  Tá, tá bem, já vou começar: foi quando o Barrão mais dois meninos e Seu Alfredo chegam ao vizinho; às 07h13min três negros e um nordestino arrastam pés atravessando a servidão [com trocadilho, por obséquio], amuados caminham àquele. E eu de minha janela, eu assuo: Madrugaram, hein, escravos! O dia caminhou. Foi naquela tardinha quando o pau entre a Alfa e a pit bull começou a rolar na estrada e veio vindo pra cá... Sorte q’eu estava próximo à porteira e de imediato pude entrar na pendenga. Mas vê, custei a apartar — aquela raça tem grande força. Segurei em sua coleira e a torci tentando esganá-la e socando sua cabeçorra, puxando-a pra cima e com o pé empurrando a Alfa pra baixo, ela na mordedura travada da outra. Guentei assim até vir o caseiro do dono da cadela e pôr-lhe uma guia levando-a. Nem pensei que a fera pudesse se voltar contra mim, tampei pra cima a modo de auxiliar a minha companheira e o mais que se danasse. Ó só, se de pronto eu não interviesse, babau Alfa; se o caseiro não surge com a guia, babau Germino, por que mesmo sem mais forças, como estava ficando, eu não largaria a bicha nem a dentadas. Seria uma tragédia no Paiol Velho.
  — Nossa!...
  Caramba, nunca imaginei a Alfa se atracando assim com uma pit bull! É uma heroína e dela me orgulho demais. Ainda rumino o susto de ver minha cadela toda ensanguentada entre dentes raivosos duma fera, mais eu, nós ensanguentados.
  Não tivemos, nem não tive apoio algum do calhorda dos pampas.
  — Ele é gringo?
  É. Ele, o Jerico, mais Seu Alfredo e Barrão assistiram tudo. E apressado em deixar o Castorino — o Barrão —, e os dois meninos que vieram ajudar o pai a plantar couve-flor praquele, de largá-los nas Três Porteiras, o Asno os apressou a capinarem fora quando aquela família dava apoio à Alfa e a mim, nós estropiados, de saberem se entre pelos e sangue não teríamos ferida séria. Eu soube que nem levou Seu Alfredo em Arcozelo por que só iria até às Três Porteiras — não dava pra rodar mais quilômetro e meio... Deixa o velho pra trás, este que ralara o dia é deixado pra trás, deixa-o ir a pé ao asfalto, mil e tantos metros, à entrada do Paiol Velho e de lá zarpar num ônibus. E olhe, já passava das cinco!
  Depois de verificar as perdas e os danos da Alfa, um tanto mais calmo mas ainda tremendo, bebo umazinha sentado aqui ao alpendre e lembro de Meridiano de sangue de Cormac McCarthy, da frieza de mercenários caçadores de escalpos indígenas e que ainda mutilam esses aborígenes já carnificados.
  Tiro minha roupa ensanguentada pra me banhar, e indignado com o descaso do vizinho — que retornando a sua pro-pri-e-da-d nem veio saber de nós, como sobrevivemos — cato minha roupa lambuzada de vermelho, grudenta, e vou à porteira daquele e ali a estico. Semelho o costume narrado por Ismail Kadaré em Abril despedaçado, que num cafundó da Albânia assim se faz pra dizer que essas vestes vestiram um ser a ser vingado — destino continuado.
  — Tu foi peladão?...
 O dono da fera, ele a prendeu. Passada aquela semana eu disse à sua mulher: “Vamos de ela escapulir — danô! —, raivosa arranca pedaço do primeiro com quem cruzar! A Alfa sara da orelha e do focinho; eu, eu não sendo mais jovenzinho, ainda sigo sarando da canela e do dedo da mão. Aqui, vê. O tendão de aquiles direito inchou e dói, num tenho mais firmeza com ele e nem sei o quê que tem...” — meio tenso eu treli um bocado. Nada, fica o dito pelo não dito. Também, a dona num tem nada com isso, a num ser de ter uma fera solta.
  Bem.
  Até hoje o biltre, aquele Asno até hoje não esteve aqui — antes vinha me pentelhar três vezes ao dia, na cara dura o ardiloso vinha surrupiar informações de mim, das coisas da roça, sorvendo sua cevada gelada em minha geladeira, escondido da sinhá. Somente na semana seguinte que aqui esteve esta, a sua dona, só. Não, a ela eu não me refiro na acepção carinhosa normalmente usada por mim em relação à minha ex-mulher — que entendia patavina de meu desvelo —, ou, com quem vivi, mas, nesse caso, a essazinha digo no sentido de proprietária de fato, quem lhe diz e o desdiz.
  Aqueles dois nem apuram os dois ingredientes mais fundamentais entre um casal: conversação & tesão. Mesmo entre muares, os híbridos, ao modo deles há tal duo. Aí, sei — por saber que os dois não formam um casal —, num tenho nada com isso e sem faltar com a verdade eu maldo.
  — Tu deriva demais, Mino...
  Tá, continuo... A Jumenta — agora literal —, mansinha e soturna ela cá esteve, numa ladainha medonha tentou justificar o injustificável, o descaso de seu servo. E se distanciando sutil, compacta me sugere: “Vai, vá lá no meu sítio, procura ele. Afinal, somos todos vizinhos.”.
  Fiquei só olhando... desassuntado, eu hein, lembrando Rubem Fonseca que diz que as que “nada têm a dizer são muito cuidadosas na maneira de dizê-lo”. Do alpendre meneio a cabeça num guentando, me esforço em aprender a me segurar sério ou a sorrir antes de toda vez que não consigo não explodir com aquele; igualmente àquela, a essazinha silente eu berro: Ora, vá à meeerda!
  — Que merdinha de mulher, hein!
  Cê nem sabe! Semana seguinte, à tardinha eu estava aguando as plantas do quintal tropeçando em filhotes da Alfa, e vem aquela, a vizinha de rumo, essa mesma, sai de sua propriedade e para frente à minha porteira, e dali azurra meu nome; sorrindo acena balançando o anti-bíceps pelancudo, gesticula um “como é que é...”, e eu de cá gesticulo, desentendido, um “num sei, como é que é o quê?!” — ficamos um tempo assim, gesticulando de lá e de cá —, até que por fim de lá ela gesticula me chamando.
  “Tááá beeem, laaargo o que faço, tô indo...” — ela não se digna a vir a mim dizer o que quer. Chego próximo: “Aaah, que gracinhas, parecem ursinhos de pelúcia... Mas, ué, e você, você não vai mais lá no meu sítio... E aquela conversa que nós tivemos outro dia...”. Eu: “Conversa, que conversa???”. “Ah, Germino, aquela conversa, ‘somos todos vizinhos...’”. Eu: “Aquele seu ornejar, blablablá monologuista! Ó só, o..., nesse ano e meio que vocês moram no Paiol Velho eu nunca fui frequente em sua casa; sem ser chamado aquele é que vinha aqui três vezes ao dia. Eu moro aqui há trinta e dois anos e nunca careci dum vizinho pra sobreviver. Num é agora!”. Ela: “Eu apenas estou tentando ser cordial, a intenção...”. E eu: “Olha aqui, o..., quem foi calhorda foi ele, e ele, se quiser, q’ele venha aqui; e eu, se eu quiser, o escuto. Não dependo de mediador, não dá, sou bem crescidinho e vacinado! E ó, o..., de ‘cordialidade e boa vontade’, de seu ornejamento eu tô é lotado!”.
  — Mandou bem...
  Ela: “Ehu!" Ela se apruma, ajeita os enormes óculos escuros que a faz semelhar uma joaninha loira, e a si diz “Eh, vamô”. “É, ruma daqui!”; eu volto a aguar as plantas, agora furibundo. vá tomar na peida, ô seu, suazinha — com a Alfa ou comigo ninguém algum faz desfeita!... —, ensimesmado águo plantas tropeçando em filhotes...
  No domingo eu soube que ao telefone o vizinho, aquele mesmo, marcou consulta médica com minha ex-mulher (em vez de com uma veterinária), pra segunda-feira. Avisa que irá ao consultório com aquela a tira-colo — sua proprietária faz questão de comparecer.
  — Sua ex, aquela...
 Caramba, na região tem tantos médicos credenciados em variados planos de saúde! É, mas se ele pensava que se reaproximaria de mim através desse viés, dessa via oblíqua; ou se na consulta teria espaço pra lamúrias de minha dureza com ele e com sua dona, queixumes à mulher q’eu aqui ao alpendre lhe apresentei, por quem ficava embasbacado, de queixo caído encantado quando galanteava tamanhos zurros, lenga-lengas fastidiosas qual canastrão de filme bobo, tipo um Clark Gable, se ele pensava, pensou mal. Se, minha ex-dona lhe diria, sei, que ali naquele lugar, ali ela é profissional médica, e só — ao menos eu imagino; e outra: embora tenha perseverado, não tem nem nunca teve ingerência sobre mim, ela bem sabe.
  Com olhos azuis em simetria àquelas caretas vincadas, tudo ajustado ao dialeto portenho que faz questão de manter — é com tais petrechos que exala seu charme fajuto entre tacanhas! —, ele a galanteava infantil e descaradamente. Maldoso pretendia me envenenar, supunha incutir porciúncula de ciúme em mim em relação à mulher que conheço há quinze anos e com quem vivi treze, nós que vez e outra na cama à época ainda nos embaraçávamos... Se ele pensava, caramba, tava demais enganado — quero que imploda, seu borra-botas, seu brocha confesso, seu fantasista encarquilhado, imaginoso de entrelaçar-se às coxas de meninas com minissaias de escola pública!
  Eu sentia vergonha e asco de ouvi-lo. Pedófilo!
  — Eu hein, que filho da puta! Ih, aí, o tempo tá abrindo...
Não, eu não sou como Elino Julião que não quer o pagamento do muito brabo Nascimento, não sou o Elino que quer, sim, “outro rabo no jumento” por Nascimento ter cepado o do animal só por que este comeu um pezinho de coentro de seu roçado, no, no quiero, no; mas quiero, sí, uno simple reconocimeinto: “Hací una tamaña cagada con tú, Germino... Disculpa.”.
  Se assim remediasse, talvez com a remendagem eu — tão bobo! —, eu o reconsiderasse.
  Num sei...
  — Eu não desculparia porra nenhuma! Pelo que tô vendo a sua cólera vem de detrás, há muito, num vem desse caso...
  É isso, foi isso. Te relatei o ocorrido com borda mas sem rebarba — no una mera versión, como ele conta pros seus e pra si mesmo. Num é q’eu esteja além, não, mas é que tô cansado pra daná de num saber e de saber.
  Ó só, lá vai o velho, cinco e quinze e vai lá o Seu Alfredo, só, arrasta pé pela servidão [com trocadilho, por obséquio], vai ao seu descanso. Vai Seu Alfredo, vai com este restolho de clareza rosácea, q’ela ainda te alumie e sobranceie os reveses lusco-fuscos deste dia; senão ela, ao surgir da que vem, a redonda. Vá! Inté...
  Assomo este episódio — desse imbróglio tem mais e noutro dia, que não seja uma quinta-feira, eu te conto —, o revelo a você por que neste mês ele aniversaria. Isso aconteceu na véspera da Independência e faz um ano, mas ainda me indigna. Peraí, arg, peraí, deix’eu vomitar... Aaarg...

 
Germino da Terra
Enviado por Germino da Terra em 14/09/2011
Alterado em 13/10/2011
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