retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


 a história de Metão, o Pequeno
de Gonçalo M. Tavares, in Histórias falsas, Casa da Palavra
Nele, o curioso não eram apenas as ideias, mas o modo de se apresentar aos outros. Uma túnica longa, nobre, mas no fim, estranhamente, os pés descalços, como um vagabundo. É a única maneira de sentir o espírito dos lugares, dizia.
  — Exterior ao homem nada existe que lhe seja estra­nho. Mãe maior é a terra, e nela vivem os mesmos ele­mentos que habitam o corpo. Andar descalço é dizer à antiga mãe que, afinal, não a esquecemos.
  Falava desta forma, como um professor. Discursos cujas ideias eram em parte suas, em grande parte de Empédocles, famoso filósofo, seu irmão mais velho.
Respeitado, devido à família de onde vinha e pelo seu comportamento próprio, Metão, o Pequeno, via em Empédocles a referência na sabedoria. Tal como este, ele acreditava que o mundo se regia por duas forças opostas: o amor e o ódio.
  O amor faz nascer as coisas, une elementos que antes viviam separados e deposita-lhes, de modo sagrado mas instantâneo, o movimento.
  À morte podemos chamar muitos nomes: O Que As­susta, O Que Nos Vem Buscar, A Mulher Mais Velha. Metão chamava-lhe apenas a que é Filha do Ódio, pois é o ódio ou a discórdia que separa os elementos e parte ao meio a harmonia, outra maneira afinal de dizer que ao meio quebra parte do movimento do mundo.
  Sensato, Metão, na vida política e prática, atuava como atua quem já sofreu o suficiente: olhava para os dois lados, pesava calmamente os dois extremos, as duas hipóteses-limite, e investia, então, com soberana tran­quilidade, pelo caminho do meio.
Mas falar de uma vida sem erros só é possível depois de assistir ao seu término.

  Tudo mudou em Metão, o Pequeno, depois de ope­rado por médicos que lhe garantiam a cura rápida de dores de cabeça violentas. Algo terá interferido nas coi­sas da ciência: da operação saiu outra pessoa. Pior.
  Séculos mais tarde, tornar-se-iam usuais operações onde se abria a cabeça para retirar a pedra da loucura, pedra que se dizia responsável por determinados atos desequilibrados. Neste caso, foi como se tivesse suce­dido o oposto: alguém infiltrou a rocha causadora de insensatez na cabeça de Metão. Outros, menos crédulos na ciência desses dias e mais convictos no terror sagrado de todos os milênios, diziam, entre si, que os médicos, depois de lhe abrirem o corpo, haviam-se esquecido, lá dentro, de um animal vermelho; de modo mais claro, e numa palavra: do demônio.
  Apaguemos a hipótese da loucura: essa rocha má pro­duz movimentos e ideias impossíveis de fixar, tal os saltos, os desacertos, os ritmos imprevisíveis. Em Metão, pelo contrário, o que se via era uma rigidez total: de homem conciliador, digno irmão mais novo do sábio Empédocles, passou para cabeça fixa, caminhos impla­cáveis, indiscutíveis. Parecia agora um daqueles leões sobreviventes à mãe leoa que atira os filhos, com apenas três dias, de um precipício, para selecionar os mais ap­tos, os mais fortes, os mais ferozes. Metão era um so­brevivente. Um agressivo sobrevivente.
  De sensato e ouvinte Metão nada guardara. Esqueci­do dentro do corpo, o demônio que agora o habitava tornara-o intolerante em relação ao erro. E de lembrar que se conta que um grande filósofo, já deitado, mori­bundo, naquela que sabia ser sua última noite de vida, ao ouvir uma mulher que tocava citara enganar-se numa nota, levantou o dedo indicador, assinalando para quem estava presente a falha musical da mulher. Metão era agora também sensível ao menor erro, qualquer que fosse a situação, mas ao contrário do grande filósofo ele não assinalava os erros para corrigir quem os fazia, assi­nalava-os sim como um juiz: errar à sua frente, mesmo na tarefa mais insignificante, era ter a certeza de receber palavras duras e humilhações.
  Há uma história oriental que nos pode ensinar algo nesta situação. E a de um monge que tem por tarefa le­var um mocho mágico, dentro de um saco, de um lado ao outro da cidade. O mocho diz-lhe: vou contar-te algumas histórias acerca da minha vida, atos bárbaros que pratiquei e atos generosos. Sempre que julgares os meus atos, eu desapareço e tu és obrigado a começar de novo. Assim foi: o animal contou então uma das suas façanhas medonhas e o monge não resistiu a dizer “Isso é mau!” De imediato o mocho desapareceu do saco e o homem viu-se obrigado a voltar ao ponto de partida, onde o animal mágico o esperava para relembrar: “Se me queres, não me podes julgar.”
  Falhou mais duas vezes o monge, pois a meio do ca­minho descuidava-se e, por palavras ou pensamentos, aprovava ou desaprovava as histórias contadas. A quar­ta tentativa conseguiu, finalmente. Ouviu histórias, do principio ao fim, e não as julgou. Conseguiu, assim, levar o mocho até o outro lado da cidade. A aprendiza­gem terminara.
  Como resumir, pois, o novo modo de Metão se rela­cionar com as pessoas? Assim, de uma vez, as consequên­cias: Metão deixou fugir todos os animais próximos. Dos muitos admiradores e dos antigos companheiros apenas, a seu lado, um resistiu: Tirceu; o mais velho e hei, cuja amizade profunda lhe fazia ser surdo à parte cruel de Metão.
  Falta aqui lembrar uma particularidade, antes de pros­seguirmos. Como se sabe, é nas pequenas coisas que muitas vezes se tornam visíveis as futuras ruínas. Metão, depois de os médicos lhe deixarem no cérebro esse mal vermelho que tantos assusta há tanto tempo, nunca mais suportou andar descalço. Aquilo que antes chama­va sagrado repreendia agora como sujidade. Particula­ridade significativa, esta.
  Voltemos, porém, aos acontecimentos. É necessário resumir os diversos atos de um homem, para que as biografias não durem tanto tempo como as vidas relatadas; e é possível e mais fácil fazê-lo quando, durante muitos anos, o que é feito se faz sempre em linha reta, sem flutuações.
  Agravou-se, assim, e muito, com os aros, o ódio ao Mundo manifestado por Metão. Lançador profissional da discórdia, Metão separou casais, acabou com a ami­zade entre irmãos (e dentre elas a sua com Empédocles) zangou irreversivelmente alguns pais com os seus filhos, alguns filhos com os seus pais; ganhou, em suma, quase um inimigo por cada dia.
  Surgiu então a hora em que o homem é chamado à razão. Chegada por mãos desconhecidas, Metão de Agrigento, irmão de Empédocles, lê uma carta onde percebe que Tirceu, seu velho e fiel amigo, irá envenenar com vinho nesse mesmo dia.
  Há quem diga que a carta foi escrita pelo próprio Tirceu, num último e ambíguo teste à personalidade de Metão.
  Terá recordado Metão, pelo choque, a sua vida an­terior? Terá sido a última frase da carta anônima que, depois de manifestar a tristeza pela perda do homem que Metão era antes sensato e equilibrado —, dizia: “De que honras, de que alturas & felicidade eu caí para andar aqui, sobre a terra, entre os mortais?”
  Terá sido a recordação de vidas anteriores?
Por dentro, ninguém pode saber o que sucede; mas por fora, no corpo e nos atos, quem viu pode dizer o que viu.
Conta-se, pois, que o final da vida de Metão foi ao nível do seu início. Numa palavra: com sabedoria.
  Recebendo nos seus aposentos Tirceu, Metão aceitou a oferta do vinho como se nada soubesse e, logo depois de beber calmamente o veneno, estendeu-lhe a carta que denunciava o ato de traição, dizendo:
  — Se até tu queres a minha morte, então é o momento.
  E assim, tranquilo, morreu.
 
Gonçalo M. Tavares
Enviado por Germino da Terra em 09/09/2011
Alterado em 22/10/2011
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras