retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


... foi quando ela disse
que tem se visto cada vez mais simples, e muitas vezes até simplória... que existem riscos nessa postura com a vida, e a maior é, com certeza, na tentativa de fugir da dor... e paralisar as emoções, dessensibilizar, se distanciar das coisas que emocionam... Foi quando eu num guento e, enfim, corto: Risco?!, parece que você está atolada numa areia movediça. Ou está atolada ou está precisando radicalizar sua nova pessoa—postura pra firmar essa imagem não apenas aos outros, mas pra si! De qualquer forma, prefiro acreditar que assim seja a acreditar que dormi na varanda por anos, sem saber! Agora, me permita um alerta: cuidado!, cuidado porque nós não somos tão flexíveis, maleáveis assim que possamos atuar com fidedignidade o tempo todo. Chegará a hora em que a plateia perceberá que quem está atuando é uma atriz amadora. Pior, você mesma perceberá uma falsa coreografia, uma fala forçada, um diálogo muito mal redigido — ridículo mesmo! —, tudo encenado numa cenografia artificial à beça. Aí corre o risco de gaguejar, tropeçar nos próprios pés e a máscara acabará caindo. E que vexame! Vexame pra si própria! Forçar uma barra é barra! Baixam-se as cortinas, acaba que parecemos meio sonsos. Você sabe, eu já tentei e me estrepei. Lembra de meu buscar pelo pragmatismo, em 96?
  Podemos estar na vida levemente, continuo, mas com densidade. Uma atitude não exclui a outra, muito pelo contrário, se complementam. É difícil? Mas ninguém disse que é fácil. Emendo que desejar as coisas simples, desejar ser simples não é a mesma coisa que se debandar pro simplismo! Aliás, pra atingir a simplicidade tem-se que ser bastante complexo.
  Isso parece uma contradição, um contra-senso? Mas olha, ser simples requer um exercício diário tão complexo que passamos, às vezes passamos toda uma vida sem conseguir alcançar. Podemos até achar que agindo assim ou assado somos simples, mas aí pode ser que tenhamos caído naqueles tais “riscos”... e não percebendo — acabamos agindo pela metade, sem inteireza.
   Outra coisa, e que poderia ser a primeira: indagora você se confundiu com o adjetivo “simplório” que quer dizer tolo, ingênuo, e acho que não quer se sentir assim, pateta, né?! Assim como na ocasião em que escreveu o conto Domingo no catre e trocou de substantivo, quis dizer o primeiro dia da semana na “alcova” ou no “quarto”, o que fosse. Visto que a protagonista Ana ensimesmando-se dele saía e entrava com uma estatueta, um souvenir pra lá de cafona (ou como escreveu eufemisticamente, kitsch, pra não magoar quem a presenteou); do catre levanta-se, deita-se ou senta-se... Ela não passou aquele dia numa pequena cama, mas no aposento onde normalmente há uma. Aquele texto intimista é bem bom, mas vê, ouça um bom conselho, reveja o título. Se quiser deixá-lo “poético”, use alcova, mas, pô, de cara cambiar cu com bunda! Ambos se localizam na mesma latitude do meridiano corporal, mas têm pouco a ver no sentido literal...

Ela me convidara pra tomar uma cerveja, conversar. Eu pergunto pra quê?, você já disse tudo na carta que me mandou por e-mail; eu te disse tudo por e-mail, embora ache que essas coisas têm de ser ditas cara a cara — dá dignidade à história, ao fim dela —, eu apenas usei o mesmo veículo.
  Eu, sem carro, na porteira aguardo ela chegar. Entro no Gol preto e vamos pela estrada de terra... Aonde você tá indo, onde quer ir? Sei lá, conversar, ela foi dirigindo; eu ao lado, sério. Ela tentando aliviar deixando uma brisa entrar entre em nós; eu objetivando. Fomos indo até chegarmos num bar-mercearia onde antigamente era uma venda, quase birosca. Sentamos à mesa, uma grande, debaixo dum enorme fícus. Ar morno, havia um perfume suave no ar que agradou e fez lembrar de certa vez, nós lá em casa quando perguntei a ela, sentindo esse aroma do jardim, perguntei se ela gostava de manacá, e ela, “Manacá, é de comer?” Lembrando isso, isso me irritou. Àquela época, ainda nos iniciávamos; agora a ignorância irritou, essa mulher é minhoca e não conhece nada da roça, de sua terra; eu que sou de Ipanema, Montenegro... Não tô nem afim de lembrá-la como nesses anos brincamos de lembrar daquele dia que quis degustar um arbusto de meu jardim. Quanta ignorância de seu ambiente com a desculpa de se ocupar hipocraticamente, nem se medica com remédio, apenas remedeia!
  Você insiste em ser duro comigo... até pensando, tô percebendo, sentindo.
  Olha, você quer falar de quê, da gente? Tá, falaremos, mas de dois anos pra cá, do agora — pra trás esgotamos, esgotei o enredo. Tô cheio. É, é ficarmos numa masturbação eterna, sem nem gozar! Agora?, do agora não tenho motivos, não. É? Então tá, é pura maluquice mesmo, né!? Depois eu é que sou tachado de louco por você e seus pares, seus asseclas. Você foi muito duro comigo no e-mail, tá sendo... eu não mereço isso. Olha, peraí! Eu é que não mereço, sem motivo do agora, não mereço ser comunicado de sua decisão, comunicado por e-mail sem motivo do agora! Depois da merda que fiz, fiz com você, com motivo ou sem —, depois de dois anos você que se aproximou e eu fiquei, fiquei na ilusão de que estávamos tentando estar juntos novamente. Mas que nada! Você, na sua conveniência, nas suas quintas-feiras vai lá em casa beber umas cervejas, papear e dar umazinha... convenientemente. Ó, já te disse: sou bobo mas não imbecil! Se sou, sou por algum tempo apenas. Chega! Você foi muito duro comigo, fala de caráter, falha, falta... Fui duro sim, mas fui contundente num vocabular próprio, sem clichês, bordões, enquanto você... Eu abuso dos três pontinhos, sei; você sublima sublinhando as reticências, escamoteia o que pensa, o que sente, o que quer. Clichês? Bordões? Eu? É, e olha: é o que estou percebendo depois de tanto tempo — dezesseis anos! Estou percebendo que quando nos conhecemos você era o que demonstra ser hoje. Ontem você era hoje: uma complexa simplória que nem chegava... nem chega ser um paradoxismo, apenas uma grande incongruidade oblíqua... E eu nem percebi.

A cerveja entremeada com uns goles de cachaça destilaram minha tensão e a deixam animada, a conversa cai no banal. O bar baixando as portas, zarpamos. Em frente à porteira aqui de casa nos abraçamos e nos beijamos... Você não quer entrar, beber mais uma cerveja, conversar mais um bocado... Tenho uns textos que queria que você lesse... Entramos. Mostrei uma carta que escrevi, uma entremeada com uns versos e ilustrações que a ela enviara e não recebeu. Boicote das pessoas da sua casa, eu disse. Pus umas músicas no computador, umas que eram a gente e fomos ao quarto, pra cama. Não namoramos, trepamos — eu com tesão mas sem entusiasmo; ela sem entusiasmo mas com tesão.
Naquele dia, quando nos reencontramos depois de alguns dias, naquele dia achei que aquela meiguice continha uma ponta de deboche, de sarcasmo, utilitarismo. Ela não quer se distanciar eu enxergando sua imagem maculada e demais auto centrada!
  Que agressividade a dele, até pensando, tô sentindo...

Quem faz uso imoderado da espora, termina por matar a montaria.

Não sabiam, apenas achavam um do outro que suas atitudes eram uma espécie de defesa de cada um... Ei, peraí... Ambos acharam que aquilo fora mais que um reencontro, foi um desencontro, um desencanto. Ah, isso sim, foi, isso foi sim.
Ela está ensaiando sua nova pessoa pra estrear sua nova peça no palco da vida, eu; ela, depois de tanto tempo, como pôde ser tão duro comigo, sem delicadeza, não tem motivos, é por isso, assim... — perguntamos reafirmando a nós mesmos.

Em casa, só, eu: ... estou escrevendo isso e escutando o Miscelânea II, que te fiz. Preste atenção na quarta música, a Todo sentimento, essa é uma ideia original de delicadeza simples, simples sem correr o risco de cair no banal, na mesmice, numa rigidez inflexível e burra, burra e tacanha como sempre agi assim e assim!... Preste atenção na Yolanda, a penúltima. Preste atenção na Sua estupidez. Preste atenção, eternamente preste atenção! E, ó, repito: ser simples não é ser simplório — é o contrário!
Em casa, só, ela: ... é, preciso exercitar mais, ensaiar mais, mais um bocado. Ele percebeu, sacou de cara que ainda sou amadora, semelhando uma tremenda canastrona...
 
Germino da Terra
Enviado por Germino da Terra em 05/09/2011
Alterado em 10/09/2011
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