retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


Paiol Velho, um dia qualquer.

“Ê
Açucena, o dia todo foi muito complicado. Demais! Eu não estou nada bem de saúde faz tempo. Um mês, mês e pouco. Já fui ao médico, fiz exame de sangue, fui medicada... tô há vinte dias bebendo um remédio horrível!, e nada. De verdade, melhorei um tiquinho, pouquinha coisa. Sabe quê que é?, é que tô acostumada com minha energia, sempre disposta a tudo, tudo é curiosidade pra mim; agora não, tô um bagaço de dar dó!
  “Fico vendo o Líder, e ele, muito por mim, sei, ele tá um trapo. Vê minha irmã toda serelepe e faceira (até me enche o saco com sua agitação). Eu aqui, assim... ele vendo a gente — sei que nos comparando —, me vê desse jeito, eu com costelas aparecidas, uma baba que cisma escorrer pelo canto da boca. Tudo enfadonho, sem graça — tédio! Quero melhorar, voltar ao que sou — por mim mesma, claro, mas muito por ele. Sei que ele tá angustiado, sem saber direito o que me acontece, o que fazer. Telefona toda hora pra minha médica mas não consegue lhe falar. Não tem carro pra me levar até ela... Sem saber o que me acontece, fica ampliando as coisas, abstraindo do próprio abstrato coisas esquisitas, coisas mais abstratas ainda, que nem dão em nadas — só besteira.
  “Agora de tarde, nós aqui em baixo no quintal, agora pensei tanta coisa, até besteira. Sabe, tenho uma espécie de telepatia com ele, e osmose: ele pensa, eu penso; ele sente, eu sinto. Num sei se isso é bom, se é ruim; sei que é assim, somos assim. Nessa minha fase então, nessa dele...
  “Hoje à tarde ele saiu pra brincar conosco umas quatro vezes. Saía e voltava pra sua casa, nos deixando na nossa. Teve a vez, a penúltima, essa foi até engraçada, senão patética: eu e minha irmã estávamos pelo quintal, no gramado à toa, cada uma entretida com uma coisa qualquer... quando nosso vizinho chega à porteira. Disparamos até ele, claro. Chegando lá, lá perto: ‘AQUI! AQUI!!!, VÊM! VÊM!!!’ Fomos, voltamos né — comando é comando. ‘Tá garoando, vêm, entra’. Não foram uns ‘aqui, vêm’ normais — foram aqueles brabos — e os aiaiais entremeados?; ‘garoando’?, que nada, apenas uma desculpa esfarrapada. Entramos pra casa, ele baixou a cortina e ‘Pronto! Vão comer, dormir!’ Acabou a tarde, intuímos, e inda era cedo... Foi lá pro seu alpendre, ficou ouvindo umas músicas, um piano triste, um sax com bandoneon bonitos — eu gosto dessas músicas —, mas tristes também... O sol surge, aquela luz já rosácea, deu um tempo e nos chama pra sair de novo: ‘Liberdade’. Pela quarta vez, quarta!
  “Ele cisma que nosso vizinho não é o, mas um vagabundo; nós?, damas. Sei, ele vive referindo um livro que leu quando criança, viu a história no cinema com seus filhos e diz que o caso acabou bem, que até macarrão os dois protagonistas comeram juntos e assim se beijaram e bababá..., mas diz que ‘Aquilo foi há muito tempo, noutro lugar, longe’. Agora, na situação dele, na nossa, nesses tempos...?! De verdade, é quase isso: nosso vizinho, aquele se acha, se acha o Don Juan do pedaço. É simpático e galanteador — carismático —, de aparência bem mais ou menos, tipo boa pinta, maior lábia. É mais velho que a gente — bem mais, quase coroa —, e embora more aqui na região antes mesmo de termos nascido, é doutras quebradas, nem sei donde, ninguém sabe. Ninguém conhece seus pais, vive por aí perambulando pela estrada, pelas beiradas vai beirando as casas se achegando de mansinho, na moita. Vive à margem, nunca estudou comportamento, comando algum. Carca umas e outras desavisadas, as que dão mole. ‘É um pedófilo promíscuo!’, nosso líder diz, xinga. Minha irmã, é, ela — a sem-vergonha! —, com apenas oito meses deu esse mole praquilo duro, aquilo ereto, intumescido, entende? Ele quem pegou, pegou os dois no flagra, na safadeza. Deu um trabalhão tirar meus quase futuros sobrinhos dela, da barriga dela.
  “Logo depois desse caso da minha irmã, que ficou mal à beça, depois eu que fiquei no maior bagaço, sei lá por quê. Não sei quê que tenho. Sei que tô fraca, abobada. A médica diz que é falta de ferro, não aquele que a galinha da Alfa experimentou, mas o mineral mesmo. Ele me deu 10 ml desse troço todo dia, durante 20 dias, mas só agora percebeu que a doutora me prescreveu 20 ml... e ele me dando apenas 10. Eu entendo, ele tá tão confuso...
  “O cara, ele — não o vizinho vagabundo, mas o Líder —, ele tá bastante perturbado. Eu tô mal, e esse mal tá lhe fazendo um mal danado. Já é meio bastante encucado com sua própria situação, com a vida em si, que imagino complicada. Eu não entendo direito mas sei que a dos humanos é bem confusa!
  “Ele ainda fica lendo um sujeito que diz que qualquer sensação, mesmo a agradável, se transforma em dor; o prazer é um sonho apenas. Não sei por que ele fica lendo esse sujeito, um alemão casmurro (acho até que já morreu... de pessimismo).
  “É nisso que dá: acontece qualquer coisa, coisa ruim como tá acontecendo comigo, como aconteceu com minha irmã, como tá acontecendo com ele, e parece já um tempão, então fica assim cabisbaixo, jururu, sorumbático. Quando você ainda vinha aqui, quando você ainda vinha ver ele, aí ele passava uns dias mais animado. Vez em quando você o tirava dessas quatro cercas farpadas, iam papeando por aí, e aqui pelo quintal, lá em cima... Até dormir dormia com ele (eu acho que vocês se davam uns amassos, até umazinhas deviam dar). Isso o deixava mais animado. Mas, sozinho, aí vem novamente o emburrado germânico e diz que o prazer é apenas uma quimera, diz que a dor é que revela o mundo... Pô, um sujeito que escreve, olha só, Contribuições à doutrina do sofrimento do mundo, nossa, quem ‘guenta! Mas também fez Os dois problemas fundamentais da ética, que até dá pra encarar...
  “Vez e outra lê um livro que pediu aos seus filhos, de dia dos pais. Esse livro estava em sua lista e nem sabe bem como foi parar lá. Imaginava ser de contos, ficção, até pelo título — Se uma criança, numa manhã de verão... Mas não, é dum crítico literário, depois foi que viu o subtítulo, Carta para meu filho sobre o amor pelos livros. É um ensaio diferente, bem diferente, escrito como epístola por um italiano. Tá achando bastante interessante! E é sim, sabe Açucena. O latino vai falando à criança, vai falando sobre uns autores que escreveram faz tempo (eu nem era nascida), pra crianças e jovens, pros adultos e coroas, aos velhos, diz que todos deveriam ler e pensar sobre aqueles textos, ou reler pra melhor entenderem essa barafunda às suas voltas. Ele fica doido pra ler, reler os caras com novos olhos, com o olhar das sacações do tal alessandrino. Quando ele começar a ler, vou espiar e te conto.
  “O cara fala da Ilha do tesouro — do desassossego, em transpor o medo; d’O apanhador no campo de centeio — da dúvida que se nos impõe, da transgressão; fala d’A terra desolada e d’O canto de amor de John Alfred Prufrock — de como a existência pode nos escapulir tenuamente sem que saibamos panhar nela o que tem de melhor, nem perdendo a integridade nem a dignidade; d’O náufrago — a criatividade e a perseverança... Fala das sutilezas que têm nesses escritos, de seus personagens, sempre se dirigindo ao seu pequerrucho Francesco, que crescendo irá perceber isso e aquilo e muitas coisas mais. Também fala de música, que devemos fazer uma releitura dela, relacionando as duas formas de expressão — música e texto (o autor-pai ou pai-missivista, também toca um instrumento, piano de cauda — que luxo! —, sem ser músico que viva de música, só aprecia). O penúltimo capítulo, que é praticamente o final do livro, tem o título Certo dia no castelo, um velho... O cara dá vida aos personagens das histórias que falou, e mais a uns outros que o pequeno Francesco conhece e interage. Reúne essa turma toda no pátio dum castelo e ressuscita um tal de Borges, põe esse velho de 84 anos a lhes falar, fazer uma conferência. Como era cego, o homem fora com uma acompanhante ruiva, e uma bengala... Sentou-se e falou sobre livro, a palavra... escrita. Termina esse capítulo, a conferência, mais ou menos referindo o subtítulo do livro, através do argentino Borges: todas as coisas do mundo levam a uma citação ou a um livro...
  “O Líder achou isso tão indestrutível. Final tão louco quanto foram os escritos do velho ressuscitado, ele quando vivo, quanto esse livro todo do italiano: mistura de uma longa carta com ficção; ensaio e encantamento.
  “Tem vezes, sabe Açucena, ele leva o livro ao quintal, sempre de tardinha, naquela hora q’eu e minha irmã ficamos por ali. Senta à mesa debaixo do jamelão, e tão entretido fica que esquece da gente. Se quisermos, podemos aprontar a merda que for e ele nem tá ali...
  “Pensa em te escrever, escrever coisas à toa, mas se acha ridículo, das vezes dos ridículos que te escreveu. E lembra dum cara que disse que ‘Só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas...’, um portuga, um tal Alvaro de Campos — mas sabe, Açucena, acho, seu nome de verdade nem não era esse, não. Nem sei, nem assim...
  “Por que não relê mais esse italiano e aqueles caras duma vez, os que são referidos, os que fica curioso reler (eu acho que fica frustrado porque não mais os têm, nenhum, nenhum naquela barafunda dele)? Mas não, volta e meia pega o tal do alemão...
  “Numa coisa ele tem razão, pegou bem desse, pelo menos eu acho: aquela amizade, namoro, sei lá o que vocês dois tinham, aquilo tinha de ter e ser prazer & dor — os dois —, as duas coisas bem balanceadas. Ter sem ser; ser sem ter?, apenas um — o que você sugeria querer, não dá, não deu. Só prazer é planar feito borboleta boba a gargalhar com seu primeiro encanto bobo; só dor é arder no inferno, feito brasa! Tem-se que entremear um noutro, outro num.
  "É como cozinhar, dizia uma velha senhora, uma experiente labrador adotada por uma certa Ramsay, esta que vivia no imaginário duma inconformista lá na Grã-Bretanha, perto do mar, dum farol, uma que se chamava V. W.: coloca-se os ingredientes — prazer & dor — na relação; mexe mexe mexe, os próprios dois mexem sem deixar ninguém meter a colher, e mexendo vão temperando a gosto, ao gosto dos próprios dois. Pronto? Pronto nada! Vez em quando, com o tempo voltam a acrescentar mais tempero, uns diferentes, porque o paladar vai mudando com a mesmice; quando estiver esfriando, dá-se uma aquecida de leve (relação fria é horrível, insípida, e ela sempre esfria, sempre!); vai-se apurando, provando, aquecendo — nunca aquecer em banho-maria, nunca!, por que o sabor fica insosso, falso... Assim, seguindo essa receita, acrescentando criatividade própria, original, tem-se uma relação de sustânça... e saborosa. Ele sabe disso, conhece essa receita, mas...
  “Mas, e agora, ele não vinha seguindo passo-a-passo a receita? É isso que o encuca: concluir que juntos você não vislumbra nenhum pote de ouro por detrás do arco-íris, que vocês dois juntos são um sem graça enjoativo, ao contrário da receita daquela velha senhora... Eu acho que isso é que tá lhe fazendo sentir um sabor azedo, amargo, botando tanta minhoca na cabeça, assim entendendo como que nunca tenham arado nem adubado seu jardim, que não deixaram húmus. Apenas cagaram em sua cabeça, na dele, e só agora percebendo os excrementos pútridos lhe pingarem como suor e lágrimas pelos cornos, sem que tenha sobrevivido florescência alguma pros seus amiguinhos beijarem flores, se alimentarem. Desculpa, mas é assim que eu sinto o que ele sente.
  “Do seu jeito — dizem ‘jeito esquisito’ — ele escreveu colocando sua situação prumas amigas, umas novas que nem conheço. Mas nada, nada lhe disseram. Não entenderam ou entenderam como pura ficção, ou não quiseram se meter. Sei lá. Ele não sabe ou não quer — acho que tem vergonha, as pessoas tendo suas próprias confusões —, não quer lhes ocupar. Não quer ser direto e objetivo em certas coisas, coisas de sua intimidade, ele sem intimidade, então lhes ceva ficcionando por metáforas, e assim vai pescando o que dá... Uma outra que vivia lhe chamando pra ir proutro canto, pra voltar a criar uns bichinhos que zunzumbinam, uns que ele com tanto encanto criou aqui por muito tempo, essa foi pra bem longe, lá pra perto donde morava aquela velha labrador da receita. De lá ainda lhe escreve. Ela era, é, gente boa à beça, precisa conhecer. Completamente diferente, eu e ela fizemos um bonito contraste, eu acho — alvinegro. Antes dela viajar, ele fez um monte de foto da gente, de mim e minha irmã com ela. Mas o avoado não encaixou direito o filme na câmera... Ela também fez, eu e Alfa com ele, com a câmera dela, e levou.
  “Ele chegou do Rio segunda-feira e percebi que chegou meio acabrunhado e bebido. Subiu pra sua casa, sentou e escreveu sem parar, bebendo o que trouxera, escutando aquelas músicas dele; na terça pediu prum táxi trazer mais bebida e mais cigarro; na quarta, no meio da manhã, parou de escrever e pediu mais bebida e cigarro ao taxista, o Ruck, lhe dando um envelope com o que tinha escrito — eu acho que pra você. A cachaça dá até quinta; ela acabando, será que vai se aprumar, tomar um banho, tirar esses trapos que veste, vestir uma roupa melhorzinha e ir à cidade? Pô, pelo menos indo lá, se distrai, vê coisas e pessoas diferentes, vai aos Correios ver se lhe chegou alguma coisa (ele fica tão contente quando trás uma cartinha na mão). Mas não, quer ver?, vai ser a mesma coisa: vai ficar com a mesma roupa que tá há quatro dias, uma que acorda, perambula por aqui e dorme; mais um dia sem tomar banho (eu sei, é só olhar seu cabelo: tá que nem um ninho de mafagafa com três magafafinhos, gomoso, argh); com a desculpa de não tomar banho, não poda as unhas, elas que ‘tão que nem daquele cara que faz filme de terror, um horror!; fuma que nem uma chaminé de fazer carvão, ele com o pulmão que mais parece um balão furado; bebe que nem não sei o quê, com aquele fígado esponjoso, mas duro; e só, só naquele computador (não sei que graça tem aquilo); e o barbão?, aquilo tudo branco. Podou no Rio, mas podou porque seus pais e seus filhos lhe encheram o saco, garanto.
  “Sabe, tenho até medo que ele tenha um treco, levando a vida assim completamente despirocado, adoeça, e aí tenha de ir, que ele vá pra lá, lá pro beleléu...
  “Ah, se ao menos eu melhorasse... Aí, tenho certeza, ele arribaria um bocado. A sensação que me dá, Açucena, a impressão que tenho é que ele fica tentando se lembrar duns versos que escreveu há muito, numa aula de Português quando ainda jovem e cursava, acho, o científico:
‘Tiquetaque!
E vou tiquetaqueando...
Sem corda, falho (tique-taque).
Ando, tique... tropeçando taque.
Cansado, paro!
Tem-se que dar corda!, me dizem.
E prossigo falhando: tiq... taq...
Mais desiludido ainda, esgoto.
Crak!’
  “Acho que silente lembra que escrevera assim — nem sabe mais. O que me assombra nesses versos é que, parece, ele tenta resgatar uma coisa que lhe ecoa, aconteceu e não lembra, uma coisa sólida de tão frágil, busca uma coisa cheia, mas vazia... e desiste. Só, e seu fino humor inspirador do gaúcho Quintana:
Minha morte nasceu quando eu nasci.
Despertou, balbuciou, cresceu comigo...
  “Ele fica aí triste, me vendo assim caída; eu vendo ele assim caidaço, fico triste...
“Mas que dia, hein Açucena, vou te contar. E esse tempo, hein, que friiio! E cê sabia, cê soube da Suzy & Rê, aquele simpático casal SRD? Nossa!!! Nem te falo... noutra te conto.
  “Lambidas carinhosas da Amiga.
  Paiol Velho... domingo, quando cai a tarde.
  Um qualquer de agosto de 2004.
  Domingo é domingo!, não importa qual nem onde — os piores, sei, são os de dezembro, esses acabrunham mais, quase matam de solidão.
  “Em tempo: olha, amiga (posso te considerar assim?), tô te dizendo isso, isso tudo, essa minha impressão desse dia, desses dias, sem nem que ele saiba — é de fêmea pra fêmea, viu. É que a barra aqui tá pesando e faço isso meio como que pedindo penico, no sufoco. Faço por que sei que vocês se consideram demais, e você foi quem foi junto lá onde nasci me trazer pra cá, eu e minha irmã Alfa, nós nenéns. Viemos pra morar aqui juntas dele, e você até me deu esse nome que agrado tanto... Lembra, isso faz ano? É, fará nesses dias d’agora, nosso 1o aniversário.”

 
Germino da Terra
Enviado por Germino da Terra em 30/07/2011
Alterado em 03/05/2012
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