retalhos cerzidos

"eles passarão... eu passarinho"

Textos


Paiol Velho, tarde de quarta-feira, 19 de janeiro de 2011.

Açucena,
não há como não falar de tristeza, sua espessura já ultrapassa qualquer tentativa de desestorvar. Não é tão simples quanto parece, ser triste. Isto é sentir, e quem se dispõe a senti-la em si e no outro, sente variadas vezes... Sobrepõe. Não, poucos se propõem a se entristecer pelo mundo — prefere-se a felicidade aparente à expressão de qualquer sentimento insatisfeito, manifesto, prevalente.
  Se for disso que se vive, a mim não interessa; prefiro dispor da minha hipocrisia doutra maneira, bem mais pesada, bem mais aflitiva. Tenho buscado desesperadamente não me envolver, não destinar nem destilar meus sentimentos em coisas que considero inúteis ou dores vãs. Mas o que posso fazer se tudo que há é essa tristeza, essa carga? O que posso contra essa tristeza que se me adentra como uma minha propriedade, se a ela alia-se uma angústia que macera e se decanta em minh’alma, que se me desfaz um tanto em uns poucos?
  Eu me desmaterializava cada vez que estava contigo, Açucena, parecendo ir até o infinito; e no infindo contigo sugeria me levar aos conhecidos desconhecidos, nos quais a entrada era proibida só a mim, à minha individualidade, à minha original defesa desesperada de você, quando em sua conveniência, empertigada e de cenho franzido — muita vez de dedo em riste — dizia que de você cuidava você.
  São desencontros a nos cercar e que fizeram o ir e vir. Não, não é só isso. Paro de me enganar dessa forma. Sou eu — tudo sou eu. A vontade era minha e por isso fui. Tenho de parar de culpar as circunstâncias, o outro. Sou eu. E apenas isso. Talvez minha convicção íntima seja uma maneira de salvação de minha própria vida agarrada à realidade e que me fora imposta sem nem condoído algum. Talvez eu use desse abandono, a força que dele fizera nascer em mim e que se me instaurara aos poucos. Sim, eu noto, eu sinto, eu enxergo.
  O abandono é ainda uma forma de amar, mas também de insatisfação profunda consigo ou com outro. A saliência da questão é descobrir isto. A toa descobrindo não culpamos o outro, não o machucamos com gratuidade. Porque se todas as convicções fossem destruídas antes de sua construção, teríamos apenas convicções imaginárias.
  Era assim que você agia quando vez e outra cheguei perto — ou, como você e os seus diziam, quando eu tentava chegar junto. Mas me destruíam antes q’eu pudesse instalar os alicerces daquilo que tentava construir. Me tornei, dessa maneira, algo que habitava apenas o seu ilusório — o dos outros, deles sucumbi.
  Quando eu partia, ia com medo, sim, mas apenas utilizando minhas asas, e se não fossem funestas, de Ícaro, elas me levariam longe. Não importa que fossem além de você, que importava se mensageiro algum me chegasse com notícias suas?! O q’eu poderia assegurar é que se realmente partisse você nunca me encontraria aqui. Não, que não esperasse — se ainda tivesse qualquer coisa a esperar. Nem sabia se era coisa interessante ou se sofrida. Isso eu descobriria depois, bem depois de ter vivido e bem depois de sofrido.
  Quando eu partia não olhava pra trás, sem tentar recompor portas a se quebrarem, os vidros a se estilhaçarem, nem as dores ainda não doídas. Por mais que tentasse remediar, elas permaneceram no estado em q’eu as deixei, alquebradas, e nem meus olhos puderam agir. Há coisas que, quando não pensadas, ferem mais que a simulação, que a dissimulação; há coisas que pesam bastante pra que um amor suporte. Sentimento algum merece esse peso — é à leveza q’ele se apega e por ela é capaz de caminhar desarrazoadamente, sem temer nada, sem procurar explicação, sem buscar no passado armas que causem as feridas mais profundas num repente vivido, e n’algum porvir.
  Mensurar qualquer recebimento e qualquer oferecimento é inócuo!
  Não me imaginava conluiado ao mundico de principado algum; e também à fórmula alguma, maneira alguma de lidar com as adversidades que certamente se me imporiam. Apenas ia indo enquanto me restava uma nesga do fio de minha meada. Era isso, só isso.
  Não me vejo mais em você, não consigo mais te ver como referencial — em quaisquer circunstâncias. Não, te amei incondicionalmente, sim, mas as condições não eram do amor, eram minhas, todas elas. O meu amor por você tinha algumas exigências que te soavam como regras, mas não eram nada disso, não eram regras. Eram a valia e o respeito por você, pelo amor e por tudo que cerceava a existência em comum gerada pelo sentimento traquino e delicioso, maligno e revigorante — duas palavras em uma: conversação & tesão.
  Nada pude contra ele, o amor; é verdade, o que fiz não era contra ele, era contra nós mesmos, através de nós o destruí. Infelizmente não vi, nós não vimos que arcamos com os danos patentes, pungentes. Depois de tentar contradizê-lo nos semelhamos a um papel rascunhado e lotado de rasuras.
É assim que me sinto. A metáfora do papel delata como tenho me sentido nesses últimos dias, isto pra não falar das últimas horas, doídas demais. O que eu posso fazer?, me diga. A receita que se aplica a muitas pessoas não faz efeito em mim; nem imagino tal arcano, se há alguma fórmula que ainda possa alterar esse hoje que é só meu...
  A felicidade tem de ser espontânea, e apenas dá a impressão de ser fácil — dos meus sonhos me desperto.
  Quantas vezes ao nos encontrar, abraçados nos beijávamos, ajuntávamos nossos rostos roçando-os brandamente sentindo nossos cheiros, assim, com a pura e simples espontaneidade, assim fazíamos, eu e você...
  Como mentimos a nós e aos nossos próximos — por mais que neste ato se contemple uma hipocrisia latente (não é difícil de se ser sincero!). Assim fazíamos ao nos encontrar num encontro, num é?! Duns bastantes tempos pra cá, nem sei... Tão-só nos bitocávamos, certamente de maneira semelhada a que você, Açucena, graciosa sapeca selinho sapeca num “amigo” basbaque. Isso sem nem falar de namorar de verdade, de cama, de bagunça em qualquer lugar com desejo atrativo, dum medonho tesão explícito um pelo outro... Isso, ao menos entre nós, já não acontece faz tanto tempo! Saudades? Quem sabe, nem sei... Ou acho que sei.
  Penso, minha tristeza tem a espessura das desesperanças que perambulam poraí. E quem sabe não é ela se transformando em comida de ave de rapina, ou carniça pra abutre? O meu agora não resiste a esta espessura porque também trago em mim a angústia de em você me saber descartável... Se isso me atormenta? Não... visto que, se não me vejo mais lá dentro de você! Há rejeição constante, e os argumentos esfarrapados e não-ditos sustentam essa negação.
  E eu que tentei te dar tantos sinais de minha lealdade, de minha fidelidade, do meu amor profundo, meu respeito, reconhecimento! Essa angústia que se ajunta à tristeza é provável que seja uma angústia do infinito que tento alcançar, que busco regaçar na superação do humano pra perceber pelo olhar o que não enxergo ao sol. Sim, vivemos uma vida ao sol, somos guiados pela luz solar, mesmo porque involuntários tentamos obscurecer as coisas, as pessoas, os sentimentos.
  Talvez se não, não.
  Nos, assim entendo, entre a gente nós nos coisificamos — caímos na mesmice que anda de permeio poraí. Tantos poraí tão próximos...
  A tristeza de perceber o erro tremendo operou em mim uma mudança danada, provocou alterações em meu olhar. Mas o erro nada tem a ver com nosso passado, tem a ver comigo, com o que me fiz ser, com o q’eu sou, com a “pessoa danosa” e chata que os seus se me atribuem, com a inundação de preconceitos de como sou diferente, esquisito, qualquer coisa insuportável, quando muito tolerável apenas por que te acompanhava. No entretanto, sem me anular, sem perder minha originalidade, ainda àquela época eu mudei um tanto, mas não me fora permitido demonstrar e assim não houve o q’eu fazer. Eu vivia manobrante... até que cansei.
  Como Quintana disse, O mais triste de um passarinho engaiolado é que ele se sente bem...
  Olhe pra mim agora, Açucena. Não, não meneie a cabeça mecanicamente, não titubeie isso, olhe pra mim agora, nos meus olhos, e me diga o que vê. Sei que você, se me visse, poderia ver além d’minha aparência. Você tem essa capacidade, o que falta é vontade — contágio da preguiça, do fácil. Se deixasse esse medo do passado, se deixasse de utilizar essa arma fajuta contra mim, e, principalmente, contra você; se deixasse de fazer do passado um legado pro presente e pro futuro... Acredito tanto na sua integridade que tantas vezes me dispus a zerar tudo — embora, muita vez, pra não se distanciar de sua tribo, você se apegava a lugares comuns, a lugares... de maneira canhestra e camaleônica, vazios!
  Tenho várias caras. Uma é quase bonita, outra é quase feia. Sou o quê? Um quase tudo — isso tá aí dependurado em sua alcova, frente ao seu catre, e eu mesmo a compus, compus as imagens de sua cultuada ajuntada a essa fala, dela. É, mas num basta apenas achar bacana o que Clarice disse, e mecanicamente repeti-la — tem-se que encarnar o espírito ou acaba tornando-se múltiplo de um... e bebendo muita tarja preta.
  Liberado, metafraseio Ricardo Reis: Siga o seu caminho, cuide de seu jardim, ame quem te ama... O resto é sombra de resto. A realidade sempre é mais ou menos o que queremos — muita vez, menos. Somos semelhados a nós próprios. Tranquilo é viver só, simplesmente viver deixa dor e isso já basta. Vê seus eus por quem pouco pensa.
  Lá pra trás, você se lembra, Açucena, por instantes eu tentei ser pragmático, utilitarista, e me fodi bonitinho.
  E o poeta boliviano Ricardo Jaimes Freyre disse não querendo dizer porra alguma, mas disse lindamente: Peregrina pomba imaginária/ que enaltece os últimos amores,/ alma de luz, de música e de flores,/ peregrina pomba imaginária.
  Sim, zerar. Largar mão de procurar os erros e os acertos mais leves que o ar. Largar mão de tudo que não envolva, mas eleve a mim e a você às possibilidades que se aderem. Tentamos de um tudo, eu e você, Açucena, é, até sermos amigos nós tentamos...
  Não, não te pressiono — pra quê? Desabafo, apenas.
  Um desabafo, tão-só. Desabafo por te amar tanto e me reprimir a ponto de não poder dizer isso, só isso. Acredito que isso não tenha mais importância pra você, eu de verdade acredito. Nada contra, não me roubei à oportunidade de tentar, só tantas vezes e quantas mais precisei. O que eu tinha guardado em mim pra você era tão puro, tão leve, e n’alguns momentos me fez bem. É, é isso.
  Faz-me bem, como aquelas camisetas e cuecas e meias que me presenteou, e foi tão bom ver a felicidade meninil nos seus olhos ao me presentear. Olhos de criança ao dar um presente que há muito ansiava dar, um ano, desde quando aniversariei cinquenta e três anos, em 2009, quando insensível me “presenteou” um cheque que não usei?!; me fez bem como nos dias em que você queria por que queria falar sobre suas coisas, seus problemas, as perdas de queridos, e eu estava aqui — sempre estive aqui! — ao alpendre; e depois de te ouvir eu via o relaxamento em seu olhar, de certa maneira aliviado, é, alívio de quem tem alguém em quem confiar sua fala, sentimento, alguém que te escuta e que está nalgum lugar achável pra e com você.
  Não, você não pode dizer que não estive ao seu lado, porque estive o tempo inteiro. Estive ao seu lado na inteireza de q’eu fui capaz de estar, no abandono do q’eu me fiz em detrimento de meus desejos. Mas não digo que tenha me anulado — cheguei à conclusão de que ninguém se anula por amor: aprendi a ser um, e quando é preciso me divido em dois ou três, em tantos continuando um único. Assim, uns de mim. A cada face a ser estampada, um eu. Um tanto de eus errados e acertados. Vários rostos, uma cara. Por que sou tantos? Porque vivo os encantos — lembra de quando assim me abreviei? É assim quando se ama e quando esse alguém a quem amamos quer, ou precisa de nós. Entrementes, não restrinja o verbo amar a homem & mulher, Açucena; amplie à amizade, àquela que tentamos entre nós. E a escolha não é difícil, até pelo contrário, ela é fácil quando vemos o outro na sua máxima extensão, quando o reconhecemos parte de nós ou de um plano de vida em execução, como ler um livro há muito desejado.
  Quanto nos enganamos!
  A invasão de privacidade acontece e é inevitável, mas eu nunca quis invadir a sua vida, Açucena, nem as dos seus, e muito menos te/lhes cobrar coisa alguma — a não ser a mim, claro, de de vocês ter dignidade e respeito, essência mínima que nesse tempo não tive. A você e a eles fui sem proibições ou exigências, sem armas. Inibições as tive em penca! Me muni apenas daquilo do q’eu precisava, que poderia ser necessário a você, Açucena, também.
  Mesmo detestando essa expressão — sim, porque deixou de ser uma palavra e passou a ser uma expressão significante —, fui um devir, um devir-eu, uma construção. Deixei o escudo e a lança no depósito do Paiol Velho, junto à estrada, bem guardados num esconderijo que ninguém e nem mesmo eu soubesse donde os desvelar. E lá os deixei pra que raiva alguma que viesse a ter pudesse ferir você, pudesse te machucar, pudesse sequer tocar sua pele tão sensível. E nem bem isso teve valor.
Apenas não consigo nem nunca conseguirei desarmar-me de minha dignidade.
  Um escritor português — Bernardo Soares (FP) — disse: ... Raciocinar a minha tristeza, para quê, se o raciocínio é um esforço? E quem é triste não pode esforçar-se. Nem mesmo abdico daqueles gestos banais de que eu tanto quereria abdicar. Abdicar é um esforço, e eu não possuo o de alma com que me esforçar...
  O sonhador não é superior ao homem ativo porque o sonho seja superior à realidade. A superioridade do sonhador consiste em que sonhar é muito mais prático que viver, e em que o sonhador extrai da vida um prazer muito mais vasto e muito mais variado do que o homem de ação. Em melhores e muito mais diretas palavras, o sonhador é que é o homem de ação.
  E eu me pergunto, então, não é isto o que fazia todas as vezes que me dirigia a você? Mas seu silêncio conveniente... O pior não é o silêncio e sim o que consequentemente se cria dentro dele, as hesitações, o que fica por se dizer e não se diz por que se deixou a oportunidade passar —, o pior desse silêncio é a desconfiança que remexe dentro. E o perfume desse silêncio chega à minha angústia...
E o que dizer do hoje, se o desfecho é um silêncio maior ainda, é esse não querer, não poder e não ter o que dizer? O desfecho de tudo que pensávamos ser, apenas hoje consigo ver.
  Não sinto tanta dor, ou não sentiria se tudo fosse menor que esse silêncio. Mas hoje, sim, hoje se me calo, se pra você sempre me calarei, de vez, não é por vontade, mas por esgotamento.
  A você, Açucena, eu me revelei por inteiro, até desvelei um incidente fatal ocorrido em Belo Horizonte, há 36 anos. Por isso — e por tanto menos —, atormentado me culpo, me culpo mas nada tenho como refazer, como ressuscitar...
  Ou, como As babas do diabo de Cortázar, à Antonioni num instantâneo blow-up eu registro: o passado é plástico, e de certa maneira o futuro também; infelizmente, o presente não é, dói.
  Os vidros e as portas enfim se partiram; eu, com os retalhos cerzidos, caminho...
  Seja bem feliz, Açucena.
 Germino

 
Germino da Terra
Enviado por Germino da Terra em 16/07/2011
Alterado em 20/02/2012
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