retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


A inclassificável obra-prima de Macedonio Fernández
por ALEX SENS FUZIY em 25/04/2011 na Revista Bula

“Este vai ser o romance que mais vezes terá sido jogado com violência no chão, e outras recolhido com avidez. Que outro autor poderia se vangloriar disso?” A pergunta instiga e confunde, influenciando o leitor com a dualidade inerente de quem quer provocar e causar reações diversas. Também poderia estar facilmente na abertura desta resenha sem as aspas, como se fossem minhas as palavras de quem as escreveu, transformando o livro num consequente alvo de críticas impiedosas. A declaração nada tem de desonesta ou apelativa: com “Museu do Romance da Eterna” (266 páginas, Cosac Naify, tradução de Gênese Andrade) o leitor pode oscilar entre um caso de amor inopinado e outro de ódio gerado pelo enfado. Contudo, mais do que jogar com a sensibilidade do leitor, a forma de atingi-lo prova por si mesma seu feito artístico.
  A declaração faz parte de um dos 59 prólogos do romance escrito por Macedonio Fernández, principal figura da literatura moderna argentina e influência decisiva para Jorge Luis Borges e Julio Cortázar. Cada prólogo, como que numa contagem progressiva para o romance propriamente dito, tem suas características, e todos convergem para dois pontos: o olhar metafísico de Macedonio e a teoria do romance — seu e de outros. A preparação para o romance é construída, destruída e reconstruída diversas vezes, entre teorias, filosofias, análises literárias, críticas, conversas com o leitor, colocando seus personagens como seres sencientes, ausentes ou presentes, que concordam ou discordam das decisões do autor: “pois meus personagens são todos ligeiríssimos: no instante em que deixo de escrever, eles deixam de fazer; se eu não trabalho, fica tudo parado”. Loucura? Não. Criatividade funda, experimentada, cozida, mastigada, testada para trincar os dentes mais sensíveis. O romance, tão aguardado, tão postergado, chega quando a crença nele já começava a se desfazer e então se torna lugar: uma estância de 100 hectares chamada “O Romance”, para onde vai um homem que ficou viúvo e onde moram os personagens que discutem seus papéis no valezinho de nome ambíguo. Depois de fluir continuamente por neologismos e teorias estéticas, plásticas, o autor desemboca num jogo entre personagens conscientes de seus papéis na ficção, o leitor diante desses personagens, a voz narrativa como Deus de toda a criação exposta, e entre introduções e diálogos que esbarram num caráter mais cênico, como se estivéssemos diante de uma Dogville de marionetes, conhecemos este viúvo, criador de um mundo onde a morte não existe e Eterna, sua amada esposa, pode ser, então, eternizada.
  Claro que escrever o difícil e inventivo não se atreve a significar escrever de forma apática ou irrefletida. Macedonio começou a criação de “Museu do Romance da Eterna” em 1904, e por 48 anos escreveu e reescreveu até a morte esta que seria sua obra-prima, sem nunca tê-la visto publicada. “Fiz o que pude para que na cerzidura de múltiplas passagens de minha prosa romanesca, que arrasta consigo infatigáveis remendos de revisão, não se percebam as costuras; e me orgulho de confessar o que ninguém descobriria, porque se algum livro custou trabalho foi este, e creio que toda arte é trabalho, e muito árduo”, registrou o autor no prólogo 5. Mais tarde enfatiza: “Repito: pretendo fazer o primeiro romance genuinamente artístico. E também o último dos pseudorromances: o meu fará último o que o preceda, pois não se insistirá mais neles.” O autor que escreveu “abomino todo realismo” prova o quanto pode ser livre com sua criação ao mesmo tempo em que se amarra às contínuas lapidações de um texto que cresce, avoluma e deforma à medida que a vida passa e o amadurecimento estilístico, moderno e cheio de bons riscos, altera significativamente seus valores e sentidos.
  Para entender Macedonio, é preciso dialogar com a possibilidade da morte e com o próprio autor já morto, através de seu olhar mais claro sobre as peças principais do romance, os personagens: “Nossos personagens são uma ‘população heterogênea’ de pretendentes, ignorados, aludidos e efetivos personagens do romance; ainda há os personagens variáveis de figuração e outros atuando com nomes diferentes. E de sobra o personagem da não existência. E há, do lado de fora, o personagem que sonha com o romance e o personagem com quem o romance sonha.”
  O projeto gráfico do livro, criado por Elaine Ramos, é outro grandioso atrativo desta edição da Cosac Naify. O objeto já evoca, visualmente, toda a radicalidade da literatura de Macedonio Fernández. Como que rascunhos espalhados e aparentemente empilhados sem cuidado, as folhas não são refiladas na lateral direita e tem diferentes tamanhos; os prólogos não têm paginação e são emoldurados como quadros de aviso que antecipam a chegada do romance; capa, quarta capa e contracapas são preenchidas pelo texto do livro, além de toda a parte externa ser coberta por um papel especial permeável às marcas do tempo, sujeito ao envelhecimento, ao aspecto de manuseado, de coisa íntima, como são os manuscritos de todo escritor que preza por sua desorganização criativa.
  Ler Macedonio Fernández, sobretudo “Museu do Romance da Eterna”, é ler a natureza da inventividade, da possibilidade que a linguagem, ou metalinguagem, carrega. É preciso um distanciamento, um olhar livre dos preconceitos concebidos por boa parte da literatura e pelo mercado editorial, com seus autores já embutidos em classes cheias de regras tanto estilísticas quanto comportamentais. O autor adverte: “Quero que o leitor saiba sempre que está lendo um romance, e não vendo um viver, não presenciando ‘vida’”. A despeito dessas palavras, a vida está tanto no livro quanto fora dele, assim como na leitura e na presença do leitor que, às vezes, também precisa se fazer de personagem.
 
ALEX SENS FUZIY
Enviado por Germino da Terra em 13/08/2011
Alterado em 08/10/2011
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